II - OS ARRUINADOS PELO ÊXITO

Volume XIV das Obras Completas de Sigmund Freud.

 

O trabalho psicanalítico proporcionou-nos a tese segundo a qual as pessoas adoecem de neurose como resultado de frustração. Referimo-nos à frustração da satisfação de seus desejos libidinais, fazendo-se necessária uma digressão a fim de tornarmos a tese inteligível. Para que uma neurose seja gerada, deve haver um conflito entre os desejos libidinais de uma pessoa e a parte de sua personalidade que denominamos de ego, que é a expressão do seu instinto de autopreservação e que também abrange os ideais de sua personalidade. Um conflito patogênico dessa espécie só ocorre quando a libido tenta seguir caminhos e objetivos que o ego de há muito superou e condenou e, portanto, proibiu para sempre, e isso a libido só faz se for privada da possibilidade de uma satisfação ego-sintônica ideal. Por isso, a privação, a frustração de uma satisfação real, é a primeira condição para a geração de uma neurose, embora, na verdade, esteja longe de ser a única.

Parece ainda mais surpreendente, e na realidade atordoante, quando, na qualidade de médico, se faz a descoberta de que as pessoas ocasionalmente adoecem precisamente no momento em que um desejo profundamente enraizado e de há muito alimentado atinge a realização. Então, é como se elas não fossem capazes de tolerar sua felicidade, pois não pode haver dúvida de que existe uma ligação causal entre seu êxito e o fato de adoecerem.

Tive oportunidade de obter uma compreensão interna (insight) da anamnese de uma mulher, que me proponho descrever como algo típico dessas ocorrências trágicas. Era bem nascida e bem educada; no entanto, ainda muito jovem, não pôde conter seu gosto de viver; fugiu de casa e perambulou pelo mundo em busca de aventuras, até travar conhecimento com um pintor, que não só pôde apreciar seus encantos femininos mas também captar, apesar de sua degradação, as qualidades mais requintadas que ela possuía. Levou-a para viver com ele e ela provou ser uma companheira fiel, parecendo apenas carecer de reabilitação social para alcançar uma felicidade completa. Após muitos anos de vida em comum, o pintor conseguiu fazer com que a família dele se reconciliasse com ela; estava então preparado para torná-la sua esposa legítima. Foi nesse momento que ela começou a desmoronar. Descuidou da casa da qual agora estava prestes a tornar-se dona por direito; imaginou-se perseguida pelos parentes dele, que desejavam fazê-la parte da família; proibiu ao amante, com seu ciúme insensato, todo contato social; prejudicou-o em seu trabalho artístico, e logo sucumbiu a uma doença mental incurável.

Em outra ocasião, defrontei-me com o caso de um respeitável senhor, professor universitário, que nutria havia muitos anos o desejo natural de ser o sucessor do mestre que o iniciara nos estudos. Quando esse professor mais antigo se aposentou e os colegas informaram ao pretendente que ele fora escolhido para substituí-lo, começou a hesitar, depreciou seus méritos, declarou-se indigno de preencher o cargo para o qual fora designado, e caiu numa melancolia que o deixou incapaz de toda e qualquer atividade durante vários anos.

Não obstante esses dois casos serem diferentes sob outros aspectos, existe uma concordância no seguinte ponto: a doença seguiu de perto a realização de um desejo e pôs termo a toda fruição do mesmo.

A contradição entre tais experiências e a norma segundo a qual aquilo que induz à doença é a frustração não é insolúvel. Desaparecerá se estabelecermos uma distinção entre uma frustração externa e uma interna. Se o objeto no qual a libido pode encontrar sua satisfação está contido na realidade, isso constitui uma frustração externa. Em si, ela é inoperante, não patogênica, até que uma frustração interna se junte a ela. Esta última deve provir do ego, e deve disputar o acesso da libido a outros objetos, objetos estes que agora a libido procura apreender. Só então surgem um conflito e a possibilidade de uma doença neurótica, isto é, de uma satisfação substitutiva alcançada indiretamente por meio do inconsciente reprimido. Por conseguinte, a frustração interna está potencialmente presente em todos os casos, só que não entra em ação até que a frustração externa real tenha preparado o terreno para ela. Nos casos excepcionais em que as pessoas adoecem por causa do êxito, a frustração interna atua por si mesma; na realidade, só surge depois que uma frustração externa foi substituída por realização de um desejo. À primeira vista, há algo de estranho nisso, mas, por ocasião de um exame mais detido, refletiremos que não é absolutamente incomum para o ego tolerar um desejo tão inofensivo na medida em que ele só existe na fantasia e cuja realização parece distante; pelo contrário, porém, o ego se defenderá ardentemente contra esse desejo tão logo este se aproxime da realização e ameace tornar-se uma realidade. A distinção entre isso e as situações comuns na formação da neurose consiste meramente em que, via de regra, são as intensificações internas da catexia libidinal que transformam a fantasia, até então merecedora de pouca consideração e tolerada, num oponente temido, ao passo que nesses casos o sinal para a irrupção do conflito é dado por uma mudança externa real.

