Jusfilosofia



 

Comunitarismo Vs. Universalismo
TAVARES, Quintino L. C. Comunitarismo Vs. Universalismo: uma exposição introdutória.  Jusfilosofia,  ago. 2002. Disponível em: <http://www.oocities.org/br/jusfilosofia/comunitXuniversal.htm>

Visão Geral

O universalismo tem sido um ponto fulcral e constante no desenvolvimento da teoria moral e política moderna, que reivindica a igualdade de direitos de qualquer indivíduo enquanto tal, com liberdade para se subscrever ou assumir um determinado contexto étnico, cultural ou político, bem como fundamenta a sociedade política e suas instituições sobre a vontade dos sujeitos associados - os cidadãos. Esta afirmação de uma individualidade liberada de qualquer marco social e cultural de pertença, assim como a igualdade básica entre os homens, fundada na racionalidade comum, é um pressuposto da afirmação transcultural dos direitos humanos e da possibilidade de estabelecer um marco comum de convivência num mundo cada vez mais unificado em virtude dos desenvolvimentos tecnológicos, a interrelação dos processos econômicos e os meios de comunicação (Echeverría, 1996, p. 5).

Por outro lado, há uma clara acentuação das identidades coletivas específicas, heterogêneas e diferenciadas, nos dias atuais. O que corresponde, no plano teórico, a uma reação ofensiva contra o universalismo (Idem).

Corresponde, na verdade, segundo o autor supra (id. et loc. citatum), ao descobrimento da contextualidade do conhecimento e da normatividade, de que a verdade das proposições ou da retidão das normas somente pode ser afirmada sob o marco de um esquema abstrato (conceitual) e que não há uma pluralidade irredutível de esquemas conceituais.

O confronto chega às Academias anglo-americanas na forma de reação ao marco teórico de Jonh Rawls - A theory of Justice (1971) - inspiradas nas idéias de Aristóteles e Hegel, em que filósofos como Alasdair MacIntyre, Machel Sandel, Charles Taylor e Michael Walzer criticam a teoria liberal, embora não se identifiquem expressamente com o comunitarismo, tendo recebido esta conotação por intermédio de outros críticos (BELL, 2001). O debate travado entre o Comunitarismo (particularismo) e o Universalismo (liberalismo), para se reforçar, tem como como pano de fundo a tensão entre a tradição universalista da cultura ocidental moderna e uma retomada da acentuação da identidade comunitária (Echeverría, 1996, p. 5).

Os comunitaristas visaram essencialmente esvaziar a pretensão universalista da teoria liberal, e para tal fixam como alvo a posição original descrita por J. Rawls, posição cuja virtude especial permite-nos considerar a condição humana da perspectiva da eternidade, afastada das visões sociais e temporais (BELL, 2001).

Embora Rawls parece querer apresentar sua teoria da justiça como uma verdade universal, os comunitários argumentam que os padrões da justiça devem estar fundados na forma de vida e tradições das sociedades em particular, o que, portanto, pode variar de contexto para contexto. Alguns deles, MacIntyre e C. Taylor, p. ex., defendem que os juízos morais e políticos dependem do sentido da linguagem e da estrutura interpretativa da qual os agentes, ali pertencendo, observam o mundo. Deste modo, não faz sentido o empreendimento político que abstrai as dimensões interpretativas das crenças, práticas e instituições sociais (BELL, 2001).

Para Michael Walzer, a conclusão é a mesma, uma efetiva crítica social deverá se repousar e refletir sobre os hábitos e tradições da vivência de um povo, em tempos e lugares específicos. Quem abstrai o contexto particular, para universalizar o procedimento, está fadado à incoerência filosófica e à irrelevância política (BELL, 2001).

Nos nos anos 80, os Comunitaristas não lograram muito êxito. Poderiam marcar alguns pontos, se buscassem demonstrar aos liberais que é preciso ser mais cauteloso quando se desenvolvem argumentos universais fundados exclusivamente na argumentação moral e na experiência política da sociedade ocidental. Mas, procuraram suporte nos exemplos de contextos diferenciados, como a China e a India. Sem notar que poucos são os teóricos que vislumbra(va)m a real possibilidade de práticas não liberais adequadas para o mundo moderno, face às alternativas que se apresentavam, exemplificando, a sociedade de casta, o facismo e o comunismo soviético (cf. BELL, 2001).

