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Textos de Jorge Ribeiro Araújo - Academia Caetiteense de Letras - Caetité - Bahia - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor
O pacto
         Boato é o que apimenta os bastidores de qualquer pequena cidade e o que se conta aqui, por certo, Chehrezad, se o tivesse ouvido, incorporaria ao seu repertório. Comentava-se em baixas vozes que o comerciante de poucas palavras que vendia panelas de alumínio numa loja antiga com prateleiras quase sempre vazias, enriquecera da noite para o dia. A confirmação, os próximos meses se encarregariam de fazê-lo, pois, tão logo retornou da longa viagem, começou a comprar as melhores fazendas da região. Restava saber de onde veio tanto dinheiro e para isso existia a língua do povo. Ninguém deixaria passar em branco esse episódio. Desaparecera de circulação por algum tempo e quando voltou não mostrava ainda os sinais externos da riqueza exceto alguns indícios dúbios como uma exacerbação do andar aristocrático e uma sobriedade desdenhosa que o distanciava ainda mais das pessoas.
          A partir do dia do sumiço, notou-se que apenas uma das cinco portas do armazém da esquina se abria, assim como para mostrar que se alguém quisesse comprar alguma coisa, pudesse chamar. Uma mulher velha aparecia de seu esconderijo e entregava a qualquer preço o que se pedisse, num flagrante desejo de vender tudo, acabar logo com aquele negócio agora incômodo. Desde então um ar de mistério dali se difundiu. A inveja fervilhava a cidade. Durante algumas semanas não se veria o dono com a mão no queixo e o cotovelo apoiado no balcão perdido em solilóquios. A sociedade manifesta sua idiossincrasia e sordidez nesses momentos. Não que o dinheiro trouxesse a felicidade, é que a fartura e o poder que sempre lhe acompanham, despertam a inveja. Nunca mais o estoque de panelas e bugigangas seria renovado.
          O homem, diziam, havia retirado um pote de ouro e jóias do subsolo ou dos alicerces da velha casa e viajara às pressas para o sul do país onde trocaria tudo por dinheiro. Na fachada do armazém que era anexo à casa onde ele morava, quase imperceptível, com algum esforço se podia ler em alto relevo destruído pelo tempo - 1900 -  ano de seca devastadora, quando uma parte da população morreu de fome e outra se aventurou a pé rumo ao sul, alguns sucumbindo no caminho. Os anciãos contam que os abastados cidadãos daquela época escondiam seus tesouros enterrados em algum local de suas moradas, talvez temendo saques ou roubos. Criam recupera-los em tempos mais amenos, mas a morte surpreendeu alguns.   
          Ninguém possuía, no entanto, o mapa. Aventureiros, em vão, levados pela ganância, fizeram escavações aleatórias na calada da noite, guiadas por sonhos mirabolantes ou visões esdrúxulas. O que se comentava com impressionante convicção era que só o diabo sabia o local exato. Os mais afoitos afirmavam que o comerciante fizera um pacto com o "demo" e guardava em profundo segredo uma réplica do capeta em miniatura numa garrafa bem lacrada, escondida num cofre que só ele abria. Ficou com o tesouro. Em troca, o diabo, por sua vez, tinha sua alma num barril estocado em vasta adega nas profundezas e aguardava sua hora e vez de dispor.