O trabalho analítico não encontra dificuldade alguma em demonstrar que são as forças da consciência que proíbem ao indivíduo obter a tão almejada vantagem proveniente da feliz mudança da realidade. Constitui tarefa difícil, contudo, descobrir a essência e a origem dessas tendências julgadoras e punitivas, cuja existência, onde não esperamos encontrá-las, tantas vezes nos surpreende. Pelas razões habituais, não examinarei o que sabemos ou conjecturamos em relação a casos de observação clínica, mas em relação a figuras que grandes autores criaram a partir de seu rico conhecimento da mente.

Podemos tomar como exemplo de pessoa que sucumbe ao atingir o êxito, após lutar exclusivamente por ele com todas as suas forças, a figura de Lady Macbeth, criada por Shakespeare. De início, não há qualquer hesitação, qualquer sinal de conflito interno nela, qualquer esforço senão o de vencer os escrúpulos de seu ambicioso, embora compassivo, marido. Ela se mostra pronta a sacrificar até mesmo sua feminilidade à sua intenção assassina, sem refletir no papel decisivo que esta feminilidade deverá desempenhar quando, posteriormente, surgir a questão de preservar a finalidade de sua ambição, alcançada através de um crime.

Vinde, espíritos sinistros

Que servis aos desígnios assassinos!Dessexuai-me, enchei-me, da cabeçaAos pés, da mais horrível crueldade!

(Ato I, Cena 5.)

 

…Bem conheçoAs delícias de amar um tenro filhoQue se amamenta: embora! eu lhe arrancaraÀs gengivas sem dente, ainda quandoVendo-o sorrir-se para mim, o bicoDe meu seio, e faria sem piedadeSaltaram-lhe os miolos, se tivesse Jurado assim fazer, como jurasteCumprir esta empreitada. (Ato I, Cena 7.)

Apenas um leve e isolado frêmito de relutância dela se apossa antes do feito:

…Se no seu sono não lembrasse tantoMeu pai, tê-lo-ia eu mesma apunhalado!

(Ato II, Cena 2.)

Então, quando se torna Rainha pelo assassinato de Duncan, ela trai por um momento algo como um desapontamento, algo como uma desilusão. Não podemos dizer por que razão.

…Tudo perdemos quando o que queríamos,Obtemos sem nenhum contentamento:Mais vale ser a vítima destruídaDo que, por a destruir, destruir com elaO gosto de viver.

(Ato III, Cena 2.)

Não obstante, ela se mantém firme. Na cena do banquete que se segue a essas palavras, somente ela se conserva serena, encobre o estado de confusão do marido e encontra um pretexto para dispensar os convivas. E então desaparece de vista. A seguir, vêmo-la na casa de sonambulismo do último Ato, fixada nas impressões da noite do assassinato. Mais uma vez, como antes, procura incutir coragem ao marido:

Por quem sois, meu senhor, que vergonha!Um soldado com medo?Por que havemos de recear que alguém o saiba,se ninguém nos pode pedir contas?

(Ato V, Cena 1.)

Ela ouve a pancada na porta, que apavorou o marido depois do feito. Mas ao mesmo tempo luta por ‘desfazer a ação que não pode ser desfeita’. Lava as mãos, manchadas de sangue e que cheiram a sangue, e fica cônscia da futilidade da tentativa. Ela que parecia tão sem remorsos, parece ter sido abatida pelo remorso. Quando morre, Macbeth, que nesse meio tempo se tornou tão inexorável quanto ela no começo, encontra apenas um breve epitáfio para ela: É morta… Não devia ser agora.Sempre seria tempo para ouvir-seEssas palavras.

(Ato V, Cena 5.)

E agora nos perguntamos: o que foi que quebrantou esse caráter que parecia ter sido forjado do metal mais rijo? Terá sido somente a desilusão — o aspecto diferente revelado pelo fato consumado —, e devemos inferir que, mesmo em Lady Macbeth, uma natureza originalmente dócil e feminina foi levada a um ponto de concentração e de alta tensão que não pôde suportar por muito tempo, ou devemos procurar indícios de uma motivação mais profunda, que tornará essa derrocada mais humanamente inteligível para nós?

