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Textos de Jorge Ribeiro Araújo - Academia Caetiteense de Letras - Caetité - Bahia - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor
O Estrado
         Quem entrasse no antigo casarão tinha que saudar, quase genuflexo, o secular estrado, preguiçosamente estendido no seu canto da sala central. A pequena porta que dava acesso ao ambiente onde ele repousava solene, exigia do visitante uma flexão, uma reverência, para proteção do próprio couro cabeludo; quem não seguisse aquele ritual, amargaria hematomas.
          Aquele móvel estranho, hoje só existente em poucas casas antigas de fazendas, contava histórias, testemunhara tempos idos, lembranças de mortos e vivos. Grande e pesado, bem maior que uma mesa ou uma cama; baixo, uma criança poderia facilmente pular sobre ele; vasto, pois poderia abrigar todos os membros de uma grande família no seu lombo de uma só vez. Cerca de cinco ou seis pranchões de madeira de lei bem embutidas umas nas outras, talvez do extinto jacarandá, ou de umburana, quem sabe de tamboril.
          No seu dorso, o gigante doméstico exibia as marcas do tempo, dos costumes dos antepassados: impressões de facas cortando verduras em repetidos preparos de refeições; cicatrizes de adagas e canivetes triturando o fumo de rolo sussuarana para os cigarros de palha; marcas lisas e deprimidas dos calcanhares e das bundas dos senhorios e das donzelas nas noites de serão. O observador interessado poderia encontrar segredos trágicos e pitorescos, intimidades, revelações da concupiscência de coronéis e escravas.
          Paredes corroídas pelo tempo foram refeitas, recaiadas e redecoradas com galerias de retratos emoldurados de figuras com bigodes engraçados; pisos gastos pelas botinas, pelos pés de galinhas e cachorros, pelas vassouras de piaçava, foram várias vezes refeitos e ladrilhados. Só o velho estrado que contava histórias resistia inelutável.
          Quem fixasse bem os olhos nele, ouviria sussurros, gritos, gemidos e estertores de gerações passadas, como um caleidoscópio, como um monumental palimpsesto* que o tempo não conseguira desintegrar.


*Palimpsesto: material antigo de escrita, tipo pergaminho, que devido à escassez, era raspado e usado varias vezes; com ação de produtos químicos é permitido ver resquícios das escritas anteriores.