2o Encontro de Diretrizes Curriculares Estaduais – História
Mesa Redonda – Historicidade das Demandas Atuais dos Conteúdos Históricos

 

O que a história fez com a lógica de organização dos conteúdos, e o que o Ensino de História fará com essa história?

Prof. Dr. Luis Fernando Cerri – UEPG
(lfcerri@uepg.br)

A História ensinada, tal como a conhecemos modernamente, em termos de conteúdos, métodos e finalidades gerais, como disciplina escolar, enfim, é relativamente nova. O seu surgimento remonta ao contexto europeu do século XVIII e início do XIX, período em que tanto o esforço de eruditos de "antigüidades" quanto o dos "filósofos" concorreram para dotar esse campo de conhecimento de rudimentos de um método próprio e de uma finalidade específica (FURET, s.d.). No entanto, no século XVIII, nos dizeres de François Furet, o ensino de história é impossível, primeiro porque a distância entre essas duas correntes ainda não diminuiu a ponto das duas contribuições comporem um único saber, e segundo porque as contribuições dessas diferentes vertentes do conhecimento não constituem uma disciplina claramente delimitada, mas acumulam uma massa indiferenciada de saberes humanísticos. No contexto da busca, pelas sociedades européias, de sua representação e legitimidade no passado, a indiferenciação dos estudos do passado tornava impossível o seu ensino: "se a história não é ensinada, é porque não está constituída em matéria ensinável" (FURET, s.d., p. 115).

O objetivo desse texto é refletir sobre as origens e características das formas de organização curricular do conteúdo histórico na escola e no material didático, desde as formas tradicionais, como a História Universal ou Geral e a História Nacional, bem como a História da América, até as formas consideradas inovadoras, como a História Integrada, História Temática, História através dos Modos de Produção e outras. É necessário advertir desde já que não há pretensão de abrangência total ou descrição exaustiva das possibilidades de articulação do conteúdo histórico na escola, mas tão somente o alinhavar de algumas informações e idéias que consideramos importantes, visando subsidiar a discussão.

A constituição da história como disciplina escolar está marcada, então, por três características que a definirão profundamente, estendendo sua influência até a atualidade: a modernidade, o nacionalismo e o foco europeu.

A MODERNIDADE, entendida como categoria que reúne formas específicas de percepção, interpretação e ação no mundo, contribuirá com a idéia de que há uma entidade homogênea no passado chamada "História" que pode ser integralmente conhecida pela pesquisa. Essa idéia não é exclusiva desse período, pois acreditava-se anteriormente numa entidade histórica continente do passado, todavia de forma estática, que já teria sido escrita e explicada de uma vez por todas. Essa perspectiva decorre claramente do padrão religioso (judaico, cristão e muçulmano) de relação com o passado, mas será aos poucos superada pelos estudiosos modernos, que constituirão a crítica dos documentos e a reinterpretação do passado, crescentemente partindo de perspectivas laicas e republicanas. Jörn Rüsen (1997) afirmará, por sua vez, que a modernidade contribui, enfim, com a idéia de que a história é uma entidade que abrange a totalidade da evolução no tempo, que só surge depois do século XVIII: antes disso não haveria representação mental de um fenômeno chamado de "a história", entendida como totalidade abrangente e integradora do passado – presente – futuro, mesmo porque o pensamento religioso, que estabelece limites epistemológicos para o pensamento renascentista (por exemplo, a impossibilidade da descrença em Deus, estudada entre outros por Lucien Febvre), estabelece o tempo como cumprimento do verbo de Deus. Essa história - entidade foi tornada pelo Iluminismo em concepção dentro da categoria histórica do progresso, estabelecendo uma lógica mais aberta à ação humana, ao tempo em que ancorava no modo de vida da Europa a meta do progresso dos povos "atrasados" enquanto a Europa deveria progredir cada vez mais. O historicismo do século XIX (denominado de forma inexata por muitos como "positivismo") modifica a forma, de categoria para o conceito de "desenvolvimento", conceito esse explicitado pelos estudos do final do século XIX e do século XX com as concepções de estrutura e processo. O desenvolvimento seria, portanto, a transformação dessa entidade chamada "história", movida pela interação entre os processos históricos e os deslocamentos das estruturas (RÜSEN, 1997, p. 86).

