IN MEMORIAN

Autor: Iwan Th. Halasz

Eis como seria uma entrevista atualizada com o primeiro radioamador brasileiro: padre Roberto Landell de Moura, falecido em 1928.

Dezessete Perguntas e Respostas sobre o radioamadorismo no início do século.

Ao tomar conhecimento do lançamento do primeiro Handbook do Radioamador, editado no Brasil, o padre Roberto Landell de Moura recebeu o autor do handbook em seu shack, ao lado da casa paroquial, entre um aglomerado de componentes e montagens, e concedeu-lhe a seguinte entrevista exclusiva.

Pergunta: Enquanto os outros pioneiros experimentavam com transmissores e receptores separados, um no local de transmissão e o outro no local de recepção, você partiu logo para transceptores conjugados. Por quê?
Padre Roberto: A finalidade de minhas experiências era a comunicação. E toda comunicação deve ser bilateral. Nada nos adiantava tentar comunicar pelo rádio em um sentido, para ter resposta via linha telefônica. Se já é usada a linha telefônica, não faria sentido nos esforçarmos com o rádio, pois a própria linha já permitia a comunicação bilateral.

PERGUNTA: Estou vendo que você operou logo com transceptores duo- banda. E não eram como os de VHF/UHF, com proporção de freqüências de um para três, mas nos dois extremos do espectro de ondas eletromagnéticas: abaixo de 1 MHz e acima de centenas de terahertz.
Padre Roberto: Lembre-se de que em 1904 eu não dispunha nem de válvulas eletrônicas, nem de transistores para produzir energia de radiofreqüênda ao longo de todo o espectro. Tive que me satisfazer com a produção de energia por meios puramente elétricos (faiscagem com a bobina de Ruhmkorff) e com a emissão de luz (excitação do tubo de Crookes pela alta tensão do enrolamento secundário do transformador de Ruhmkorff).

PERGUNTA: Como você chegou à idéia de alimentar um tubo de Crookes com a bobina de Ruhmkorff?
Padre Roberto: Eu sempre tive fascinação por transmitir fonia em lugar de telegrafia. Uma das experiências que fiz nesse sentido foi alimentar o primário da bobina de Ruhmkorff com a bateria através de um microfone eletromecânico com diafragma de metal, que tocava uma barra de metal, ao invés do manipulador, a fim de modular a faiscagem no secundário. Mas a experiência não deu resultado aproveitável.

PERGUNTA:Por quê?
Padre Roberto: Acontece que não somente o contato brusco entre o diafragma de metal e a barra, mas também a faiscagem totalmente irregular introduziram distorção intolerável na modulação de áudio, o que impossibilitou a compreensão da voz na recepção. Posso dizer que a DHT (Distorção Harmônica Total) ultrapassou a casa dos 80%.

PERGUNTA: Foi por isso que você substituiu o centelhador pelo tubo de Crookes?
Padre Roberto: Exatamente. O tubo de Crookes prometeu uma variação mais linear da intensidade de emissão com a modulação. O preço que tive de pagar por isso era que o alcance da comunicação foi limitado pela condição de visibilidade entre os pontos de transmissão e recepção, devido ao comprimento de onda da radiação luminosa. Estive operando com a luz azulada do tubo de Crookes, com comprimento de onda de 4 500Â (Ângstrõm) - 450 nm (nanômetros). Por isto escolhi para os meus testes o trecho da avenida Paulista ao Alto de Santana, em linha de visibilidade, numa distância de 8km.

PERGUNTA: Você calculou sua freqüência de operação?
Padre Roberto: Claro que calculei. Antes de tudo, converti a velocidade da luz em nanômetros por segundo: 300 OOO km/s 300 000000 mis 300000000000 mmis 300 000000000 000 pm/S 300000 000 000000 000 nmls Depois dividi este número por 450 nm, obtendo como resultado 6,6 x 1014 Hz, ou seja, 660 THz> aproximadamente. É realmente um número assustador.

