FORMAÇÃO DE CONCEITOS
DE LEITURA: RELAÇÃO COM A COGNIÇÃO E OS PROCESSOS DE
SIGNIFICAÇÃO
Este
artigo pretende ser um instrumento de reflexão sobre a formação de conceitos de
leitura de futuros profissionais e formadores, envolvidos com a tarefa de
ensinar leitura em sala de aula, pois compreendemos a formação acadêmica como
mais uma fase formativa do ser humano que, em interação com os demais indivíduos
sociais, cria as diferentes possibilidades de construção e reconstrução de seus
conceitos sobre as coisas do mundo. Tal constatação no faz repensar a leitura
como fator primordial na construção do indivíduo como sujeito da história e da
cultura.
1. INTRODUÇÃO
Os desafios encontrados na área do
ensino de leitura no Brasil são inúmeros, basta ver os resultados das provas do
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), realizadas nos últimos anos. Essa é uma
realidade que nos obriga refletir a respeito da formação de conceitos de leitura
adquiridos por sujeitos responsáveis
pelo ensino/aprendizagem de leitura em sala de aula. Talvez, o grande
desafio seja as concepções de leitura dos professores e futuros professores,
adquiridos durante a vida escolar e acadêmica.
Uma das saídas para esse impasse
parece ser o uso da psicolingüística como um ponto interdisciplinar entre a
psicologia cognitiva e a lingüística, com o propósito de investigar a interação
entre pensamento e linguagem. Porém, é um desafio questionar no indivíduo
escolarizado ou pouco-escolarizado, a formação de conceitos de qualquer
natureza. No entanto, é um caminho
compreender quais são esses processos cognitivos elaborados pelos
indivíduos ao realizarem determinadas leituras.
Pesquisas feitas mostram-nos que, nos últimos anos, o
funcionamento cognitivo da mente tem sido objeto de estudos da epistemologia, da
psicologia ou das ciências cognitivas a partir de diferentes teorias. Essa
realidade tem trazido muitas contribuições para a compreensão dos processos do
pensamento e a formulação de conceitos e modelos de aprendizagem. Por sua vez,
os estudos sobre o funcionamento cognitivo de pessoas em culturas diferentes
ampliaram os métodos experimentais e as possibilidades de construção de
explicações e generalizações.
Sabe-se também que a
linguagem e a tese de uma mediação simbólica entre os processos cognitivos e o
mundo sócio-cultural sempre estiveram integradas aos trabalhos
sócio-interacionais. Esses estudos são responsáveis pela manutenção da hipótese
essencial: a cognição individual constitui-se pela interiorização das formas
sociais das interações humanas. Portanto, qualquer investigação que pretenda
enfocar as relações entre pensamento e linguagem ou pensamento e cultura terá
que conhecer a obra vygotskyana.
Uma premissa de Vygotsky (1998) é de
que o funcionamento mental no ser humano é oriundo de processos sociais, pois
não se pode estudar o comportamento do indivíduo em contexto isolado, mas em
interação com outros indivíduos. Afirma também que esse processo de interação
social é responsável por transformações no comportamento, pois os processos
sociais e psicológicos são moldados por formas de mediação e se dão a partir da
transformação de objetos em signos culturais.
Por sua vez, D’Andrade
(1995) construiu um modelo de processamento cognitivo da mente comum, que
consiste de um esquema cognitivo composto por percepções, crenças, sentimentos,
desejos, intenções e decisões, compartilhados intersubjetivamente por
determinado grupo social. Esse esquema é uma forma de entender como formações
sócio-culturais compartilhadas servem de apoio às relações e ações sociais.
“O modelo funciona basicamente, na forma de um circuito de alimentação e
processamento de idéias e qualidades de idéias, partindo do ato perceptivo,
passando pela cognição em seus diversos aspectos e desembocando na conduta
consciente”. ( Richter, Moreira e Souza 2003:163)
Dessa forma, a análise, a interpretação e a descrição dos mecanismos de formação de conceitos, segundo uma abordagem sócio-cognitiva, deve fazer uso desse modelo de processamento cognitivo de D’Andradre (1995) como também dos estudos sobre formação de conceitos numa perspectiva sócio-cultural de Vygotsky (1998).