O NACIONALISMO é a segunda grande influência identificável no surgimento da História ensinada: o foco a partir do qual se começa a ensinar a história é o Estado Nacional nascente. Dele vai-se ao passado, criando uma densidade histórica para uma necessidade do presente, de afirmação e legitimação das nações que estavam ainda se inventando, em países em processo de modernização econômica e política. Suzzane Citron, estudiosa desse período, retrata esse contexto, em que ocorre também o surgimento dos primeiros livros didáticos franceses, no qual, sem exagero, pode-se dizer que a História serve antes de mais nada para fazer a guerra, parafraseando Yves Lacoste.

"Os pais da República, impregnados de uma religião da França, hipotecaram ao ensino de história um objetivo patriótico: a todas as crianças do país, majoritariamente oriundas de aldeias com em torno de mil habitantes, seriam inculcados o amor da pátria una e indivisível e ao mesmo tempo a superioridade da França. O historiador Ernest Lavisse fixa, para as escolas, um TEXTO do passado, organizado em torno de uma Gália mítica, de uma sucessão de atos de guerra e de conquistas lícitas, porque construiriam uma pátria preexistente à sua formação. Os abusos de poder que serviram à grandeza e unidade do Estado seriam legitimados" (CITRON, 1987, p. 15)

O terceiro elemento relevante para compreender o surgimento da História ensinada e suas conseqüências sobre as formas de organização do conteúdo é o FOCO EUROPEU dessa história, mesmo quando ela é anti-européia. Não se pode negar que o conhecimento histórico em grande parte constitui uma fração da cultura ocidental e sua forma de relacionamento com o tempo. Em outras palavras, podemos arriscar a afirmação de que o fato de estudarmos História é uma conseqüência da expansão européia sobre o mundo a partir do século XVI.. E isso é uma marca indelével sobre o conhecimento histórico em todo o mundo, o que torna tão dispendiosos os esforços para constituir uma apreensão da totalidade planetária no tempo sem passar pelo foco europeu.

Inicialmente, as escolas eram reservadas para as elites, o que por si já significava uma ampliação: os Estados Nacionais Modernos significavam uma maior necessidade de quadros para as funções de direção política, administrativa e militar, expadindo a educação para além do clero, como ocorria no período medieval. As revoluções nacionais do final do século XVIII e início do XIX são, convém não esquecer, revoluções burguesas, e o Estado que surge delas, embora passe a incluir círculos cada vez mais extensos da burguesia, pratica uma concepção elitista de cidadania, típica do liberalismo clássico. Para esse liberalismo original, a cidadania era restrita às pessoas que fossem autônomas, que se auto-sustentassem, ou seja, que não fossem mulheres, crianças, assalariados, escravos, camponeses, marginais, e toda uma categoria de pessoas que acabava por constituir a maioria da população; nessa concepção, essas pessoas não poderiam opinar sobre os destinos coletivos, uma vez que dependiam de outras pessoas, essas sim produtoras e distribuidoras de riquezas. Essa idéia, mesmo combatida pelo jacobinismo, só vai ser seriamente contestada com o crescimento do movimento operário e o pensamento anarquista e comunista, que lembra que quem "depende" dos outros é exatamente o burguês, o patrão, e não o contrário. Imbuídos da condição de verdadeiros produtores da riqueza, os operários desenvolvem a luta pelo sufrágio universal, mas enquanto ele não vem, a escola restringe-se, via-de-regra, aos cidadãos tal como são reconhecidos pelo liberalismo burguês. Culturalmente, os burgueses perseguem parte expressiva do ideário aristocrático, cuja raiz remota está na cultura clássica, em que educação humanística era resultado da pesquisa desinteressada das questões materiais e do trabalho, típicas de uma sociedade escravista.