Parece-me impossível chegar a uma decisão. Macbeth, de Shakespeare, é uma pièce d’occasion, escrita para a ascensão de Jaime, até então Rei da Escócia. O enredo foi feito de encomenda e já fora trabalhado por outros escritores contemporâneos, de cuja obra Shakespeare provavelmente se utilizou, como costumava fazer. Apresentava notáveis analogias com a situação real. A ‘virginal’ Elisabeth, de quem se dizia que jamais fora capaz de ter filhos e que certa vez se descrevera a si própria como um ‘tronco estéril’, numa angustiosa exclamação pela notícia do nascimento de Jaime, foi obrigada por essa mesma esterilidade a fazer do rei escocês seu sucessor. E ele era o filho de Maria Stuart, cuja execução ela, embora relutantemente, ordenara, e que, apesar do toldamento de suas relações por causa de preocupações políticas, era não obstante do seu sangue e podia ser chamada de sua hóspede.

A ascensão de Jaime I foi como uma demonstração da maldição da esterilidade e das bênçãos da geração contínua. E a ação do Macbeth de Shakespeare baseia-se nesse mesmo contraste.

As Bruxas asseguram a Macbeth que seria rei, mas a Banquo prometeram que seus filhos herdariam a coroa. Macbeth se enfurece com esse ditame do destino. Não fica contente com a satisfação de sua própria ambição. Deseja fundar uma dinastia — e não ter cometido assassinato em benefício de estranhos. Esse ponto será negligenciado se a peça de Shakespeare for considerada apenas como uma tragédia de ambição. É claro que Macbeth não pode viver para sempre, e assim existe apenas uma forma para que ele invalide a parte da profecia que lhe é desfavorável — a saber, ter ele mesmo filhos que possam sucedê-lo. E ele parece esperá-los de sua indomável esposa:

Não concebas nuncaSenão filhos varões; tua alma indomávelO pede assim.

(Ato I, Cena 7.)

E é igualmente claro que, se for desapontado nessa expectativa, deverá submeter-se ao destino; do contrário, suas ações perdem toda finalidade e são transformadas na fúria cega de alguém condenado à destruição, que está resolvido a destruir de antemão tudo o que pode alcançar. Vemos Macbeth passar por esse processo, e no clímax da tragédia ouvimos o grito lancinante de Macduff, que com tanta freqüência é considerado ambíguo e que talvez possa conter a chave da mudança em Macbeth:

Ele não tem filhos!

(Ato IV, Cena 3.)

Não há dúvida de que isso significa: ‘Somente porque ele próprio não tem filhos é que pôde assassinar meus filhos.’ No entanto, algo mais pode estar implícito nisso e, acima de tudo, poderia pôr a nu o motivo mais profundo que não apenas força Macbeth a ir muito além de sua própria natureza, como também toca no único ponto fraco do caráter insensível de sua esposa. Se se examinar toda a peça, a partir do clímax assinalado pelas palavras de Macduff, ver-se-á que ela está repleta de referências à relação pai-filhos. O assassinato do bondoso Duncan não passa de parricídio; no caso de Banquo, Macbeth mata o pai, enquanto o filho se lhe escapa; e no de Macduff, ele mata os filhos porque o pai fugira dele. Uma criança ensangüentada e a seguir uma coroada lhe são mostradas pelas Bruxas na cena da aparição; a cabeça armada que é vista antes sem dúvida é o próprio Macbeth. Mas no segundo plano ergue-se a forma sinistra do vingador, Macduff, ele próprio uma exceção às leis da geração, visto que não nasceu de sua mãe mas foi arrancado de seu ventre.

Seria um exemplo perfeito de justiça poética à maneira de talião se a ausência de filhos de Macbeth e a infecundidade de sua Lady fossem o castigo pelos seus crimes contra a santidade da geração — se Macbeth não pudesse tornar-se pai porque roubara de um pai os filhos, e dos filhos um pai, e se Lady Macbeth sofresse o assexuamento que exigira dos espíritos do assassinato. Creio que a doença de Lady Macbeth, a transformação de sua impiedade em penitência, poderia ser explicada diretamente como uma reação à sua infecundidade, pela qual ela se convence de sua impotência contra os ditames da natureza, sendo ao mesmo tempo lembrada de que foi através de sua própria falta que seu crime foi roubado da melhor parte dos seus frutos.

