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Textos de Jorge Ribeiro Araújo - Academia Caetiteense de Letras - Caetité - Bahia - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor
O Sábio dos Jatobás
          Não sei onde ele morava, nem eu nem ninguém, até hoje, que eu saiba. Mustafá, seu único companheiro, era um cão de pêlos pretos, olhos vermelhos como manchas de sangue - mas dócil e obediente. Assustava apenas na aparência. A dupla encenava um espetáculo surreal, no oásis da caatinga. Quando apareciam, vinham sempre por entre os lendários jatobás gigantes do joelho do rio, o começo do mundo. Pra lá dos jatobás, nada se sabia. Ao partir, faziam-no atrás de algum rochedo, ou moita, onde a vista não podia alcançar. Mustafá saltava primeiro, feliz.
          Barba branca e longa, o velho lembrava Matusalém, aliás, como era conhecido, pois não se sabia o verdadeiro nome. Cada fio, uma história de amor. Fora grande amante. Acabara sozinho ante as diatribes dos enlaces amorosos, mais por opção e desafio que por medo ou cansaço. O destino lhe roubava insistentemente os sonhos de amor, suas amadas pereciam em surpreendentes e catastróficos acasos - atropelos, quedas mortais, acidentes por picadas de animais peçonhentos. A última, fulminou-lhe um raio, em rara tempestade. Ao ver o primeiro fio de cabelo branco, jurou renunciar aos prazeres da carne, poupar donzelas. Cria reescrever páginas no livro do destino. Havia publicado um minucioso estudo sobre as possibilidades da solidão.
          Seu lugar predileto era o pátio do colégio, sob a sombra do umbuzeiro, em trajes gregos, pescando respostas nas indagações dos estudantes. Ensinou que o sofrimento e a insônia demonstram que a dor é mais forte que a vontade. Que é melancólico persistir no sofrimento, ao menos nesse que advém da insônia. Por isso consumiu metade de sua longa vida dormindo. Cada manhã, nova fúria insuflava-lhe o intelecto.
          Quando Ismélia, a última, morreu, amputou-se grande galho de sua vida. Freqüentava também botequins e outros aglomerados humanos. Incitava o pensamento dizendo que "era urgente porque podia apodrecer a qualquer momento", que "preferia qualquer coisa que não fosse reta, porque sabia que toda reta é um arco de um círculo infinito e, portanto, estaria sempre voltando", o que deplorava.
          Na quarta-feira de cinzas, apareceu com olheiras enormes e um hálito azedo, dizendo que esteve com Omar ibn Ibrain el Khayyan (o construtor de tendas) e ouvira: "Bebe! Pois não sabes de onde viestes, nem porquê. Bebe! Pois não sabes para onde vais". Fez uma rápida preleção em defesa da moral antiga e desapareceu entre os jatobás. Sob a axila um surrado manuscrito em cujo frontispício se lia: Código de Hamurabi, onde jazia a lei do Talião. Deixou, dos ouvintes, a imaginação insultada.
          Contou, com sinceridade estarrecedora, como sabia da morte de alguém ao perceber o súbito e característico ruflar das folhas dos jatobás na curva do rio. Segundo ele, ali se encontrava um dos portais da eternidade, por onde, dizia, as almas passavam. Não as via, mas os galhos e as folhas tremiam imantados. Com o passar dos anos, Mustafá também o descobrira; abanava o rabo numa derradeira saudação, o olhar momentaneamente sóbrio.
          Contou também aos encarcerados, que ouvira de um mago, "que aquele que está preso em uma dimensão só pode vislumbrar a próxima e nada além: o ponto corre apenas sobre a reta; a reta desliza sobre o plano; o plano viaja no espaço; o espaço se abraça ao corrosivo tempo; a matéria temporal passeia no pensamento; o pensamento, a Quinta dimensão, se volatiliza na loucura, a Sexta. Daí para frente só os loucos podem vislumbrar".