PERGUNTA: Roberto, você acabou de dizer que uma das experiências de transmitir fonia era com a bobina de Ruhmkofff. Qual foi a outra?
Roberto: Para produzir ondas moduladas por voz, que não fossem a luz como o tubo de Crookes, e que não tivessem a distorção elevadíssima causada pelas ondas amortecidas como no Ruhmkorff, e não dispondo ainda, na época, de válvulas eletrônicas amplificadoras, que somente foram inventas em 1906 por Lee de Forest, eu só dispunha de duas opções: o alternador de Alexanderson e o arco voltaico de Poulsen, ambos capazes de produzir ondas não-amortecidas, que permitem modulação sem distorção apreciável.
Acontece que a construção do alternador de Alexanderson teria exigido investimentos, especialmente de ordem mecânica, e sua modulação teria sido bem mais difícil. Por outro lado, o arco voltaico pode ser realizado por meios amadorísticos, e sua modulação é fácil.
Assim, minha escolha recaiu sobre o arco voltaico, que apresenta resistência negativa, compensando as perdas de resistência do circuito e possibilitando a manutenção de amplitude de oscilação em nível constante.

PERGUNTA: Como você fez modular o arco voltaico?
Padre Roberto: Alimentei o arco voltaico com uma tensão de 40 V. Ele puxou aproximadamente a 10 A. Fiz um bocal de forma cônica, concentrando o fluxo de ar vibrante produzido pela voz sobre o arco. Com a variação da pressão de ar, variou a corrente que atravessava o arco, transformando o CW de onda não-amortecida, produzido pelo arco, em onda modulada em amplitude conforme a voz. O índice de modulação não era muito elevado, porém a recepção era bem inteligível com a galena. O preço que tive que pagar por isso era uma potência de entrada de 400 W.

PERGUNTA: Era possível também a demodulação da luz emitida pelo arco voltaico com a célula de selênio?
Padre Roberto: Claro que era possível dentro da linha de visibilidade. Porém, esta não era a minha finalidade principal, pois o alcance das ondas eletromagnéticas não-amortecidas era muito maior, porque não dependia da linha de visibilidade.

PERGUNTA: Os seus transceptores, objetos das patentes norte- americanas 775 337 e 775 546, ambos de 22 de novembro de 1904, apresentam fios de cobre sobre o tubo de Crookes e uma grelha metálica sobre a placa base, que pode ser considerada uma espécie de plano de terra vertical. Isto quer dizer que você aproveitou também ondas eletromagnéticas não luminosas?
Padre Roberto: Você acertou. Para aproveitar as faiscas da bobina de Ruhmkorff, que alimentou o tubo de Crookes, utilizei esta antena que denominei, na época, "aparelho de ondas luminosas eletromagnéticas".

PERGUNTA: Mas, nesse caso, o lóbulo de irradiação máxima não foi para os lados do monopolo, mas na própria direção do monopolo. Como foi possivel isto?
Padre Roberto: Foi devido ao seu dimensionamento. Ao invés de compará- la com o monopolo vertical de um quarto de onda com plano de terra, como você fez em sua pergunta, eu a compararia com a wave antenna ou com antenas helicoidais, todas também com irradiação preferencial na direção axial. Em outras palavras, ela deve ser considerada endfire, e não broadside.

PERGUNTA: Como você chegou à idéia do oscilador telegráfico?
Padre Roberto: Quando captamos a telegrafia do centelhador da bobina de Ruhmkorff com o coesor/descoesor, era dificílimo distinguir "marca" de "espaço" e ainda mais dificil distinguir traço de ponto. Assim, fui obrigado a projetar um oscilador de áudio, cujos sinais seriam ligados/ desligados pelo coesor/descoesor.

