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Textos de Jorge Ribeiro Araújo - Academia Caetiteense de Letras - Caetité - Bahia - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor
O  tocador  de  sinos
            O repicar dos sinos alcançavam todos os pontos da cidade. Além de marcar as horas básicas do dia, ou seja: as seis, as doze e as dezoito horas, chamava os fiéis para a missa e avisava quando alguém havia morrido. Tinha-se a impressão de que alcançava o mundo inteiro; mas a cidade cresceu, inchou e hoje o repicar dos sinos não atinge mais nem os seus limites. Pendurados nas janelas nascente e lateral da torre direita da Igreja da Matriz do Padroeiro Santo Antônio, o sino menor, de timbre delicado, contava que o falecido era mulher ou criança. O maior, de timbre grosso, era dedicado aos homens.  Da janela poente, vazia, via-se o telhado antigo coberto de pátina e titica de pombos e andorinhas; da janela norte, interna, também vazia, via-se a torre vizinha e entre as torres o pequeno crucifixo de cimento no topo da igreja. Os campanários ofereciam uma majestosa visão do vale, com as serras, os telhados e os fundos das casas; para além dos velhos tamarindeiros, cuja lembrança faz encher a boca d?água, roncava a cachoeira do açude da rua. Do lado oposto, de onde vinham os ônibus, a terra se fundia ao céu no horizonte infinito. Forrando os tetos das torres, por dentro, centenas de morcegos aguardavam a noite. Para se chegar à escadaria do templo era preciso vencer o areão, passar pelos pés de manguba, cujo fruto imitava um cacau verde com bagos contendo um líquido amargo, e pelos pés de São João que se espalhavam pela praça cercada por balaústres de combogós. Nas grandes enchentes, raríssimas hoje, o rio e a lagoa,  numa verdadeira apoteose, se casavam e as águas vinham subindo o beco do Recreio (beco de Seu Chiquinho) para lamber as calçadas íngremes de pedras. Quando vejo aquele céu sem nuvens medito melancólico com a vã esperança de que o bando de andorinhas ressuscite em assanhadas revoadas. No fim das missas as pessoas leves como plumas, pois haviam deixado os pesos no confessionário, abandonavam a igreja em ondas que lembravam o deságüe de uma barragem sangrando. O vento levantava poeira, vindo da rua da Vereda, depois de se arrastar pelo vale e acariciar as águas da lagoa criando marolas.  
            Félix, o velho sineiro e sacristão, quando sentiu as forças minguarem, tratou de passar o ofício para Tõe Fernando que cedo revelou talento. Depois das badaladas pausadas das horas, seguia-se um repicado musical tocado com os braços simultaneamente enrolados nas cordas, numa coreografia circense de mamulengo. Excelente pintor, enquanto trabalhava, Tõe recitava poemas de Castro Alves, Augusto dos Anjos, Olavo Bilac e outros, uma seleção que demonstrava bom gosto; todos de memória e com uma expressão de grande orador no púlpito. Um artista! No canto da sala, uma meiota de pinga, que dizia, "era para limpar a garganta e desopilar" enquanto devorava cigarros. Foi assim que travei contato inicial com a poesia, ouvindo o repertório do tocador de sinos. Recorda-me, quando espremendo os lábios após um gole de cachaça, como se tivesse a sua frente  a mulher ingrata que o desprezara, ele declamava:
               "Mulher, o teu orgulho é tanto.
                 Veja que o amor do homem é santo
                 e o teu não vale nada.
                 Se hoje te vejo beijada
                 Por homem, mulher e rapaz,
                 amanhã te verei lascada
                 nas mesas dos hospitais".
            Nunca soube o verdadeiro autor desta pérola de boteco. Talvez fosse de sua própria lavra.
            Nas madrugadas das noites de São João, quando já não havia mais labaredas, a fogueira se transformava em brasa viva e a brisa varria as cinzas, ele caminhava descalço, lentamente, sobre o braseiro, deixando a todos perplexos. Antes se concentrava um pouco, parecia rezar, invocava mistérios nesse preâmbulo.
             Cantava canções antigas em serenatas que terminavam altas horas das madrugadas, regadas a pinga e pirão de galinha, descontraidamente degustado na calçada da casa do velho Graciliano, o Biruta, situada na entrada do Alto do Cruzeiro. A ave era literalmente pescada, às escondidas, por cima dos muros dos quintais, colocando-se um grão de milho num anzol. Assim, a "cantora" era surrupiada em silêncio, tendo o grito abafado na garganta para camuflar o delito. Marco inesquecível da época era ouvi-lo cantar um samba-canção, se não me falha a memória, gravado por Augusto Calheiros, que falava da morte de uma formosa índia, filha do morubixaba que desapareceu no abismo de uma montanha numa noite de lua.
            Será que Tõe Fernando fez como Félix, passando adiante o ofício de bater os sinos? Com grande pesar, fiquei sabendo que se encontra em Recife, onde foi operado de um câncer na garganta.