Textos de Jorge Ribeiro Araújo - Academia Caetiteense de Letras - Caetité - Bahia - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor |
LIBÓRIO E O CIGANO |
Não é meu propósito contar uma história impressionante; apenas explicar como, certa vez, um vivo morreu porque um morto viveu. A Casa de Saúde estava repleta. Ocupadas todas as camas existentes, macas e bancos. Bruno, "o cigano", deixou cair o corpo exaurido pela incrível dor, no único leito vago, nunca dantes usado por algum vivente - a mesa do necrotério - exceto por Libório, o servente, quando lhe checou o comprimento no dia em que instalaram o mármore na pequena sala dos fundos. Uma prensa esmagou uma víscera indeterminada de seu abdome durante um dia e uma noite; assim, "o cigano" descreveu ansioso seu sofrimento. As preces e as promessas em nada adiantaram. Cego de cólica, acomodou-se ali mesmo, após profunda sedação. Libório cogitara fazer um relato detalhado por escrito de suas observações. Teorizava mentalmente sobre as razões que tornavam todos os cadáveres tão sobriamente parecidos, por mais variados fossem seus semblantes em vida, independente das circunstâncias da morte. Entendia que aquilo era uma indicação divina de que os homens deveriam ter direitos iguais. Era costume antigo do servente, logo às seis da manhã, como persignar-se antes de transpor a soleira daquele sacro cubículo, descobrir mecânica e rapidamente o morto da noite que findara, e prepará-lo para o sepultamento. Mas dessa vez, Libório ao ver o "cadáver" se mexendo, morreu de susto. De cadáver morto ficara provado que não tinha medo, mas desse que se mexia não se pôde dizer o mesmo. Morreu estupefato, como se a alma pulasse fora do corpo pelo espanto, fugindo assustada para se esconder na eternidade. Há anos viera de uma região pantanosa, coberta de caramujos e um parasita se alojava no sangue de seus intestinos. "O cigano", afeito à morte, colocou o corpo, este sim, agora deveras morto, sobre a pedra onde passara a noite sedado, cobriu-o com o lençol que usara e sumiu, temendo as especulações. O médico e o policial exaustivamente procuraram a marca do punhal, mas o corpo estava íntegro, nem um arranhão. De seu esconderijo, a alma de Líbório espiava o que jamais podia ter imaginado: seu corpo estendido sem vida sobre aquela pedra fria, espetáculo sem nenhuma graça. Sorriu quando se lembrou dos miseráveis vermes que habitavam seus intestinos, agora condenados. - Que se danassem, os infelizes! |