"O campo de interesse dos pensadores helênicos continuam sendo os campos de interesse que hoje configuram as matérias essenciais do ensino atual. Cabe perguntar: essa é a única temática possível?(...) Isso nos leva a perguntar, por exemplo, se os temas daquilo que chamamos de ‘ciência’ são os únicos importantes entre todos os possíveis, ou se são fruto de uma conjuntura histórico - cultural que certamente nos proporcionou grandes sucessos a desfrutar coletivamente, mas que nos fez relegar outros grandes temas para a sobrevivência da humanidade, da maioria da humanidade. (...) Poderíamos perguntar-nos em que medida nossas prioridades culturais contribuem para ignorar a fome no Terceiro Mundo, as agressões à mulher ou outras formas de violência em nossas cidades e as guerras que incessantemente eclodem – ainda – neste ou naquele lugar do nosso planeta, por exemplo." (MONTSERRAT MORENO – p. 33-34)

Ainda que se possa argumentar que essa autora exagera no peso da cultura helênica / helenística, o certo é que, embora a burguesia fosse remotamente originada dos ofícios manuais do artesanato e do comércio, sua condição cultural no século XIX ligava-se a uma tentativa de distinção da nova classe de trabalhadores manuais, o proletariado, bem como dos trabalhadores rurais. Nesse sentido, a cultura aristocrática era um elemento sedutor, e os salões da nobreza acabariam por constituir espaços de distinção para a burguesia, onde se aprenderia a etiqueta, a doce vida e mesmo algo do ócio e da dissipação aristocráticas (MAYER, 1987). Nesse pacote, a educação burguesa, que será o modelo para a educação popular vinculada à conquista do sufrágio universal e da necessidade de colaboração popular nas demandas do Estado (por exemplo nas guerras), segue o modelo da educação aristocrática, compondo uma correia de transmissão de um conteúdo que acaba por ser considerado "universal", embora tenha essa origem e essa datação tão claras. No caso o Brasil, essa passagem também vai garantir a permanência dos conteúdos ligados a contextos de desprestígio do trabalho e de suas necessidades específicas de conhecimento, com o adicional do passado escravista e bacharelista do país.

Ainda no que se refere ao foco europeu da História ensinada, a descolonização, em seu ciclos do século XIX e do século XX, utilizará as armas do colonizador contra ele mesmo: trata-se do nacionalismo e da História, também. Trocam-se os sinais e os personagens, mas o "código genético" da História pensada e ensinada permanece o mesmo. Soma-se Índia, China, Japão, Civilizações pré-colombianas, índios do futuro território brasileiro, como forma de enfrentar o eurocentrismo, e faz-se isso e comete-se etnocídios ao mesmo tempo. Enfim, os Estados pós-coloniais herdarão os referenciais culturais dos seus colonizadores, que continuarão presentes nas armas usadas para enfrentá-los (o nacionalismo, recriado a partir da metrópole, contra a colônia) e nas ferramentas usadas para construir a nova nação (além do nacionalismo, a História, para representar e legitimar a coletividade nacional).

Na constituição das histórias nacionais descolonizadas, um dos genes da história universal eurocêntrica, que faz com que todas as histórias particulares e representações da identidade no tempo por parte de culturas dominadas sejam integradas à força numa História que tem obsessão pela unidade. É nesse processo que se cometem os etnocídios, na História do Brasil, por exemplo.

Ocupo-me não tanto da destruição totalizante das culturas indígenas, mas dos mecanismos retóricos que refazem a existência histórica daquelas sociedades, isto é, daquilo que alimenta as ‘farsas escolares’ e tantas outras, mesmo quando seus responsáveis parecem demonstrar sincera simpatia pelas causas das demais etnias. Com efeito, o que se tem visto é a tortuosa tentativa de certos autores de manuais escolares e de livros de divulgação de incorporar sociedades não-ocidentais nas linha de rumo históricas produzidas pela dominação européia do mundo. Motivados, quase sempre, pelas melhores intenções políticas e pelas piores obsessões pela unidade, aqueles escritores cometem uma sutil forma de etnocídio: a destruição da singularidade histórica de uma civilização. Noutras palavras: fabricam uma integração retórica que, por sua vez, é uma desintegração da experiência e uma desapropriação da fala própria das etnias dominadas." (GONÇALVES, 2002, p. 128-129)

Cabe ainda, nessa reflexão sobre a perspectiva de uma "História Universal" na organização dos conteúdos escolares de História, a citação de Marc Ferro, no contexto da reflexão sobre o que chama de "história institucional":

