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Textos de Jorge Ribeiro Araújo - Academia Caetiteense de Letras - Caetité - Bahia - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor
JOÃO VALENTIN
   Numa planície lacustre, no final de uma sebe impermeabilizada por quiabentos, um dos filhos mais novos de uma prole de 17, João Valentin, se instalou. Tinha por vizinhos pássaros canoros, patos e os enormes coqueiros centenários, em cujas concas compensava sua pequena estatura para observar o extenso vale, como um solitário sentinela. Desse posto, nas alturas, via o serpentear do rio nutrindo os canaviais, a mancha azulada da lagoa à direita, no nascente o esqueleto imponente da Chapada Diamantina, e o espectro indefinido da cidade no extremo do horizonte; para trás não olhava, porque lá o rio se despedia indo embora na direção do Velho Chico. Acredita-se que a escolha do lugar se deveu a um instinto. Há quase um século, nas proximidades, e ainda se via as ruínas do casarão, morou Dinha Dona, fértil matriarca que no início do século XX, disseminou genes no litoral do país.  Reiteradas vezes lhe fora oferecido cama e mesa confortáveis, televisão e banho quente, obsessivamente recusados. João Valentin buscava a felicidade a seu modo, preferia o contato com a natureza, a liberdade. Em seu solipsismo, aprendera a desprezar o sexo, o vinho, e outros prazeres mundanos, cada vez mais virtuais. Concluíra instintivamente que seria quase impossível sentir-se feliz, já que a felicidade está condicionada ao desejo, e só se deseja o que não se tem. Num arroubo de filosofia, cogitou ser absolutamente necessário amar tudo e o pouco que possuía, pois só amando poderia desejar o que já tinha, e assim, sentir-se-ia feliz, na sua aparente insignificância.
    Desejou ter uma sala de visitas; mas o cubículo exíguo não lho permitia, por falta de espaço. Morava em quatro paredes que cabiam, apertados: uma cama de varas, um fogão a gás que nunca funcionou mas servia para armazenar panelas e frutas, uma pequena mesa onde se via todo tipo de bugigangas e um antigo radio, além de uma improvisada trempe com tições onde cozinhava. Apenas uma porta permitia a luz entrar, localizada de tal modo que jamais o sol atingia sua cama.  Adiante e atrás, as águas das chuvas que escorriam no telhado, abriam sulcos característicos na terra ao lado dos alicerces, exibindo pedrinhas coloridas, algumas de âmbar e quartzo. Lembrou-se da sombra da cajazeira em frente da choupana; um João de Barro havia chegado primeiro mas não se importou. O anacoreta limpou e varreu o chão batido, e sob a árvore deitou um sofá usado. Ali tinha a brisa fresca, a sombra, o canto dos pássaros, e a paisagem natural. Um convite à preguiça, o que os abastados tentam adquirir, sobressaltados, abrindo as venezianas dos palacetes, instalando obras de arte, jardins artificiais de inverno, e comprando, no mercado negro, animais exóticos mantidos em cativeiro. Aquela era a mais original, criativa e ecológica sala de visitas de que já tive notícia.
    Sábado à tarde, dia fatídico.  João Valentin se esqueceu de tirar o pé do chão, e o caminhão de coca-cola esmagou-lhe o apêndice só então valorizado. Pagara um preço alto pela sua lentidão.  O sangue brotou dos pontos de costura da botina, tingindo o asfalto quente. Depois de todo tipo de tratamento disponível, restou-lhe como única opção, a amputação de dois terços da base de seu aparelho locomotor, não sem sua veemente revolta e intolerância. A maiores traumas estão sujeitos os grandes aventureiros. Ao solitário campônio, coube-lhe esta absurda infelicidade. Espraguejou e excomungou todos os que lhe assistiram nesse lastimável episódio, amigos que o socorreram, parentes e até os médicos. Na manhã seguinte ao dia da mutilação, entre a indiferença e o pezar, ouviu a notícia de uma tempestade que se abatera sobre sua terra natal. Era tempo das chuvas. O visitante contou que o rio transbordara e endiabrado arrastara tudo, invadira a choupana no final da sebe de quiabentos, levando inclusive o obsoleto fogão que desaparecera no meio das águas. Uma agitação estranha e um silêncio suspeito se apossaram do operado pelo resto do dia. Tempos depois, soube-se que João Valentin, aposentado, guardava, há anos, as sobras do dinheiro de cada mês, dentro do fogão. Certamente o cofre improvisado continha notas e moedas já imprestáveis, sem valor monetário, lembranças dos planos econômicos desse país inflacionário. E João viu alguns sonhos se perderem com as palavras. Rapidamente se esqueceu do episódio. Era quase um santo e os heréticos vibraram ao vê-lo sem a parte dianteira do pé e sem o seu tesouro escondido, sorrateiramente roubado pelo rio que tanto adorava. Passados alguns dias da turbulência inicial, alguém teve a idéia de uma brincadeira que ele respondeu a sério:
    -Vamos fazer um pé de cimento e concreto, João?
    -Não dá certo, é muito pesado e já estou velho.
    -Então de madeira, Osmã, o carpinteiro, fará um perfeito.
    -Não, à noite os cupins vão acabar comendo ele.
    -Que tal de barro?
    -E como é que eu vou entrar na lagoa pra pescar?
    Acabou preenchendo o vazio da botina com pedaços de pano para disfarçar sua mais recente deficiência. Desde então não mais se viu João Valentin em cima dos coqueiros a contemplar o vale, como a Esfinge, ao deserto.