Na Chronicle (1577), de Holinshed, da qual Shakespeare extraiu o argumento de Macbeth, Lady Macbeth é mencionada apenas uma vez como a esposa ambiciosa que instiga o marido ao assassinato para que ela possa tornar-se rainha. Não há menção a seu destino subseqüente nem ao desenvolvimento de seu caráter. Por outro lado, afigurar-se-ia que a transformação de Macbeth num tirano sanguinário é atribuída aos mesmos motivos que sugerimos aqui, pois em Holinshed decorrem dez anos entre o assassinato de Duncan, através do qual Macbeth se torna rei, e suas más ações ulteriores; e nesses dez anos ele é mostrado como um governante severo porém justo. Só depois desse lapso de tempo é que se inicia nele a mudança, sob a influência do medo atormentador de que a profecia a Banquo possa realizar-se, assim como aconteceu com a profecia de seu próprio destino. Só então é que ele engendra o assassinato de Banquo, e, como em Shakespeare, é impelido de um crime a outro. Não é expressamente mencionado em Holinshed que foi a ausência de filhos que o impeliu a esses caminhos, mas se dá bastante tempo e espaço para esse motivo plausível. Isso não ocorre em Shakespeare. Os eventos nos chegam de roldão na tragédia, com pressa ofegante, de modo que, a julgar pelas declarações de suas personagens, o curso de sua ação abrange cerca de uma semana. Essa aceleração retira a base de todas as nossas interpretações dos motivos da mudança no caráter de Macbeth e no de sua esosa. Não há tempo para que um longo desapontamento quanto às suas esperanças de nascimento de filhos faça a mulher sucumbir e leve o homem a uma fúria desafiadora, e permanece a contradição de que, apesar de tantas inter-relações sutis no enredo, e entre este e a sua ocasião, apontarem para uma origem comum no tema da infecundidade, a economia de tempo na tragédia, não obstante, impede expressamente um desenvolvimento de caráter oriundo de quaisquer motivos que não sejam aqueles inerentes à própria ação.

Quais, contudo, teriam sido os motivos que, num tão curto espaço de tempo, puderam transformar o homem hesitante e ambicioso num desabrido tirano, e sua instigadora de coração empedernido numa mulher doente corroída pelo remorso, é, na minha opinião, impossível adivinhar. Devemos, penso eu, abandonar toda e qualquer esperança de penetrar na tríplice camada de obscuridade em que se condensaram a má preservação do texto, a intenção desconhecida do dramaturgo e o propósito oculto da lenda. Mas eu não aprovaria a objeção de que investigações como estas são vãs, em face do poderoso efeito que a tragédia exerce sobre o espectador. O dramaturgo pode realmente, durante a representação, dominar-nos pela sua arte e paralisar nossos poderes de reflexão; mas não nos pode impedir de que, subseqüentemente, tentemos aprender seu efeito mediante o estudo de seu mecanismo psicológico. Nem o argumento de que um dramaturgo tem a liberdade de encurtar à vontade a cronologia natural dos fatos que ele apresenta diante de nós, se pelo sacrifício da probabilidde comum ele puder realçar o efeito dramático, me parece pertinente nesse caso, pois tal sacrifício só se justifica quando meramente interfere na probabilidade, e não quando rompe a relação causal; além disso, o efeito dramático dificilmente teria sido afetado se se tivesse deixado a passagem do tempo indeterminada, em vez de ficar expressamente limitada a poucos dias.

Fica-se tão pouco inclinado a abandonar um problema como o de Macbeth por considerá-lo insolúvel, que me aventurarei a apresentar um novo ponto, que talvez ofereça outra saída para a dificuldade. Ludwig Jekels, num recente estudo shakesperiano, pensa ter descoberto uma técnica particular do poeta, e isso poderia aplicar-se a Macbeth. Ele crê que Shakespeare muitas vezes divide um tipo em duas personagens, as quais, tomadas isoladamente, não são inteiramente compreensíveis e somente vêm a sê-lo quando reunidas mais uma vez numa unidade. Macbeth e Lady Macbeth poderiam estar nesse caso. Ainda sendo, seria destituído de fundamento considerá-la como um tipo independente e procurar os motivos de sua modificação, sem considerar o Macbeth que a completa. Não seguirei mais essa pista; não obstante, gostaria de ressaltar algo que confirma esse ponto de vista de maneira impressionante: os germes do medo que irrompem em Macbeth na noite do assassinato já não se desenvolvem nele, mas nela. É ele quem tem a alucinação do punhal antes do crime; mas é ela quem depois adoece de uma perturbação mental. É ele que após o assassinato ouve o grito na casa: ‘Não durmas mais! Macbeth de fato trucida o sono…’ e assim ‘Macbeth não mais dormirá’, contudo, mais! ouvimos dizer que ele dormiu mais, ao passo que a Rainha, como vemos, ergue-se de seu leito e, falando enquanto dorme, trai sua culpa. É ele que fica desamparado com as mãos cobertas de sangue, lamentando que ‘todo o grande oceano de Netuno’ não as limpará, enquanto ela o consola: ‘Um pouco de água nos limpa desta ação’; mas depois é ela que lava as mãos durante um quarto de hora e não consegue livrar-se das manchas de sangue: ‘Todas as essências da Arábia não purificarão esta mãozinha.’ Assim, o que ele temia em seus tormentos de consciência, se realiza nela; ela se torna toda remorso e ele, todo desafio. Juntos esgotam as possibilidades de reação ao crime, como duas partes desunidas de uma individualidade psíquica, sendo possível que ambos tenham sido copiados de um protótipo único.