Em primeiro lugar, a história oficial apresentou-se muito rapidamente, pelo menos na Europa, como um discurso de história geral. Desde os cristãos da Antigüidade até Bossuet, os enciclopedistas, os positivistas, os marxistas, a vocação desses historiadores é exatamente a de manter um discurso de valor universal – a tentação filosófica de que se falou. Ora, atualmente esse discurso unitário está morrendo. Morrerá por ter sido a miragem da Europa, que o construía na medida de sua própria evolução. Na Vulgata dessa história, expressa pelas grandes enciclopédias, pelos manuais escolares de todos os países europeus, que parte do Egito antigo e que, através da Grécia, Roma, Bizâncio, leva à época contemporânea, os diferentes povos da Terra existiam apenas a título de passageiros, quando a europa passava por essas regiões, ou então quando julgava que, escrevendo o passado desses povos, eles acabariam por descender dela. (FERRO, 1989, p. 25)

Pode-se considerar, enfim, um arremedo de regra geral para fins de reflexão sobre a constituição e reprodução da História na escola: faz-se e estuda-se história como forma de identificar pessoas e grupos, mas não se faz como se quer – faz-se de acordo com o que se considera "científico" e obrigatório de acordo com as tradições seletivas escolares, bem como a partir de concepções de tempo, de homem e de mundo que nos constituem sem que nos apercebamos delas.

Podemos caracterizar o surgimento do ensino da "História do Brasil" como ato reflexo do ensino de História europeu, no inicio para nacionalizar elites, depois progressivamente, na republica, para formar identidade nacional, dotar brasileiros de um passado comum com o qual se identificar. Não é gratuito o fato de que os primeiros livros didáticos de História do Brasil eram impressos na Europa, e estudados juntamente com os livros de História Universal escritos em francês.

Sobretudo com a proclamação da República, desenvolve-se o esforço identitário republicano de aproximar a compreensão do Brasil à das repúblicas da América. A iniciativa intelectual no sentido de integrar o ensino da História da América na escola já vem do império, embora sem efeitos expressivos, segundo Dias, 1999. O 1º livro de História da América é lançado no Brasil em 1900, de autoria do paranaense Rocha Pombo. Pela lei, estabelece-se como conteúdo para o ginásio no pós-30 (Bittencourt, 1996, p. 205). O Panamericanismo de influência norte – americana presente nos anos pós - Segunda Guerra Mundial, converte-se ao longo das décadas em esforço de unidade latino-americana, que, como se vê no texto de Bruit (2003), não existe como latinidade até meados do século XX. Isso não significa uma falsificação, porque, em identidade político - territorial, vale tanto o que fomos quanto o que queremos ser, por exemplo na concepção do austromarxista Otto Bauer, que define a nação como comunidade de destino).

A "História Integrada" é uma tentativa, também inicialmente mercadológica, de unificar a divisão "geográfica" da história, feita com objetivos didáticos e políticos. Se a divisão tradicional quatripartite tem problemas, bem como a divisão tripartite da História Nacional e a existência de uma história "sub-geral" que é a História da América, a História Integrada herda também todos os problemas inerentes a essas opções citadas acima. Entre esses problemas, Jean Chesneaux indica:

O quadripartismo tem como resultado privilegiar o papel do Ocidente na história do mundo e reduzir quantitativa e qualitativamente o lugar dos povos não - europeus na evolução universal. Por essa razão, faz parte do aparelho intelectual do imperialismo. Os marcos escolhidos não têm significado algum para a imensa maioria da humanidade: fim do Império Romano, queda de Bizâncio. Esses mesmos marcos destacam a história das superestruturas políticas, dos Estados, o que também não é inocente." (Chesneaux, 1995, p. 95)

É um equívoco achar que se escapa desses problemas fundindo num só volume as histórias Geral e do Brasil, mesmo porque a impressão que fica é que a História Geral e a do Brasil são como água e óleo, que podem até estar superpostos, mas não se misturam, como os conteúdos que não se mesclam efetivamente a partir de critérios definidos, por exemplo, o cronológico: a reprodução de uma cronologia tradicional é mais importante que a sucessão temporal pura e simples: a Inconfidência Mineira via de regra não é tratada dentro das revoltas e revoluções de inspiração iluminista, mas dentro do processo de independência pactuado com a monarquia portuguesa, com o qual tem restritas relações. As lógicas da história nacional e da geral, tal como se constituíram e tal como hoje colocam-se canonicamente, são diferentes. Perde-se, assim, uma oportunidade importante para romper uma ordenação cronológica tradicional da história brasileira destinada a submeter todos os eventos a uma mesma lógica e, nisso, submeter a lógica própria de alguns eventos a outros (por exemplo, organizando movimentos separatistas em torno da independência de 1822). Em muitos livros os assuntos de história geral são desenvolvidos ao largo dos de história nacional: há uma preocupação em primeiro "acabar o assunto" na primeira e depois recuar no tempo e narrar os eventos da história do Brasil, o que em nada contribui para que o aluno compreenda o conceito de tempo histórico (bem como acaba por contribuir com a idéia errônea de que a história tem um sentido, uma lógica, que ocorre primeiro na história geral e depois na história do Brasil, que decorre da primeira e segue sua lógica). Mesmo dentro da própria história do Brasil acabam aparecendo divisões estanques, que separam, por exemplo no caso do período regencial, o processo político na corte de um lado e as revoltas, de outro.

