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Textos de Jorge Ribeiro Araújo - Academia Caetiteense de Letras - Caetité - Bahia - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor
O SEGUNDO SONHO
         Ó nobre leitor, atento como o filhote de leopardo, a mais estranha história se passou num sonho, portanto só Deus é testemunha. Viveu nos arrabaldes do sertão esturricado um homem rico e sensato, cujas qualidades deixavam felizes os que o amavam, e faziam apodrecer os corações dos invejosos. O olhar sereno e digno refletia a tranqüilidade daqueles que não sofrem as sanções da ética, cujas consciências seguem virgens, imunes aos tentáculos da corrupção em voga. Os infortúnios alheios encontravam em seu lavor um obstáculo. Antepunha-se à dor física ou moral de quem quer que fosse. A generosidade era sua marca. Assim espantava a eterna perseguidora de todos os viventes, mitigava o frio que lhes rachava os ossos, e semeava fadas e heróis na imaginação de infantes perdidos. Todas as noites, porém, a saudade e a solidão lhe tiravam o sono, e o asceta mergulhava na tristeza.
          Um dia, conta-se, mas ninguém pode provar, pois a página está em branco, que voltando de uma longa viagem, numa estrada poeirenta de um vale ressequido, quando o sol já não despejava mais seus raios sobre a terra e o avental negro da noite ainda não se instalara por completo, um dos pneus de seu automóvel estourou, próximo a uma montanha, em cujo sopé havia uma profunda caverna. Restaurado o dano, exausto, recostou-se num rochedo, e após sorver goles de água fresca de seu cantil, adormeceu. Armou-se o palco de suas reminiscências. Ecos de grunhidos longínquos o atraíram para dentro da caverna escura e, à proporção que adentrava curiosamente aquele labirinto, os sons iam se definindo e vozes humanas se tornavam claras. Um brilho ondulante, alaranjado, se desenhava nas paredes, como reflexos de labaredas se intensificando a cada passo dado adiante naquele abismo. Não voltaria mais. A curiosidade, mãe do perigo, já o havia seduzido.
          Súbito, um enorme pássaro de ferro vindo do nada, com uma de suas garras metálicas envolveu firmemente seu pescoço, imobilizando-o. Entre a vida e a morte, ouviu do monstro um ultimatum, escandindo: - "Nesse mundo infame existem 360 realidades. Usai o livre arbítrio e escolhei a vossa, que vos acompanhará por toda a vida, e não vos arrependei dela". E, assim, ocupando todo o hemisfério visual, surgiu no espaço um grande círculo girando a uma velocidade vertiginosa e aos poucos, perdendo a força do giro, parou a alguns passos como uma incógnita visão. Do centro partiam 360 raios, cada raio atingia um cacho com cem uvas, cada uva se explodia em mil gotas de sangue que iriam se transformar no vinho que enche a taça do criador de todas as coisas. - "Escolherei a tricentésima sexagésima, pois, pode ser o meio dia e a meia noite, quando se tem o direito ao alimento e ao descanso" - pensou. E dirigiu o olhar ao ponto mais alto daquela abóbada gigante. A parafernália se desmantelou em sua frente restando apenas um ponto brilhante no ar. Com um movimento rápido da garra livre, o andróide de pássaro arrebatou a estrela incandescente e transformou-a num pingente, que em seguida amarrou em volta do pescoço que acabara de soltar. Queimando a pele e provocando uma dor fugaz, porém lancinante, a gargantilha se perdeu dentro de seu peito como num passe de mágica. . Antes de virar fumaça, disse o titã, desaparecendo num braço escuro da caverna: - "Todos os mortais se deparam com esta chance apenas uma vez; a ti, foi dada esta segunda e última oportunidade".
          Refeito ao choque, meditou sobre a afirmação religiosa de que "ninguém muda uma letra sequer na página do destino" e continuou entrando na caverna, feliz por ter acabado de escolher o próprio caminho. Seguiu na direção da luz alaranjada, cada vez mais brilhante.
          Vozes simultâneas de crianças, bêbados, mulheres, velhos, se misturavam em ecos. Gemidos, sussurros, gritos, gargalhadas, assobios, lamentos, ameaças, gozações, blasfêmias, conselhos, promessas, mentiras, numa verdadeira Babel. E a turba borbulhava incessante.
          Nesse emaranhado incompreensível para qualquer um, ele sim, identificava cada situação, cada experiência vivida, cada momento do passado, bom ou ruim. Das profundezas da terra, um estrondo ensurdecedor fez tremer toda a montanha anunciando uma exibição de telas e mais telas que se desenhavam nas paredes da caverna, como uma extensa galeria, ordenada cronologicamente. O primeiro quadro mostrava uma trompa de Falópio contendo uma célula gigante estacionada e logo a frente um pequeno ser flagelado com seu pontiagudo acrossoma. Ainda perplexo, fixou o olhar sobre aquele projeto biológico e a tela se incendiou quedando carbonizada; a moldura permaneceu intacta, melancolicamente vazia. Na próxima tela viu uma vagina expondo uma cabeça embebida em líquidos e membranas, numa expressão dolorosa pela invasão da primeira lufada de ar. E o quadro se desfez em pó. A cada pintura desfeita destruía-se o passado, apagava-se a memória. O suicídio é um instrumento que aborta a expectativa, a possibilidade do amanhã. Mas ali estava acontecendo algo estranho. Era um suicídio invertido no tempo. Era o passado, a história que desaparecia. Viu outros quadros, viu a teta farta, viu o banho morno numa bacia de zinco, o primeiro dente, os passos desequilibrados, o corte na pele mostrando o sangue misterioso, a primeira comunhão, o beijo escondido, a escola, o cavalo, os pelos pubianos, o primeiro jato espermático e o êxtase, a namorada, a despedida, o brega, o professor, a rua, a lua, o vestibular, o violão, a mortalha do amigo querido, o homem atrás das grades, o rio, os morros, o vento, a chuva, o diploma, o filho, a casa, a insônia, o sofrimento estampado na face, as saudades, a lágrima. E olhava estarrecido. E a cada olhar a tela se decompunha em cinzas e a galeria de molduras ficava para traz, deserta, agora na penumbra. Reviu todas aquelas imagens que a memória vomitava para serem queimadas pelo olhar. Levitava, quando a escuridão total se instalou. Por fim, surgiu no fundo cego do túnel uma nova claridade e um telão com tintas ainda frescas mostrou um belo carro estacionado num vale ressequido à beira de uma montanha, em cujo sopé havia uma profunda cavern