Textos de Jorge Ribeiro Araújo - Academia Caetiteense de Letras - Caetité - Bahia - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor |
O Sábado |
Atrás do surrado balcão de madeira, ensebado e liso, tinha-se a impressão de clausura. O comerciante, naquela época, exibia farta cabeleira negra, não tinha ainda as costas arqueadas pelo tempo, e além de uma mãozinha, desejava mesmo era incutir senso de responsabilidade no adolescente incauto, iniciado na farra. A passagem que se abria como uma comporta no meio do balcão, para o rebelde, era uma arapuca, um cadafalso: uma vez ultrapassada, a prisão duraria duas ou três horas eternas. Daquele mundo de bugigangas e quinquilharias via-se o burburinho da feira, os prazeres renunciados aos sábados. Carros de bois emparelhados formavam uma barreira pros lados da igreja, onde não era incomum um cortejo nupcial sem grandes pompas. Melancias, abóboras, rapaduras, sacos de farinha de mandioca, bodes e porcos amarrados nos fueiros traseiros dessas bizarras carruagens do sertão. Galinhas dependuradas em varas de catinga-de-porco ancoradas nos cabeçais, quando não ensopadas em molho amarelo nos caldeirões das barracas. Bruacas de feijão mulatinho e catadô, de arroz, mantas de toucinho e carne salgada em bancas a céu aberto. A fumaça das panelas se misturava ao cheiro de cominho e açafrão e ao odor de pinga com raízes e emanações de frutas amassadas nas pedras da praça. Mulheres com cestas abarrotadas circulavam tranqüilas. Moças da roça, coradas, exalando água de cheiro de alfazema e leite de rosas, batom vermelho-sangue, vestidas de chita colorida com saias abaixo dos joelhos, que o vento num lampejo de indecência mostrava coxas grossas e sensuais. Ranço de gente suada, mormaço de sol quente; vendedores com os braços e rostos empoeirados de tapioca fina levantada pela brisa, à noite bem que poderiam ser confundidos com fantasmas. Todos os casos, mexericos e novidades eram comentados entre os lavradores com calças de brim, em pequenos grupos, com chapéu de palha, e o brogó de sussuarana ancorado no lado da boca; no meio da fumaça tudo era passado a limpo. No fim da tarde, o velho burro manso levava Zé do Bode pra casa, como que colado na sela, quase em coma alcoólico. O quadrúpede ficava parado, imóvel ao seu lado, o tempo que fosse necessário, esperando Zé se levantar, nas raras vezes que caía, todas milagrosamente sem seqüelas, porque o Anjo da Guarda protege os paus-d'água. Só a metempsicose poderia explicar esse comportamento mais que animal. A sadia promiscuidade do contato corpo a corpo, a rica pobreza dos feirantes, incomodam as estatísticas sanitárias atuais: por que hoje esse mesmo homem é mais doente? Deixa pra lá, os políticos e sanitaristas que se arranhem para explicar. Mas lá no claustro o rebelde balconista se lamentava, sem saber que assim a ética paulatinamente escorregava para dentro de seu coração. |