Um outro exemplo de problemas decorrentes de uma tentativa de criar uma "História Integrada" que mescle estruturas anacrônicas de conteúdo está nos chamados "movimentos nativistas". Sua apresentação recorre a um sistema de análise que é marcado pelo anacronismo que julga a nação ser a conseqüência natural da colônia, problema aliás que é muito comum tanto na historiografia quanto nas obras didáticas. Nas palavras de Caio Prado Jr., citado por Rogério Forastieri da Silva:

O historiador, ao ocupar-se dela [a colônia] enfrenta o risco de tratar o assunto anacronicamente, isto é, conhecedor da fase posterior, em que ocorre o seu desenlace, em que ela se define, projetar esta fase no passado. O que não raro tem sido feito. Como o processo que nos ocupa vai dar na separação da colônia da sua metrópole, na independência, são as manifestações neste sentido que se procuram. Simplismo lamentável, que não somente restringe consideravelmente o objeto da pesquisa, como a desvia de seu verdadeiro sentido." (SILVA, 1997, p. 82)

A História temática, por sua vez, representa, entre outras perspectivas e demandas, a busca da quebra da linearidade ilusória dos modelos tradicionais e estruturação do conteúdo em torno de temas – conceitos, visando tanto adaptar assuntos aos interesses / necessidades dos alunos quanto desenvolver uma concepção de História. Parte da clareza de que ensinar TODA a História é uma ilusão, e que o mais importante é a compreensão dos temas, processos históricos e conceitos – construídos por eixo temático ou tema gerador (influências pedagógicas distintas), buscam enfrentar um dos principais problemas do ensino de história que é a concepção de tempo tradicional e cientificista (conhecer o passado é conhecer os fatos como eles realmente aconteceram, do que decorre que saber história é saber os fatos que aconteceram, todos eles), concepção que o avanço das discussões já tornou desacreditada. Estabelece-se que essa concepção tradicional de tempo e de História precisa ser substituída por uma concepção de tempo plural, que não reduza o múltiplo ao uno.

Entre seus principais problemas está a discussão ainda aberta sobre que conhecimentos / conteúdos são essenciais e indispensáveis para a educação histórica, e quais os limites para a escolha ou descarte de conteúdos históricos. Esse debate foi estabelecido num dos primeiros países a tentar estabelecer oficialmente um currículo pautado na perspectiva temática, a França, ainda no início da década de 80. Magalhães (2003) relata esse debate, que chegou aos deputados e ao presidente François Miterrand, disparado por um filme sobre a Revolução Francesa – Danton, O Processo da Revolução – de Andrezej Wajda, que fez a revisão histórica dos papéis de Danton e Robespierre. Para os políticos socialistas, a boa acolhida a esse filme só teria sido possível pelo baixo nível do conhecimento histórico adquirido pelos alunos, que não saberiam mais diferenciar corretamente os personagens históricos e suas contribuições – ou traições – para a República. Trata-se, portanto, da discussão sobre quais conteúdos são essenciais à formação política mínima necessária para o exercício da cidadania, uma discussão escorregadia, que poucos se dispõem a assumir pelos seus riscos implícitos. Mesmo diante desses riscos, cabe perguntar, por exemplo, se a História Temática tem liberdade de articulação e seleção de conteúdos a ponto de não considerar, por exemplo, a figura de Getúlio Vargas para o Brasil do século XX.