Se fomos incapazes de responder por que Lady Macbeth sucumbiu após seu êxito, talvez tenhamos uma oportunidade melhor, passando à criação de outro grande dramaturgo, que muito parecia acompanhar, com inflexível rigor, problemas de responsabilidade psicológica.

Rebecca Gamvik, filha de uma parteira, foi educada por seu pai adotivo, o Dr. West, para ser uma livre-pensadora e para desprezar as restrições que uma moral fundamentada na crença religiosa procura impor aos desejos da vida. Após a morte do médico, ela encontra um emprego em Rosmersholm, o lar, por muitas gerações, de uma antiga família cujos membros desconhecem o riso e que sacrificaram a alegria ao rígido cumprimento do dever. Seus ocupantes são Johannes Rosmer, ex-pastor, e sua esposa inválida, a infecunda Beata. Dominada por ‘uma paixão selvagem e incontrolável’ pelo amor de Rosmer, de alta linhagem, Rebecca resolve eliminar a esposa, que constitui um obstáculo para seus planos; para tanto, faz uso da sua vontade ‘impávida e livre’, não restringida por quaisquer escrúpulos. Arquiteta um plano para que Beata leia um livro de medicina, no qual a finalidade do casamento é representada como sendo a procriação, de modo que a pobre mulher começa a duvidar da razão de ser de seu próprio casamento. Rebecca então dá a entender que Rosmer, de cujos estudos e idéias ela partilha, está prestes a abandonar a velha fé e aliar-se ao ‘grupo dos esclarecidos’; e após ter assim abalado a confiança da esposa na integridade moral do marido, finalmente lhe dá a entender que ela, Rebecca, logo abandonará a casa, a fim de ocultar as conseqüências de suas relações ilícitas com Rosmer. A trama criminosa é coroada de êxito. A pobre esposa, que passa por deprimida e irresponsável, atira-se da estrada ao lado do moinho no açude, dominada pelo sentimento de sua própria inutilidade e não mais desejando antepor-se entre seu amado marido e a felicidade dele.

Por mais de um ano, Rebecca e Rosmer vivem sozinhos em Rosmesholm, mantendo uma relação que ele deseja considerar como uma amizade puramente intelectual e ideal. Mas, quando essa relação começa a ser obscurecida de fora pela primeira sombra de bisbilhotice e quando, ao mesmo tempo, surgem em Rosmer dúvidas atormentadoras sobre os motivos que levaram a esposa a pôr termo à existência, ele suplica a Rebecca que seja sua segunda esposa, de modo a poder contrabalançar o passado infeliz com uma nova realidade viva (Ato II). Por um momento, ela solta uma exclamação de alegria diante de sua proposta, mas logo depois declara que isso nunca poderá acontecer, e que, se ele continuar a insistir, ela ‘seguirá o mesmo caminho que Beata’. Rosmer não consegue compreender essa rejeição e muito menos nós, que conhecemos as ações e desígnios de Rebecca. Só podemos ter certeza de uma coisa: de que seu ‘não’ é veemente.

Como veio a acontecer que a aventureira dotada de vontade ‘impávida e livre’, que forjou implacavelmente seu caminho para a meta desejada, agora se recuse a colher o fruto do êxito, quando este lhe é oferecido? Ela própria nos dá a explicação no quarto Ato: ‘Esta é a parte terrível de tudo isso: que agora, quando toda a felicidade da vida se acha ao meu alcance … meu coração esteja mudado e meu próprio passado dela me exclua. Isto é, nesse meio tempo, ela se tornou um ser diferente; sua consciência despertou, ela adquiriu um sentimento de culpa que a priva de fruição.

E o que lhe despertou a consciência? Ouçamos o que ela mesma tem a dizer, e consideremos depois se podemos acreditar nela inteiramente. ‘Foi a visão rosmeriana da vida — ou, seja como for, sua visão da vida — que contaminou minha vontade. E a tornou doente. Escravizou-a a leis que antes não tinham qualquer poder sobre mim. Você — a vida com você — enobreceu minha mente.’