As relações entre cognição e
discurso ou pensamento e linguagem tornaram-se objeto de estudo de várias
disciplinas derivadas da lingüística. Essa questão faz-nos refletir sobre a
formação de conceitos de leitura e as palavras que a designam, ao mesmo tempo
que revela a complexidade das relações entre conceitos e
palavras.
Para Vygotsky
(1993:104),
“ uma
palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério
da “palavra”, seu componente indispensável. ... do ponto de vista da psicologia,
o significado poderia ser visto como uma generalização ou um conceito. E como as
generalizações ou os conceitos são inegavelmente atos de pensamento, podemos
considerar o significado como um fenômeno do pensamento.”
Tais colocações nos levam a crer que
o significado das palavras é um fenômeno do pensamento (verbal) ou da
significação – uma união da palavra com o pensamento. Por outro lado, a certeza
de que o significado das palavras evolui, mostra-nos a natureza dinâmica do
significado. Portanto, a principal idéia dessa assertiva é que a relação entre o
pensamento e a palavra é um processo num movimento de
vaivém.
Ciências ligadas à área da
cognição, defendem como primordial
estudos que envolvam a organização conceitual, a linguagem e a sociedade. Para
Oliveira (1999:101),
“um
conceito não é uma entidade isolada
identificada por um conjunto de propriedades, um conceito também constitui-se
das relações com outros conceitos, que formam redes ou teorias, as quais, por
sua vez, têm cada conceito
como elemento
constitutivo”
Concordando com Vygotsky (1998),
sobre a abordagem histórico-cultural em psicologia, Oliveira reforça que existem três dimensões nos conceitos
vygotskyanos. A primeira dimensão é a idéia de libertação dos homens mediante o
processo de abstração e generalização possibilitado pela linguagem. É a
diferença que existe entre os seres humanos e os outros animais, pois os homens
refletem a realidade, através da experiência, baseada na função da linguagem
como reflexo da realidade. Então a palavra é um ato verbal do pensamento. A
segunda dimensão é a dos conceitos como um sistema complexo de inter-relações.
Essa visão trata melhor a
complexidade da organização conceitual na mente humana. Trabalha com relações e
estruturas aplicáveis a todas as espécies de conceitos ( esfera da ciência,
esfera da vida cotidiana e do senso comum). Nessa concepção, os conceitos estão
organizados em um todo estruturado, em uma rede de significados, em que há
relações entre os elementos. A terceira dimensão é a dos conceitos não como
entidades estáveis, mas como processos
de construção de significação entre os seres humanos, através da
interação. É através da interação humana
com objetos de ação e de conhecimento, com signos e significados
culturais que se constrói significados mediante processos de negociações
interpessoais.
Os novos paradigmas que
elucidam a questão do processo ensino/aprendizagem de leitura são frutos das
pesquisas realizadas em várias áreas do conhecimento, especialmente em
lingüística, psicolingüística, sociolingüística, psicologia cognitiva e teoria
da recepção. A partir desses estudos, a leitura passou a ser vista como produção mediada pelo texto em seu
processo de significação e de construção do conhecimento. “Trata-se de uma
concepção que envolve o indivíduo, enquanto ser psicológico, que desenvolve suas
habilidades cognitivas, e ser social, inserido em determinadas práticas
histórico-sociais de leitura.” (MEC,1996:20).
Segundo o texto citado, uma
concepção de leitura envolve a interação com o vasto universo de conhecimento do
aluno, incluindo seu conhecimento prévio, pois o sentido não está pronto no
texto. Ele é produzido a partir de articulações e atividades que levem o aluno a
se inserir no mundo da linguagem do texto. Esse fundamento, poderá construir um
leitor crítico, capaz de se posicionar diante de fatos e usar essa habilidade
para se posicionar no mundo e adquirir uma compreensão do mundo que o cerca.
Pode-se reconhecer que essa
abordagem está calcada na teoria
vygotskyana que permite levar o aluno e o professor a conceberem a
leitura como processo de construção do sentido entre o leitor (ser individual e
social), o texto (produto individual, determinado histórica e socialmente) e o
autor (sujeito condicionado historicamente) e as práticas sociais e culturais
nas quais ocorre essa interlocução.
