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Textos de Jorge Ribeiro Araújo - Academia Caetiteense de Letras - Caetité - Bahia - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor
As lágrimas de Quincas da Cachoeira
   Fatos acontecem no cotidiano, reações humanas eclodem, surpreendentes ou insignificantes, e às vezes o observador casual não entende o porquê. Alguns comportamentos ficam para sempre inexplicados. Outros são, após décadas, reavaliados e aceitos. Algumas exigências que os pais preocupados impõem aos adolescentes estabanados, só depois de muito tempo, quando a razão lhes arrefece os ânimos, só então, serão compreendidas. Eu, de minha parte, não entendia por que era obrigado a voltar para casa antes das oito, já caída a noite, exatamente quando as coisas começavam a ficar interessantes, a rua mais atraente. Intrigava-me também por que meu avô não queria conversa quando ficava pregado na janela nos finais das tardes. Hoje, suponho!
    Seu Quincas da Cachoeira, pai de minha mãe, sujeito brioso, dono de terras boas e de gado, morava na casa grande e era respeitado e admirado no vilarejo que lhe emprestara o apelido. Tomava aperitivos diários e pitava, sob os olhares de desagrado de Dona Pequena, além de apreciar as jovens mulatas do arraial. Costumava criar pássaros-pretos ou coquis soltos livremente pelos coqueirais; nas horas de refeições eles apareciam em busca de migalhas, pousando nos seus ombros ou em cima da mesa. Bicavam restos alimentares entre os dentes do Velho, como se os estivessem palitando. De manhãzinha acordavam as pessoas da casa com seu canto em alvorada. A fazenda produzia de tudo que era possível, o que Seu Quincas chamava de "mantimento". Nos arredores podia haver outras carências, mas fome não. Ninguém ficava com fome na frente de minha Vó! Generosidade imensurável! No sótão do casarão, que na minha infância era um lugar proibido, misterioso, moradia de monstros que podiam devorar um menino com uma lambida, tudo era estocado, desde os imperecíveis como o milho guardado ainda no sabugo, rapadura, farinha de mandioca, arroz, fumo, feijão, passando pelo toucinho e carne salgada pendurados nos caibos do telhado, até os cachos de banana caturra amadurecendo.
    Minha Vó, do alto de sua quase santidade, morria de ciúmes das rondas que o marido fazia em sua montaria bem selada, pelas cercanias. Calada, sem nunca dar o braço a torcer, cuidava dos filhos e da casa, porque para isso fora treinado. Imprimiram-lhe essas obrigações, mas se esqueceram de lhe extirpar a sensibilidade. Não conto isso com orgulho ou como vantagem, mas não posso negar o costume da época. Não sei se para melhor ou pior, hoje as coisas se nivelaram por baixo. Nem tampouco vou execrar a memória de meu Avô, por causa de sua paixão pelo sexo oposto. Fiquei sabendo que elas o adoravam, e que algumas até forjavam encontros "casuais"; no meio dos canaviais, só para serem derrubadas nas palhas secas caídas, sob os olhares dos bem-te-vis delatores.
    Mas o tempo não parou. Uma vez, o Velho passava uma temporada na cidade, na casa de minha mãe, beirava os noventa anos. Então presenciei um fato, que naquele momento, não compreendi. Era uma tarde quente de sol, como quase todas as tardes dos sertões, e um grupo de moças belas desfilava pela calçada, vestidas com pequenas saias brancas, plissadas longitudinalmente, traje que as colegiais usavam para a educação física; tão curtinhas que mostravam pernas roliças e torneadas, extremamente sensuais. Debruçado na janela da frente da casa, de onde se podia ver ao longe os morros do povoado de Cachoeira, as pernas trêmulas e o olhar fixo nas jovens, lágrimas escorriam nos cantos dos olhos do Velho. Da janela ao lado, ingênuo, eu me angustiava sem entender porque meu Avô estava chorando e não queria conversa. Hoje suponho compreender. Reminiscências indestrutíveis.