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Textos de Jorge Ribeiro Araújo - Academia Caetiteense de Letras - Caetité - Bahia - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor
O  Ximango
         O indianista Orlando Vilasboas revelou um curioso comportamento que assistiu certa vez, em suas andanças nas aldeias. Uma índia velha fazia pequenas esculturas de barro, bem trabalhadas, e em série as colocava pra secar sobre um tronco de madeira. Sentado, horas a fio observando, ele notou que de quando em vez, uma criança se aproximava, escolhia a estatueta mais seca, brincava um pouco, e a atirava com força sobre um rochedo, se deliciando com os cacos espalhados no terreiro. Isso se repetiu a tarde inteira, até o por do sol, quando o menino se cansou. Ela construía com afeto aqueles objetos e a criança os quebrava em seguida. Intrigado, se aproximou e indagou se ela estava vendo o que a criança fazia e por que o permitia. A resposta, lacônica, o deixou a questionar a educação civilizada dos brancos: ela estava ali a confeccionar as esculturas exatamente para o indiozinho as destruir a gosto, às gargalhadas. Era uma relação intensamente prazerosa para ambos.
          Ao ouvir o relatado, imediatamente me espetou a memória fatos triviais da infância. Dona Germínia Bittencourt Araújo, os nomes o indicam, se não houve trambique, teve uma ascendência européia, uma educação tradicional. Esteticamente não havia semelhanças: era alta, esquálida, cabelos enormes, enrolados atrás da cabeça num coquete inesquecível, olhos azuis; exceto pela ternura, em nada parecia uma índia. Mas aquele comportamento indígena também estava nela. Numa grande gamela, com gemas douradas, tapioca, leite, nata, grãos de erva doce, sal, manteiga de garrafa e uma pitada misteriosa nunca revelada, ela ia misturando tudo na seqüência apropriada. Carinhosamente amassava com as mãos, depois embolava em pedaços do tamanho de uma laranja e besuntados com óleo para não colar na forma, as pequenas esculturas eram levadas um tempo ao forno. Só quem experimentou pode aquilatar o tesouro que surgia daquela alquimia. Aquilo ficava pronto por volta das quinze horas e os netos, com água na boca, vinham se aproximando. Um a um, forma após forma, ela assistia feliz, os ximangos serem devoradas até à saciedade. Ali havia uma relação de amor e tolerância, como a descrita pelo indianista. Minha Vó e a Índia tinham a intuição do aprendizado livre, socrático, krishnamurtiano*, sem o policiamento tradicional; o pequeno índio concluiria que não era interessante ficar quebrando estatuetas de barro, e nós, assim esperava minha Vó, aprenderíamos que não se deve comer uma forma de ximango de uma só vez, até às náuseas. Mas veremos que comigo isso não aconteceu.
          Aquele sabor impressionava a gula como um ferormônio, e ficou arquivado na memória. Sempre gostei desse bolo, quase um fascínio, principalmente depois do que ocorreu. Um dia, já adulto, já falecida minha avó, quando eu saboreava um espécime, ao dar a primeira mordida, senti um crepitar inusitado entre os dentes. Dentro do João Duro - era como ela o denominava - havia um bilhete envolto em papel celofane. Estava escrito em letras trêmulas, numa pequena folha de papel de caderno, uma história infantil de um tal pinto que bebeu a água do mundo inteiro etc. etc. etc., que eu ouvira vária vezes, à luz de candeeiro. Embaixo, assinado: Vovó Germínia. Estranho, há tantos anos ela nos havia deixado, nem sua velha casa com aquele comprido corredor existia mais, como poderia isto estar acontecendo? Se fosse uma mensagem apócrifa poderia acreditar que alguém estivesse brincando comigo. Seria loucura? Mas a letra trêmula, a história, e seu nome escrito no final? E como colocar um bilhete dentro de um ximango sem violar sua casca? Com medo do ridículo, guardei comigo o ocorrido. Passados alguns meses, em visita a parentes em uma cidade vizinha, durante um café sortido à tarde, casa cheia de gente, lá estava sobre a mesa o meu petisco favorito. Ao mordê-lo, senti o crepitar do celofane entre os dentes e num daqueles processos mentais que surpreendem a própria razão pela sua instantaneidade, deixei cair o bolo, para justificar jogá-lo no quintal sem levantar suspeitas, num local onde pudesse recuperar a preciosidade depois, às escondidas, mantendo intacto o meu segredo. E assim o fiz. Lá dentro estava outro bilhete, as letras trêmulas, contavam a história de João e Maria, assinado: Vovó Germínia. Estava mesmo ficando louco. Muitas vezes, nas situações mais inesperadas, encontrei bilhetes de minha Vó dentro de ximangos, e fui revendo histórias de João e o pé de feijão, do jovem valente que dormiu num castelo mal-assombrado onde caía braços e pernas desmembrados de um gigante na madrugada, de coelhos sabidos, da festa no céu onde o jabuti quebrou o casco, de chapeuzinho vermelho, Rapunzel, de bichos, de duendes, de bruxas.
         Por isso não posso ver um ximango em minha frente! Aquele ferormônio, a expectativa de encontrar um novo bilhete de minha Vó. Agora resolvi contar porque devoro ximangos obsessivamente, não sei em qual deles minha Vó mandará novo bilhete. Ah! Se eu pudesse enviar uns pra ela também! Eu iria perguntar por que certa vez ela correu atrás de mim com uma vassoura de piaçava na mão, coisa que nunca havia acontecido antes, nem se repetiu jamais, por mais medonha que tivesse sido minha peraltice! Acho que ela estava guardando esses ximangos com bilhetes, para remetê-los depois e eu ameaçava consumí-los antes da hora!