Concordando com Vygotsky,
Kleiman (1989) afirma que a concepção de leitura enquanto interação assume que o
sentido não é algo pronto no texto, mas é produzido pelo leitor a partir de seus
conhecimentos prévios, de seus objetivos e de sua ação sobre a materialidade
lingüística presente no texto.
5. INTERAÇÃO NA LEITURA: PROCESSOS
DE INFORMAÇÃO E CONCEITUAÇÃO
Os mecanismos envolvidos no processo
de leitura nem sempre são conhecidos ou considerados por aqueles que estão
envolvidos com o ensino/aprendizagem da compreensão de textos. Ter consciência
dos fatores cognitivos que estão envolvidos nesse processo é de extrema
relevância e instrumento de auxílio para o professor.
O fator escolaridade, nesses
estudos, certamente está relacionado com o nível de qualidade nos processos de
informação e elaboração de conceitos propostos por teóricos das áreas da
cognição.
Segundo Farnhan-Diggory (1992), há
dois tipos básicos de processamento de informação: top-down (descendente)
e o botton-up (ascendente). O primeiro faz uma leitura dedutiva,
não-linear, das informações. Sua direção é da macro para a microestrutura do
texto e da função para a forma. O segundo faz uma leitura indutiva, linear das informações, construindo o
significado através da análise e síntese do significado das
partes.
A psicologia cognitivista enfatiza a
abordagem descendente, em seus modelos de aprendizagem. Tal abordagem privilegia
o leitor que apreende rapidamente as idéias gerais e essenciais do texto, é
fluente, mas deve ter cuidado para não fazer excessos de adivinhações do
significado geral. Conseqüentemente, é o tipo de leitor que faz mais uso de seu
conhecimento prévio do que da informação propriamente dita do texto. O segundo
tipo de leitor é aquele que enfatiza o processo ascendente, construindo o
significado, principalmente, com base nos dados do texto, fazendo pouca leitura
ou quase nada nas entrelinhas do texto, detendo-se vagarosamente nas palavras e
tendo dificuldade para sintetizar as idéias mais importantes.
No processo descendente, o leitor
estimula os chamados pacotes de esquemas , isto é, conhecimentos já
estruturados, acompanhados de instruções para determinado uso. Esses pacotes de
esquemas ligam-se a outros esquemas ou subesquemas e acionam uma rede de inter-relações que
são ativadas no ato da leitura, produzindo significações e situações novas, da
mesma forma que um indivíduo é capaz de entender e produzir sentenças nunca
antes ouvidas.
Segundo Kato
(1995:41),
“fazendo-se
uma analogia com modelos estritamente lingüísticos e psicolingüísticos, podemos
dizer que o pacote de conhecimento está para a gramática da competência assim como as instruções
para seu uso estão para as estratégias psicolingüísticas que determinam a
compreensão e a produção de sentenças.”
O processamento descendente
(top-down) pode ocorrer no nível da palavra, da frase ou do texto. No
nível da palavra, o leitor pode seguir algumas pistas: letras iniciais, ou
finais, ou ainda a extensão da palavra (input visual) bem como pode acionar o
seu léxico mental e as regras de composição grafêmica e de formação de palavras.
Por exemplo: feliz, infeliz, felizmente, infelizmente. Como vemos, a possibilidade de leitura descendente
está relacionada à familiaridade da palavra com nosso léxico mental.
No nível da frase, o processamento
descendente segue critérios semânticos vinculados a esquemas já conhecidos. Por
exemplo: Casaco de homem de vaca. É possível, numa abordagem descendente,
apenas a segmentação casaco de
homem/ de vaca, porque a segmentação codifica uma situação mais aceitável ,
remetendo a um esquema conhecido
por muitos leitores.
No nível do texto, o leitor
usa esquemas acionados por palavras ou expressões temáticas e também esquemas
que codificam estruturas retóricas. Vejamos um exemplo com a primeira estrofe
(adaptada por mim) da canção Máscara negra, de Zé Kéti e Pereira
Mattos.
Tanto riso, ó! Tanta alegria!
Mais de mil palhaços no
salão
Arlequim está procurando pela
Colombina
No meio da multidão.