Essa influência, devemos ainda compreender, só se tornou efetiva a partir do momento em que ela pôde viver sozinha com Rosmer. ‘Na quietude…na solidão…quando sem reservas você me revelou todos os seus pensamentos…todos os sentimentos ternos e delicados, exatamente como lhe vinham…então se operou a grande mudança em mim.’

Pouco antes disso, ela havia lamentado o outro aspecto da mudança: ‘Porque Rosmersholm minou minhas forças. Aqui, minha antiga vontade indômita teve suas asas cortadas. Ficou aleijada! Já se foi a época em que eu tinha coragem para tudo no mundo. Perdi o poder de ação, Rosmer.’

Rebecca faz essa declaração após ter-se revelado uma criminosa, numa confissão voluntária a Rosmer e ao Prior Kroll, irmão da mulher de quem se descarta. Ibsen deixa claro, por pequenos toques de magistral sutileza, que Rebecca na realidade não está dizendo mentiras, mas nunca é inteiramente honesta. Do mesmo modo que, apesar de toda a sua liberdade quanto a preconceitos, ela diminui sua idade de um ano, assim também sua confissão aos dois homens é incompleta, e em decorrência de insistência de Kroll é suplementada em alguns pontos importantes. Por isso, é-nos permitido supor que sua explicação de sua renúncia expõe um motivo apenas para ocultar outro.

Por certo, não temos motivos para não acreditar nela quando declara que a atmosfera de Rosmersholm e sua ligação com o brioso Rosmer a enobreceram — e a aleijaram. Aqui, ela expressa o que sabe e o que sentiu. Mas isso não é necessariamente tudo o que aconteceu dentro dela, nem é preciso que ela tenha compreendido tudo o que ocorreu. A influência de Rosmer pode ter sido apenas um véu, que ocultou outra influência atuante, e um notável indício aponta nessa outra direção.

Mesmo após a confissão dela, Rosmer, na última conversa entre os dois que encerra a peça, mais uma vez lhe suplica que seja sua esposa. Perdoa-lhe o crime que ela cometeu em nome do amor que sentia por ele. E agora ela não responde, como devia, perdão algum pode livrá-la do sentimento de culpa em que incorreu por ter maldosamente enganado a pobre Beata; mas se recrimina por outra coisa que nos atinge por originar-se estranhamente dessa livre-pensadora, e está longe de merecer a importância que Rebecca lhe atribui: ‘Querido — nunca mais fale nisso! É impossível! Pois você deve saber, Rosmer, que eu tenho um… um passado.’ Ela quer dizer, naturalmente, que teve relação sexuais com outro homem, e não deixamos de observar que essas relações, que ocorreram numa época em que ela era livre e não tinha de dar contas a ninguém, lhe parecem um empecilho maior à união com Rosmer do que seu verdadeiro comportamento criminoso para com a esposa dele.

Rosmer recusa-se a ouvir o que quer que seja sobre esse passado. Podemos adivinhar o que foi, embora tudo que se refira a ele na peça seja, por assim dizer, subterrâneo e tenha de ser construído a partir de indícios e fragmentos. Não obstante, trata-se de indícios inseridos com tal arte que é impossível não compreendê-los.

Entre a primeira recusa de Rebecca e sua confissão ocorre algo que exerce influência decisiva sobre seu futuro destino. O Prior Kroll chega um belo dia à casa com o fito de humilhar Rebecca, dizendo-lhe que ele sabe que ela é uma criança ilegítima, filha do próprio Dr. West que a adotou após a morte da mãe dela. O ódio lhe aguçou as percepções, mas mesmo assim ele não supõe que isso seja novidade para ela. ‘Realmente não supunha que ignorasse isso, caso contrário teria sido muito estranho que você tivesse deixado o Dr. West adotá-la…’ ‘E então ele a leva para a casa dele — logo que sua mãe morre. Ele a trata asperamente. Mas você fica com ele. Você sabe que ele não lhe deixará um vintém — na verdade, só lhe coube uma estante com livros —, mas você continua; você o atura; você cuida dele até o fim.’… ‘Atribuo seu cuidado por ele ao natural instinto filial de uma filha. Realmente, creio que toda a sua conduta é um resultado natural da sua origem.’