Questiona-se, ainda, a História Temática diante das necessidades de orientação temporal e interpretação global da História, bem como os problemas que ela coloca para os alunos diante de exames com força de currículo, como o SAEB e o ENEM, e sobretudo as dificuldades para o estabelecimento de uma homogeneidade de assuntos e tratamento dentro de sistemas de ensino (estaduais, por exemplo) nos quais se demanda um certo grau de homogeneidade.

Além das formas de organização dos conteúdos históricos que trabalhamos, já existiram / existem outras propostas, por exemplo, história regressiva, em que o presente determina o estudo do passado, que vai buscando as origens dos fenômenos que afetam o presente, ou a História por círculos concêntricos a partir do aluno; comumente usada nos primeiros ciclos do ensino fundamental, é história de assuntos que a princípio interessam aos alunos de uma determinada realidade porque explicam sua própria vida e os fenômenos que interferem nela. Às vezes relaciona-se com história local, mas colocam-se alguns cuidados: o concreto e o significativo não são necessariamente o mais próximo (p. ex. o Barão de Carrabás pode ser conterrâneo dos alunos de uma determinada cidade, mas pode ser tão distante quanto o cardeal Richelieu, posso passar por sua estátua todos os dias e ela não ter referência alguma com minha história) .

Em suma, esse terxto quer contribuir para a seguinte reflexão: é possível uma síntese das contribuições de todas essas vertentes, desviando-nos de seus problemas, e considerando ainda as pressões sociais, demandas identitárias e necessidades de orientação temporal sobre o ensino de História na atualidade?

Apêndice

QUADRO DE LÓGICAS CURRICULARES DE ARTICULAÇÃO DE CONTEÚDOS HISTÓRICOS

Advertências:

O quadro abaixo é uma tentativa provisória e incompleta de equacionar a discussão sobre as formas de selecionar organizar os conteúdos históricos na escola; conquanto procure contribuir para uma melhor visualização e compreensão das alternativas e suas características, deve ser acompanhado de leituras e reflexões que permitam um aprofundamento das idéias em questão.Deve-se atentar para que, embora estejam didaticamente dispostas e isoladas, na prática elas se relacionam, e o professor desenvolve sínteses próprias no planejamento e execução de seu trabalho.

Elaborar currículo pressupõe seleção e organização de conteúdos. As diferentes lógicas de seleção e seqüenciamento do conteúdo histórico não implicam necessariamente metodologias determinadas, embora haja relação entre esses termos, uma vez que determinadas lógicas favorecem – mas não impõem – determinados encaminhamentos metodológicos. Um outro aspecto a considerar é que essas lógicas não são meros recipientes de conteúdos, mas atribuem significados ao processo histórico, pelos mecanismos de funcionamento do currículo oculto. Por exemplo, posso ensinar o valor da cultura nacional através de músicas, mas se todas elas forem cantadas em inglês, transmite-se implicitamente um sentido de valorização de uma cultura estrangeira, embora tudo o que eu digo vá no sentido contrário. Da mesma forma, posso afirmar à exaustão que o importante não é a memorização, mas a compreensão dos conteúdos históricos, mas se a lógica de seleção e articulação dos conteúdos históricos for linear e tradicional, querendo ensinar um pouco de tudo o que há para saber sobre o passado, mesmo não tendo significado nenhum para o alunado, apenas porque é difusamente reconhecido como "importante", acabo transmitindo uma idéia de conhecimento histórico contrária àquela que enuncio explicitamente. Ainda nesse mesmo raciocínio, não é a inclusão de elementos de História da China que torna a "História da Civilização" vacinada contra o eurocentrismo.

As lógicas enquadradas abaixo estão ligadas a modelos e concepções historiográficas e pedagógicas gerais, e podem gerar diferentes formas de "currículos ocultos", uma vez que o aluno não aprende apenas os conteúdos que o currículo traz e as mensagens explícitas disponibilizadas, mas também os elementos e formas de pensar e organizar o pensamento, referentes às concepções que fundamentam as lógicas.

O quadro a seguir não pretende dar conta de todas as formas possíveis de seleção e seqüenciamento dos conteúdos históricos, mas tão somente das formas mais utilizadas no cotidiano escolar, conforme a pesquisa realizada pela equipe de História do DEF-SEED / Paraná, bem como adicionar algumas lógicas não mencionadas, mas que servem como contraponto e indicação de outras possibilidades, de modo a enriquecer a discussão. Entre as outras lógicas não contempladas nesse quadro, pode-se mencionar a perspectiva da História Sagrada, típica do período de indissociação entre Igreja e Estado e presente ainda em instituições religiosas de ensino, em que a concepção de História está dada pelos cânones religiosos de um tempo preenchido pelos desígnios divinos.