Ele a encontrou chorando, vestida de
preto
Carregando uma cruz. (adaptação minha)
No texto acima, arranjado para
provocar um efeito instigante ao leitor, as expressões tanto riso, tanta
alegria, palhaços, salão,
Arlequim, Colombina fazem parte de uma temática que aciona o esquema
relativo ao evento carnaval. Porém, as palavras chorando, vestida de preto,
carregando uma cruz causam um inesperado que contradiz a expectativa do leitor
que possui um conhecimento armazenado
da cena descrita, pois no texto original a letra diz o seguinte: Arlequim
está chorando pelo amor da Colombina no meio da multidão.
Para o leitor que não possui o
esquema carnaval armazenado na memória, ou o conhecimento sobre o amor de
Arlequim (personagem fictícia) por Colombina ( personagem fictícia) que traiu
seu amado no carnaval, a leitura pode passar a ser ascendente, desacelerando o
ritmo da leitura, porém perderá muito na atribuição de
significações.
Na medida em que a compreensão do
inesperado acontece, os esquemas e
as variáveis são preenchidas, constituindo-se em representação mental
consciente. As informações passam a ser velhas e, estando no nível do
consciente, possibilitam novas informações.
O processamento de leitura top-down
que aciona esquemas já codificados assemelha-se à chamada concepção prototípica
do significado, denominada pela psicóloga norte-americana Eleanor Rosch no
início da década de 70.
A concepção prototípica faz parte
dos processos cognitivos que fazem correlações com aspectos do processo de
categorização, isto é, “ quanto mais típico um caso – um exemplar ou um
subconceito – mais rapidamente ele é categorizado, e menor é o número de
erros”. (Oliveira:1999:24) A leitura, nessa forma de processo, parte de um
conceito codificado em termos de situações ou eventos típicos que instanciam
esse conceito.
Sendo assim, “o leitor mais
competente é aquele que faz mais adivinhações acertadas e que o leitor imaturo é
aquele que faz uma leitura linear com pouca predição”.
(Kato,!995:53)
Nesse sentido, a compreensão não se
encontra pronta, mas em funcionamento constante e possível de ser ativada. Nessa
perspectiva de leitura, ganham relevância a memória, a percepção, o raciocínio e
a linguagem. Tal concepção reconhece que a leitura é um processo que começa no
momento em que o cérebro recebe a informação visual e termina quando esta
informação é associada aos conhecimentos prévios (experiências de mundo e de
linguagem) que o leitor adquiriu. Podemos dizer que ganham força os conjuntos de
relação cognitivas que se encontram armazenadas na mente, formando uma rede de
informações que são acionadas e determinam a leitura.
O tipo de leitura assumido
pelo professor permite definir uma concepção de leitor que vai ser originado
desse ensino- aprendizagem. Portanto, se optarmos pelo conceito de leitura como
um processo descendente (top-down), o leitor não é mais visto como um repetidor
passivo, mas como um produtor de significados, pois estará acionando seu
potencial criativo e seus conhecimentos prévios e inserindo-se no mundo
sócio-cultural.
Isso é apenas um fragmento de uma
concepção clara de leitura da qual
os envolvidos durante o ato de ler poderão repensar. Ao professor
competente e criativo, caberá a tarefa de articular atividades significativas
que induzam o aluno a utilizar e desenvolver sua capacidade cognitiva e
metacognitiva, já que tomará consciência do que faz e por que o
faz.
Então, a leitura e a linguagem,
compreendidas como lugar de interação humana e social, constituirão a si e ao
sujeito não um conjunto de códigos e normas irrevogáveis, mas um trabalho ( ação
para transformar) social e sempre em curso. Portanto, se a aprendizagem da
leitura quiser evoluir para o desenvolvimento do sujeito, seu aqui e agora tem
de ser respeitado e valorizado. Seus conhecimentos prévios de mundo e de
linguagem devem ser vistos não como síntese do passado, mas como proposta de
contribuição para leituras futuras.
Dessa forma, a leitura sendo vista
não como ato isolado de um indivíduo diante da escrita do outro indivíduo, supõe
a imersão no contexto social da linguagem e da aprendizagem, através da
interação com o outro. Leitor e autor, sujeitos com suas respectivas histórias
de leituras de mundo, são responsáveis pela construção de transformações a
partir da tomada de consciência da importância de ser cidadão no mundo e do
mundo.
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