De 1990 em diante, o debate de fundo metodológico entre o universalismo e o particularismo, apazigua-se um pouco das Academias e se centra, agora, na teoria e prática dos direitos humanos (universais). A euforia do breve triunfo liberal se cala, de certo modo, ao se constatar a existência de guerras étnicas brutais, a epidemia da miséria, a degradação ambiental e a corrupção, entre os problemas mais óbvios que afligem o mundo, e atuando, todos esses fatores, como obstáculos para a consolidação de um arranjo político democrático-liberal bem sucedido. Embora também fossem vistos como aflições que se dissiparão quando a democracia liberal triunfar totalmente sobre seus rivais (BELL, 2001).

O Sentido de Comunidade

O termo comunidade, que talvez resume a crítica e a alternativa que se faz, hoje, frente à concepção universalista da vida social, não tem sentido unívoco, mas refere-se sempre a uma visão da sociedade como grupo concreto, unido por fortes vínculos de integração e solidariedade, opondo-se a uma postura de desarticulação social e atomização, característica da Modernidade. É na verdade uma reação ao desencanto da funcionalidade e despersonalização da sociedade atual, cujos membros padecem da falta de sentido, de referências e projetos que possam orientar a sua vida enquanto indivíduos e membros da sociedade, bem como da ausência laços efetivos e de solidariedade, ou seja, a falta do sentido de pertença a uma identidade homogênea (Echeverría, 1996, p. 6).

Como reação, podemos identificar duas tendências básicas: 1) centrada na identidade, que critica a sociedade moderna, principalmente pela sua dinâmica abstrata e homogeneizante que provocou o desrespeito às tradições e valores compartilhados, uma perda que só poderá ser resgatada com o retorno a uma comunidade fortemente integrada, capaz de prover aos indivíduos um substrato moral - trata-se da direção dominante do comunitarismo, particularmente a ala mais conservadora (M. Sandel, Bellah e A. MacIntyre); 2) centrada na idéia de participação, denunciando a ruptura liberal entre o privado e o público, direcionado-se para a formação de uma comunidade democrática e solidária - aqui, poderia ser incluído um amplo rol de nomes, desde C. Taylor, passando-se por Habermas e chegando até em Marx. As duas posturas, embora não de modo estático e inflexível, são orientações vinculadas ao discurso comunitarista que busca demonstrar que a participação ativa do cidadão exoge um prévio compromisso com uma identidade coletiva (Echeverría, 1996, p. 7).

Tomando como exemplo Charles Taylor, este resgata a tese de Herder, afirmando que cada um de nós tem uma maneira própria de ser humano e cada um há de viver sua própria vida conforme pautas que só podem ser referidas sobre si. Ele reforça defendendo que a tese se aplica também aos povos, que teriam também uma identidade original e específica, sendo que a identidade individual (de cada um) não pode moldar-se senão no contexto de uma comunidade de língua, tradição e cultura próprias em que está inserida (Echeverría, 1996, p. 13).

De acordo com Cecília C. Lois (2001, f. 219-220), pode-se dizer que o principal ataque dos comunitários aos liberais esta na idéia de que estes situam o problema em bases erradas. Já que para os comunitários, aqueles que se preocupam com questões de justiça não devem olhar para o exterior mas para dentro de sua comunidade e descobrir as respostas em suas rotinas implícitas. A justiça das instituições estaria no fato de se viver de acordo com estas práticas compartilhadas, ações que deverão estar centradas no bem comum. O que é bom para nós deve ser bom para a comunidade e vice-versa. Mas é essencial que se privilegie o bem comum.

O Centro Da Polêmica

Os liberais partem da idéia de que nas condições modernas de pluralismos de valores, somente o princípio geral da igualdade de direitos, liberdades e oportunidades pode servir como pauta normativa da justiça. Os comunitários respondem que é preciso um referencial prévio, um horizonte de valores comunitariamente compartilhados para se decidir sobre questões de justiça numa sociedade. Por isso 1) colocam os valores da comunidade e suas orientações à frente dos atributos do universalismo; 2) dão prioridade à noção de bem comum na fixação de critérios de justiça; e 3) fazem a inevitável referência aos determinantes contextuais e à tradição para a criação e imposição de normas (Echeverría, op. cit, p. 17).