LÓGICAS CURRICULARES

Origens

Pressupostos cognitivos

Pressupostos historiográficos e políticos

Tendências possiveis (curr. oculto)

Problemas para a prática pedagógica

Vantagens p/ prat. pedagógica

Abordagens tradicionais / lineares

Histórias Nacionais

Nações européias e americanas no século XIX (período de surgimento e/ou consolidação nacional). No Brasil, está intimamente ligada à ação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e à tarefa de criar o sentimento nacional, a princípio das elites (império) e depois em camadas cada vez mais extensas do povo.

O aprendizado da História é cumulativo e segue uma seqüência necessária, cronológica, sem a qual não é possível compreender os fenômenos. Nesse sentido, a seqüência estabelecida é uma contínua busca das origens, num encadeamento mais ou menos mecânico dos fatos.

Pressupõe a memorização de fatos e de sua articulação em extensas narrativas coerentes, uma vez que a preocupação primordial é com "o que realmente aconteceu".

Via-de-regra, a articulação de conteúdo independe dos interesses dos alunos, que são considerados em bloco, do ponto de vista da formação histórica a oferecer.

O objetivo é formar o membro da nação, e portanto, há aqui uma expressiva influência do caráter do nacionalismo (pode ser colonialista ou anticolonial, à esquerda ou à direita, por exemplo) que busca a história para legitimar-se. O referencial é a escola metódica ou "historicista"

Não raro acrítico e por vezes estereotipado do país e dos estrangeiros. Visão unilinear e unidirecional do tempo e da História. Pode conduzir ao conformismo, já que as utopias, projetos e histórias dos vencidos não são privilegiadas. Visão unilateral e unidimensional do tempo e da História.

Dificuldade para considerar a realidade do aluno e suas necessidades específicas de orientação temporal. Formação de concepção unilinear e unívoca de tempo, que não corresponde às necessidades explicativas contemporâneas.

Facilidade de concepções, métodos e práticas já assimiladas na cultura escolar e no senso comum. È fácil, também, porque se assemelha à forma básica da consciência histórica, que é a narrativa.

História da Civilização

Nações européias, sobretudo Alemanha e França. Essa última, devido a fatores como a necessidade de nacionalizar os franceses devido ao conceito de soberania popular da evolução Francesa e às expedições napoleônicas, esteve na vanguarda da articulação entre os referencias da chamada Antiguidade Oriental (sobretudo Egito) com as da Antiguidade Classica (compreendida como geradora da herança latina na constituição da Europa). Por sua vez, pesquisadores alemães constroem a importância da Mesopotâmia como precursora da "civilização", em grande parte porque exercem a dominação colonial dessa região no século XIX. Seu grande momento é o neocolonialismo do século XIX, por isso compartilha seus objetivos "civilizadores", hierarquizando as culturas com a Europa no topo. Tem sua crise instalada após os atos de "barbárie" européia na 2a Guerra Mundial.

Além dos elementos anteriores, a História da Civilização ou Geral compartilha com as Histórias Nacionais tradicionais uma perspectiva de unicidade: a História é vista como uma entidade única que se desenvolve no tempo, à qual se agregam as histórias particulares. Geralmente essa unilinearidade está associada ao conceito de progresso, e hierarquiza as culturas a partir das noções de "avançado" / "atrasado".

A narrativa é organizada de forma a dar a entender que todos os eventos do passado concorrem para que o presente seja exatamente como é, elidindo projetos vencidos e desenvolvimentos históricos abordados que apontavam para outras situações.

Idem as acima.

Concepção de progresso, de raiz eurocêntrica.

Concepção estereotipada de civilização, com olhar hierarquizado sobre as culturas

Dificuldade de reconhecimento da alteridade (outras culturas, outros valores, outras concepções de tempo e de história).

Eurocentrismo, que confronta-se com as necessidades de uma educação multicultural.