Mas Kroll está enganado. Rebecca não tinha a menor idéia de que pudesse ser filha do Dr. West. Quando Kroll começou com as sombrias alusões a seu passado, ela deve ter pensado que se referia a uma outra coisa. Depois de ter compreendido o que ele queria dizer, pôde ainda conservar sua compostura por algum tempo, pois foi-lhe possível supor que seu inimigo baseava seus cálculos na idade dela, sobre a qual ela mentira, quando de uma visita anterior. Kroll, porém, arrasa essa objeção dizendo: ‘Bem, que seja assim, mas, apesar disso, meu cálculo pode estar certo, pois o Dr. West esteve lá numa breve visita um ano antes de obter o cargo’. Depois dessa nova informação, ela perde a presença de espírito. ‘Não é verdade!’ Anda de um lado para o outro retorcendo as mãos. ‘É impossível. O senhor quer induzir-me a acreditar nisso. Isso nunca, nunca pode ser verdade. Não pode ser verdade. Jamais neste mundo!…’ A agitação dela é tão extrema, que Kroll não pode atribuí-la apenas à informação dele.

‘KROLL: Mas, minha cara Senhorita West… por que, em nome dos céus, está tão terrivelmente agitada? Você me deixa assustado. Em que devo pensar… acreditar…?

‘REBECCA: Em nada. O senhor não deve pensar nem acreditar em nada.

‘KROLL: Então, você deve realmente dizer-me como pode levar esse caso… essa possibilidade… tão terrivelmente a sério.

‘REBECCA (dominando-se): É perfeitamente simples, Prior Kroll. De forma alguma desejo ser tomada por uma filha ilegítima.’

O enigma do comportamento de Rebecca é suscetível de uma única solução. A notícia de que o Dr. West era seu pai é o golpe mais rude que lhe pode sobrevir, pois não só era sua filha adotiva, como também fora sua amante. Quando Kroll começou a falar, ela pensou que estivesse fazendo alusão a essas relações, cuja verdade ela teria provavelmente admitido e justificado por causa de suas idéias emancipadas. Isso, porém, estava longe da intenção do Prior; ele nada sabia da ligação amorosa com o Dr. West, assim como ela nada sabia a respeito de o Dr. West ser pai dela. Ela não pode ter tido outra coisa em sua mente a não ser essa ligação amorosa, quando justificou sua rejeição final de Rosmer sobre o fundamento de que tinha um passado que a tornava indigna de ser sua esposa. E, provavelmente, se Rosmer tivesse consentido em ouvir falar desse passado, ela teria só confessado metade de seu segredo e teria silenciado sobre a parte mais grave.

Agora, porém, compreendemos, naturalmente, que esse passado lhe deve ter parecido o obstáculo mais grave à união dos dois — o crime mais grave.Depois de saber que fora amante de seu próprio pai, ela se entrega inteiramente a seu já então superdominador sentimento de culpa. Faz a Rosmer e a Kroll a confissão que a estigmatiza como assassina; rejeita para sempre a felicidade para a qual preparou o caminho pelo crime, e se prepara para partir. Mas o verdadeiro motivo de seu sentimento de culpa, que faz com que ela seja destroçada pelo êxito, permanece um segredo. Como vimos, é algo bem diverso da atmosfera de Romersholm e da aprimoradora influência de Rosmer.

Nessa altura, qualquer um que nos tenha acompanhado não deixará de formular uma objeção passível de justificar algumas dúvidas. A primeira recusa de Rosmer por Rebecca ocorre antes da segunda visita de Kroll e, portanto, antes da revelação feita por ele quanto à sua origem ilegítima, e numa ocasião em que ela nada sabe ainda sobre seu incesto — se é que compreendemos bem o dramaturgo. Todavia, essa primeira recusa é enérgica para valer. O sentimento de culpa que a convida a renunciar ao fruto de suas ações é assim efetivo antes que ela saiba de qualquer coisa sobre seu crime fundamental; e se admitimos isso, devemos talvez pôr inteiramente de lado seu incesto como uma fonte desse sentimento de culpa.

Até agora tratamos Rebecca West como se ela fosse uma pessoa viva e não uma criação da imaginação de Ibsen, sempre dirigida pela mais crítica inteligência. Podemos, portanto, tentar manter a mesma posição ao lidarmos com a objeção levantada. A objeção é válida: antes do conhecimento de seu incesto, a consciência já havia despertado parcialmente em Rebecca, nada impedindo que responsabilizemos por essa mudança a influência admitida e acusada pela própria Rebecca. Mas isso não nos isenta de reconhecermos o segundo motivo. O comportamento de Rebecca quando ouve o que Kroll tem a lhe dizer, a confissão que é sua reação imediata, não deixa dúvida de que só então o motivo mais forte e decisivo de renúncia começa a fazer efeito. Trata-se de fato de um caso de motivação múltipla, no qual um motivo mais profundo aparece por detrás do mais superficial. As leis de economia poética exigem que seja esta a maneira de apresentar a situação, pois esse motivo mais profundo não podia ser explicitamente enunciado. Tinha de permanecer oculto, afastado da fácil percepção do espectador ou do leitor; do contrário, teriam surgido sérias resistências, baseadas nas emoções mais aflitivas, as quais talvez pusessem em perigo o efeito do drama.