Para J. Rawls, é um exagero posicionar o contexto social de modo a determinar e definir a personalidade do indivíduo (Lois, op. cit., f. 220). Michael Sandel, Liberalism and the Limits of Justice (1982), opõe ao eu desvinculado de Rawls, um eu demarcado por um determinado horizonte de representação de valores (Echeverría, op. et loc. cit). Para este comunitário, a percepção da própria identidade está relacionada ao sentido de pertença a um marco comunitário e se desenvolve pela participação nesse mesmo marco, e unicamente através dele é que se pode definir e perseguir o Bem. Uma boa política depende do que podemos conhecer em comum - um bem que não podemos conhecer isoladamente. O que também é sustentado por C. Taylor, o agente moral autônomo só pode desenvolver sua identidade num determinado tipo de cultura e sociedade (Echeverría, op. cit, p. 18).

Assim, o projeto comunitarista, segundo seus defensores, apóia-se não só no caráter ilusório do sujeito independente, como também e paradoxalmente, na necessidade de uma base comunitária para o projeto de autorealização do próprio sujeito autônomo (Idem, p. 19).

Certo é que os comunitários tocam num ponto nervrálgico do liberalismo: o Estado tem a responsabilidade de promover instituições e atividades que possam tornar possível uma vida boa ou deverá manter-se estritamente nos conflitos de direitos? Contudo, cabe advertir que os liberais não defendem a não intervenção em todos os âmbitos - o limite da intervenção está na justiça. Mas aqui, observa Echeverría (op. cit, p. 23), a tese liberal quase alcança a tese comunitária, ou seja, não é possível uma separação exata, pura, entre critérios de justiça e concepções do bem, porque a concepção do justo está guiada por um reconhecimento prévio.

Para os comunitaristas, a capacidade de escolha não se desenvolve no vazio, precisa ser promovida e orientada por uma estrutura cultural da sociedade. A autodeterminação precisa contar com uma pluralidade de opções, digamos, previamente estabelecidas. Mas, talvez, o tendão de Aquiles do comunitarismo reside no fato de que ele opera com uma noção homogênea e abstrata de comunidade, que encontra problemas quando se refere às pluralidades das comunidades reais (Echeverría, op. cit, pp. 28 e 29).

A Questão Da Cidadania ou Dos Direitos

Simplificando, os liberais dão primazia aos direitos individuais, que antecedem qualquer forma de deteminação coletiva; os comunitaristas colocam prioridade na forma de vida comunitária. Para estes, os comunitários, uma sociedade baseada meramente na garantia dos direitos individuais carece de força motivadora e integradora capaz de uma coesão solidária sufiente para manter a própria sociedade. Por este motivo julgam o projeto liberal demasiadamente débil para garantir e manter a estabilidade social, a legitimação política e a cidadania (Echeverría, op. cit, p. 29-30).

Embora, novamente, cabe advertir que o liberalismo não exclui a idéia do bem, especificamente os bens primários, aqueles necessários aos cidadãos para que possam ser considerados como pessoas livres e iguais, com liberdade para esclherem quais são os seus projetos vitais, sem que isto seja imposto pelos outros (sociedade). O liberal, toamando Rawls como modelo, não abre mão de certos valores de cooperação social, como o civismo, a tolerância, a racionalidade e o sentido de eqüidade. Mas são valores que não implicam a promoção de uma determinada doutrina abrangente sobre a outra (cf. Echeverría, op. cit, p. 25-27).

Os comunitários apresentam pontos evidentes de que as sociedades democráticas contemporâneas precisam de fundamentos integradores, de uma cultura política capaz de prover bases para o compromisso cívico e a solidariedade, para afastar a alienação, a apatia política e os comportamentos não solidários e destritutivos. Sem embargo, a lógia universalista implica reconhecer jurídica e institucionalmente os direitos fundamentais aos cidadãos e aos não cidadãos; e nos leva a uma concepção kantiana de sociedade cosmopolita, uma vez que todos são afetados por nossas decisões e, portanto, temos de considerá-los com direitos a tomar parte nelas (cf. Echeverría, op. cit, p. 36-37).

REFERÊNCIA:

BELL,Daniel. Communitarianism. In: ZALTA, Edward N.(ed.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy. 2001. Disponível em: ‹http://plato.stanford.edu/entries/communitarianism/›. Extraído em: 12 ago. 2002.

ECHEVERRÍA, Javier Peña. Identidad comuntitaria y universalismo. Crítica, Londrina, v. 2, n. 5, p. 5-54, out./dez. 1996.

LOIS, Cecília Caballero. Uma teoria da constituição: justiça, liberdade e democracia em John Rawls. 2001. Tese (Doutorado em Direito) - Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.


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