Textos de Jorge Ribeiro Araújo - Academia Caetiteense de Letras - Caetité - Bahia - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor |
Encontro com Borges e a Teoria geral da Eternidade |
Na predestinada manhã em Buenos Aires, uma comichão estranha me colocou fora da cama bem mais cedo. Fazia frio, e, não sei porque, não permaneci entre os cobertores. A expiração moldava tufos fugazes de fumaça branca, insistentemente. Perambulei alguns minutos pelas ruas sonolentas, e quase que arrastado por uma força desconhecida, entrei na catedral da Praça de Maio, que acabara de ter as portas abertas por um homem taciturno que me lembrou Quasímodo. Este fora condenado, há anos, por simonia e desde então se escondia envergonhado pelos cantos, enquanto prestava serviço eterno à diocese, numa espécie de autoflagelação. As luzes apagadas; atraia o olhar, o altar-mor, permanentemente iluminado. Sentei-me num dos bancos de madeira, com a igreja na penumbra, absolutamente deserta; "Quasímodo" já desaparecera. Súbito, quebrou-se o sepulcral silêncio. Um homem quase velho, trajando paletó cinza-escuro, atravessou todo o corredor central apalpando os espaldares, e, solene e decidido, desapareceu atrás do grande altar. Esperei longos minutos o seu retorno e optei seguir seus passos, curiosamente. O que fazia naquele lugar? Os altares se situavam a poucos centímetros das paredes dos fundos das igrejas, um homem poderia passar de um lado para o outro, apertado. E nessa região, lugar escuro, pecaminoso, nem os clérigos transitavam. Ali ele havia sumido. Avancei para o desconhecido e, ao fazê-lo, a igreja quedou deserta novamente. Que sordidez urdia o visitante? A escuridão total não me deixou escolha. Roçando as paredes e tateando o vazio por traz do altar, à moda de um cego, segui até onde se abriu silenciosamente uma pesada porta de pedra, lacrada pelo silêncio, pelo medo, e pelas teias de aranha. Abriu-se ao fluxo de minha respiração ofegante. Percorri, inebriado, extensa escadaria onde uma abissal escuridão era rechaçada pela luz de solitários candelabros, e entre estes, elmos e espadas, e uma gárgula por onde outrora escorrera o sangue dos vencidos. Enfim, cheguei a um vasto salão. Lá, me deparei com o "cego argentino" envolto em fantásticas ficções. Atrás de limpíssima escrivaninha de jacarandá, o homem com o olhar aparentemente perdido no vazio, perscrutou minha inusitada presença e indagou, denunciando total deficiência visual: -Quem está aí? Ao que respondi: -Eu, Jorge, trazido pela incontrolável curiosidade. E quem é você? -Eu, Jorge Luís Borges, em viagem rumo a eternidade. Num dos lados da pequena mesa, uma garrafa de café expresso sem açúcar. Noutro, uma edição traduzida em francês por Antoine Galand d' As Mil e Uma Noites, aberta nas páginas que contavam a história do rico mercador que perdera toda a riqueza e sonhara com um tesouro escondido na distante cidade persa de Spharam, onde levaria uma tremenda surra. Rascunhos e papéis em branco. Revelou-me que descobrira este caminho, também em sonho, há poucos anos; que se alguém tateasse atrás dos altares, simplesmente não encontraria a porta de pedra. -Como podes ler se és cego? -Comecei a perder a visão aos quarenta anos, não poderia, também, perder a vida. Ler para mim é como respirar. Creio que fui salvo paradoxalmente pela cegueira. Nos anos de turbulência em minha pátria, já cego, busquei instintivamente a proteção. A mesma comichão que hoje te acordou mais cedo, levou-me a tatear por trás do altar e a porta de pedra se abriu pra mim. -E então?... -E então? Tivemos acesso à Biblioteca Central do Universo, meu caro, que tem uma porta em cada cidade do mundo. Aqui é diferente, certamente percebeste que é inútil respirar; não importa, continuas vivo. Experimente! Aqui o tempo oscila. O metabolismo é irrelevante. Ao perceber o fato, fui abalroado por uma vertigem abdominal que quase me tirou a consciência. Recuperado, perguntei, à beira do assombro: -Então estamos mortos? -Não, é óbvio! Aqui estaremos tudo, menos mortos. Por isso não preciso da visão convencional. -Moras aqui? -Eu não moro aqui. Morar subentende dormir, acordar, satisfazer os intestinos e o estômago, entre outros impostos do cotidiano. -E o que fazes então neste claustro? -Busco a eternidade por meio da sabedoria, o único caminho para atingí-la. Toda experiência e sabedoria da humanidade, em todos os tempos, estão aqui. Há trilhas para todos os lugares reais e imaginários do passado ou do futuro. Apenas o presente não importa, porque não existe presente. O presente é o ínfimo instante onde predomina o nada, onde nada aconteceu ou acontecerá. Ainda lá no mundo real dos homens, descobri que não é quem escreve que se eterniza, mas quem lê. "Que jactem das páginas escritas; a mim me orgulha as lidas!" -E como julgas ter alcançado a eternidade? -Este lugar é o maior dos labirintos, meu jovem. Não existe Ariadne nem Minotauro. Há uma estante atrás da outra, abarrotadas de livros, numa sucessão interminável. É a fonte da juventude, o Santo Graal, o Elo Perdido, a Pedra Filosofal, o segredo da vida eterna, que alguns aventureiros pensam encontrar nos subterrâneos. Só os apaixonados pela leitura podem vir. Quando leio e absorvo a sabedoria, se gastei seis horas na leitura, são seis horas que apago no tempo que passou. A leitura é a viagem inversa no tempo que anula o envelhecer. Daqui não sairemos mais, nem o necessitamos, nem o queremos. Sei que existe uma porta para a liberdade absoluta, mas esse segredo só é conseguido ao cabo de todas as leituras, e isto, fá-lo-ei no próximo milênio. Voltarei ainda hoje ao mundo da hipocrisia - lembre-se de que o tempo aqui descreve um movimento pendular - para entregar a uma editora os manuscritos de meu último livro: A história universal da infâmia. Assim espero concluir minha contribuição para eternizar o homem. Mas retornarei, pois quem escreve um livro proporciona a eternidade a quem o lê. E eu busco a eternidade para mim. Os grandes escritores e historiadores, escribas, Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare, Goethe, Dostoievski, Machado de Assis, mereciam melhor destino. Serão apenas lembrados, o que não é o mesmo que viver a eternidade. Escrever livros é compor a eternidade e lê-los é vivê-la. Só paro de ler quando tenho cólicas biliares, mas descobri, em textos de Avicena, que o decúbito lateral direito põe o fundo da vesícula sobre a cama, e a pedra, arrastada pela gravidade, desobstrui o canalículo aliviando temporariamente a dor. |