PERGUNTA: Como você fez um oscilador de áudio sem utilizar uma válvula amplificadora, que, como você já mencionou, só foi inventada dois anos mais tarde, em 1906, por Lee de Forest?
Padre Roberto: Em vez de fazer a realimentação com amplificação eletrônica, eu a fiz com amplificação elétrica. Esta idéia de amplificação elétrica não era nova. Ela foi utilizada desde 1896 na Europa, no que nós chamamos de telefone-difusão. Colocaram vários microfones na ópera ou no estúdio, a cada microfone foi ligado um fone, cada fone excitou vários outros microfones, formando um sistema amplificador/distribuidor, que alimentou a linha telefônica dos assinantes do serviço.
E óbvio que não se podia aumentar o número de estágios amplificadores em cascata, pois a distorção harmônica ter-se-ia tornado intolerável. Mas utilizando, por exemplo, dez microfones no estúdio e cada fone alimentando dez microfones secundários, haveria cem microfones alimentando a linha telefônica de mil assinantes, que era suficiente para atender à demanda. Como se vê, este foi o precursor da radiodifusão sonora antes do advento da válvula termoiônica. Daqui ao meu oscilador de áudio foi um passo.
Tinha um microfone de carvão muito sensível e um fone de ouvido bem eficiente. Como resultado destas duas características, pude realimentar, com o fone de ouvido, energia maior do que a que ele necessitava para produzir o som original no microfone. Bastava ligar os dois à bateria e ao coesor/descoesor para ouvir os sinais de telegrafia em tom de áudio interrompido.

PERGUNTA: Como você escolheu a freqüência de áudio a ser ouvida?
Padre Roberto: Entre o fone de ouvido e o microfone de carvão, havia uma câmara de ressonância, de forma cônica. Esta, todavia, tinha pouca influência sobre a freqúência de oscilação que foi determinada pelas freqüências de ressonância do fone e da membrana do microfone. Assim, só pude influir na freqüência através destes dois elementos.

PERGUNTA: Você utilizou seu gerador de áudio também como side toine na transmissão?
Padre Roberto: Claro que utilizei. Como você sabe, é muito difícil transmitir telegrafia sem ouvir o som dos traços e pontos transmitidos. Assim, eu simplesmente liguei o conjunto fone/microfone em paralelo com o primário bobina de Ruhmkorff, alimentado pela mesma bateria e pelo mesmo manipulador. Era uma beleza transmitir ouvindo o side tone.

PERGUNTA: Roberto, mesmo depois de implantar a rede de estações radiotelegráficas costeiras em 1912, com oito estações, desde Fernando de Noronha até Junção, no Rio Grande do Sul, você jamais explorou comercialmente suas patentes e invenções. Como você explica isto?
Padre Roberto: A continuação do desenvolvimento, na época, exigiu grandes investimentos, especializações técnicas e estrutura empresarial- industria1, para garantir a rentabilidade, reinvestimento em pesquisas e captação de novos recursos.
Quem partiu para esta linha foi Marconi, através de sua empresa The Marconi Company, sediada na Inglaterra. Ele era um empresário nato, que conseguiu levantar todos os recursos por todos os meios para assegurar o capital necessário à continuação das experiências, que eram muito custosas e cujos investidores não podiam esperar o retorno de seu capital a curto prazo.

PERGUNTA: Nós gostaríamos de ilustrar esta entrevista com alguns desenhos de seu transceptor, do microfone metálico e do oscilador telegráfico. Você poderia nos emprestar os desenhos?
Padre Roberto: Pois não. Você pode levar estes desenhos, e também a cópia da minha patente norte-americana n. 775 846, que me assegurou direitos por dezessete anos, até 1921, que, porém, como você bem observou, jamais foi explorada comercialmente. Assim, o custo das patentes e os honorários para o meu agente de patentes era um péssimo investimento. Afinal de contas, quem não nasceu para ser empresário, jamais será um bom empresário. Eu tenho sangue de radioamador, mentalidade de radioamador, curiosidade de radioamador e me orgulho de ter sido o primeiro radioamador brasileiro. Para você, um dos meus inúmeros sucessores, desejo muito sucesso com o seu handbook.

Ref.: Handbook do Radioamador, Iwan Th. Halasz