Temos, contudo, o direito de exigir que o motivo explícito não fique desprovido de uma ligação interna com o oculto, mas apareça como uma atenuação e uma derivação deste último. E, se pudermos confiar no fato de que a combinação criadora consciente do dramaturgo surgiu logicamente de premissas inconscientes, poderemos agora tentar mostrar que ele atendeu a essa exigência. O sentimento de culpa de Rebecca tem sua fonte na exprobração do incesto, mesmo antes de Kroll, com perspicácia analítica, tê-la tornado consciente disso. Se reconstruirmos o passado dela, ampliando e preenchendo os indícios fornecidos pelo escritor, poderemos sentir-nos seguros de que ela não pode ter deixado de suspeitar da existência de uma relação íntima entre sua mãe e o Dr. West. Deve ter ficado fortemente impressionada ao se tornar a sucessora da mãe junto a esse homem. Ficou sob o domínio do complexo de Édipo, embora não soubesse que, em seu caso, essa fantasia universal se convertera em realidade. Quando chegou a Rosmersholm, a força interna dessa primeira experiência impeliu-a a provocar, por uma ação vigorosa, a mesma situação que já se realizara no exemplo original devido à sua inação — a livrar-se da esposa e da mãe, de modo a poder ocupar o lugar desta junto ao marido e ao pai. Ela descreve com insistência convincente como, contra vontade, foi obrigada a avançar, passo a passo, até a eliminação de Beata.

‘O senhor pensa então que eu era fria, calculista e serena o tempo todo! Não era então a mesma mulher que sou agora, quando estou aqui a lhe contar tudo. Além disso, existem duas espécies de vontade em nós, creio eu! Queria Beata afastada, de uma maneira ou de outra, mas nunca realmente acreditei que isso viesse a acontecer. À medida que avançava cautelosamente, a cada passo que eu aventurava, parecia ouvir alguma coisa dentro de mim que exclamava: Não vá adiante! Nem mais um passo à frente! E contudo eu não podia parar. Tinha de aventurar só mais um pouquinho. E somente mais um milímetro. E logo depois mais um — e sempre mais um. E então aconteceu. — É assim que essas coisas acontecem.’

Não se trata de uma versão enfeitada das coisas, mas de uma descrição autêntica. Tudo que lhe aconteceu em Rosmersholm, sua paixão por Rosmer e sua hostilidade para com a esposa dele, foi, desde o começo, uma conseqüência do complexo de Édipo — uma réplica inevitável de suas relações com sua mãe e com o Dr. West.

Assim, o sentimento de culpa, que inicialmente faz com que ela rejeite a proposta de Rosmer, no fundo não difere do sentimento de culpa maior que a impele à confissão, depois que Kroll lhe abriu os olhos. Da mesma forma, porém, que sob a influência do Dr. West ela se tornara uma livre-pensadora e passara a menosprezar a moral religiosa, assim também ela se transforma, por seu amor a Rosmer, num ser de consciência e nobreza. Ela chega a compreender esse aspecto dos processos mentais dentro de si, justificando-se assim ao descrever a influência de Rosmer como o motivo de sua mudança — o motivo que se tornara acessível a ela.

O clínico psicanalista sabe quão freqüentemente, ou quão invariavelmente, uma moça que entra para o serviço de uma casa como criada, dama de companhia ou governanta, consciente ou inconscientemente tece um devaneio, oriundo do complexo de Édipo, no qual a dona da casa desaparece, vindo o dono a receber a recém-chegada como sua esposa no lugar da outra. Rosmersholm é a maior obra de arte desse tipo que aborda essa fantasia comum em moças. O que a transforma num drama trágico é a circunstância extra de que o devaneio da heroína tenha sido precedido na sua infância por uma realidade precisamente correspondente.

Após essa longa digressão pela literatura, retornemos à experiência clínica — mas apenas para estabelecermos em poucas palavras a inteira concordância entre elas. O trabalho psicanalítico nos ensina que as forças da consciência que induzem à doença, em conseqüência do êxito, em vez de, como normalmente, em conseqüência da frustração, se acham intimamente relacionadas com o complexo de Édipo, a relação com o pai e a mãe — como talvez, na realidade, se ache o nosso sentimento de culpa em geral.

Texto obtido através dos sites :Ateus&AntiCapitalistas,
www.ebooksdigratis.boom.ru

www.ateuseanticapitalistas.hpg.com.br (em remodelação)


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