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Textos de Jorge Ribeiro Araújo - Academia Caetiteense de Letras - Caetité - Bahia - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor
Vingança de Caipora
    O sol ardia a pino "matando todas as sombras", como diria Camus. Eu estava no meio do pasto seco e batido. Período que antecedia as águas. As vacas ressentidas esperavam pacientes os novos brotos de capim; mas as chuvas ainda estavam fazendo estragos no sul do país. Enquanto isso a terra oferecia sua última gota de vida sustentando o cenário típico das caatingas nordestinas que tortura, mas não desencanta o homem do lugar. A sombra da copa de um juazeiro sobrevivente foi um convite. A árvore generosa e solitária daria abrigo a seu carrasco. Cinco anos atrás o machado e o fogo devastaram tudo deixando a cinza para o plantio de pasto. A terra nua exibia apenas os tocos das grandes árvores como lápides de um vasto cemitério sem epitáfios. Tudo incinerado. Mortos ou expulsos os seres dali. Se em outros ecossistemas vivem os ébanos, as tamareiras, os pequizeiros, os cedros, as araucárias, se o grou e o cisne, o tigre e a gazela, a águia e o coiote, a cotovia e o rouxinol decoram outras pradarias, aqui se ouve o lamento dos hóspedes da caatinga onde residem as aroeiras e as braúnas com seus vassalos, onde moram a seriema e a garça branca de beleza inefável, a onça pintada e o veado, o carcará e a raposa, o pássaro preto e o sabiá. Convive-se com os tombos de árvores seculares indefesas onde quase sempre há uma casa do joão-de-barro, com a evasão das lagartixas, das cobras e dos insetos. Mesmo após essa catástrofe, quem ali permanecesse mais alguns dias testemunharia o triunfo do sertão tão logo chegassem as chuvas.
    Sob o manto do remorso a dardejar a consciência, "esse gigante que robustece a alma", algo estranho acontecia. A brisa morna entortava os juncos na Lagoa do Barro. O corpo cansado me parecia extremamente pesado e lento. Os braços cresciam paralisados, as pernas penetravam profundamente no chão; foi quando percebi que estava me transformando numa imensa aroeira. Da honrada família das anacardiáceas, árvore de madeira vermelha, pesada, cujas cascas têm poderes medicinais e os troncos são a primeira escolha para esteios dos currais por serem praticamente indestrutíveis e de uma longevidade impressionante, por isso ameaçada de extinção. Ela, que ao lado da braúna, forma o núcleo da família real do sertão, com sua corte acrescida da peroba, do juazeiro, do umbuzeiro, do angico, do tamboril, do jatobá, do mandacaru, da cajazeira, do são-joão, da jurema, da surucucu, do pau d'arco, da imburana, da unha-de-gato, da caiçara, da catinga-de-porco, e tantas outras menores no porte, nem por isso menos importantes, que sabem, todas, resistir às secas terríveis, mas se rendem à cupidez humana. De imediato encheu-me de orgulho o peito por ver-me tão nobremente transmutado. Em seguida a estática condição de árvore me levou a uma angústia intolerável. Debati em vão, tentei voltar para casa, mas os pés estavam fincados na terra onde brotava meu sangue. Que seria isso? Cada instante que passava o pânico crescia. Um grupo de homens maltrapilhos, com machados e foices nas mãos, se aproximava lentamente, contando histórias. Dirigia-se, certamente, para alguma nova derrubada assassina. Era temporada das queimadas, mês de setembro, quando os homens destruíam as matas para o plantio, se valendo da seca e do calor para beneficiar o fogo. Um carcará que inspecionava do céu com seu vôo silencioso em busca de alguma presa, pousou cravando as garras em minha copa e em seguida voou livremente exercitando sua liberdade. O sol ardia a pino!
    Seria vingança de Caipora o guardião da mata? Não, eu acordei. Não, era vingança de Caipora sim, pois ele habita o mundo dos sonhos, da imaginação.