História integrada

Brasil, anos 80. Trata-se de uma tentativa claramente construída no campo didático, de elaborar uma síntese que levasse em conta as críticas aos modelos tradicionais de História Nacional / História da Civilização ou Geral, sobretudo de encaminhamento linear e desarticulados dos fatos e processos, compondo seqüências "artificiais". Resulta também de uma preocupação comercial das editoras para oferecer livros únicos mais acessíveis no Ensino Médio.

Além dos anteriores, alunos e professores devem ser capazes de estabelecer relações de caráter sincrônico entre histórias distintas. Note-se que determinadas histórias nacionais não têm problemas de integração, já que são de nações européias. Entretanto, existem dificuldades de integração da História do Brasil com a geral, por exemplo, devido a processos, ritmos e durações específicas da História do Brasil.

É possível combinar histórias produzidas com objetivos e características diferentes em uma única história, porque elas contêm processos que são comuns. As histórias nacionais, regionais e continentais são encaradas como capítulos da História da Civilização

Idem às das propostas de fundo tradicional.

Noção de que a cronologia é a única ou principal forma de articulação de conhecimentos e atribuição de seu sentido.

Problemas de articulação dos conteúdos, uma vez que os ritmos, durações e processos não são os mesmos. Isso pode ser uma dificuldade ou uma facilidade para o ensino dessas noções temporais.

As acima, bem como:

Parece superar as críticas ao tradicionalismo e fragmentação da História.

Unifica os materiais didáticos.

História temática

Europa (sobretudo França) anos 70 e Brasil anos 80. Inspirada nos desenvolvimentos recentes da historiografia, sobretudo a Nova História, propõe uma estruturação livre dos cânones tradicionais (abordagem factual, linear, com seqüências e conteúdos obrigatórios, e predomínio da esfera política).

Enfraquece o dado geográfico (Brasil, América, Paraná, Geral) na estruturação dos conteúdos e sua seqüência.

A cognição da história não depende de um encadeamento cronológico, mas de compreensão ou construção de conceitos relevantes e significativos. Explicar prevalece sobre memorizar.

A história é múltipla e não se pode identificar um único fio condutor universalmente válido. O que dá intelegibilidade à história são os conceitos e teorias comuns aos recortes sincrônicos e diacrônicos.

Há o risco da idéia de que história não pode ser compreendida no seu conjunto, só há intelegibidade dos fragmentos ou recortes

Ausência de formação docente e de tradição na prática pedagógica para essa abordagem.

Necessidade de uma formação teórica muito sólida e muita clareza no manejo dos conceitos.

Dificulta ou impede a compreensão da totalidade social.

Possibilidade de inserção sistemática e estrutural dos avanços da historiografia.

Visão de história a partir da multiplicidade e da diferença.

Maior possibilidade de atendimento às necessidades dos alunos de conhecimento histórico.

História "regressiva"

No Brasil, em experiências isoladas e efêmeras a partir dos anos 30, sobretudo inspiradas pelo pensamento escolanovista e pelo construtivismo

A concepção de história é linear, mas na direção do presente para o passado a partir de indagações relevantes do presente. É a lógica que tem possibilidades mais claras de sintonia com as propostas construtivistas.

A história que interessa estudar é aquela que constitui o prsente dos alunos como indivíduos e parte de grupos. Os eventos são abordados a partir disso em ordem inversa à cronológica, prevenindo as crises sobre o significado dos conteúdos estudados.

A história serve à explicação da vida do aluno, antes de mais nada.

Há o risco de uma abordagem etnocêntrica ou mesmo egocêntrica.

- necessidade de criação ou reorganização dos materiais didáticos e de estudo da realidade dos alunos.

- identificação imediata do valor educativo da História pelo professor e pelos alunos.

História através dos "Modos de Produção"

Terceira Internacional Comunista, final do século XIX, com base no materialismo histórico/dialético, inicialmente como método de interpretação da História para a formação de quadros militantes das seções nacionais da IC. No Brasil, ganha espaço após a queda do regime militar, sobretudo na rede estadual de Minas Gerais.

A história é compreendida pelas suas lógicas de transformação, a chave é a compreensão da mudança, condicionada pelas relações concretas entre os homens na produção e reprodução de si mesmos.

A história a ser compreendida está no instrumental teórico que permite compreender as formas pelas quais os homens se organizam para sobreviver (produção) e os fatores que fazem com que a realidade se modifique

Possibilidade de secundarização do sujeito na ação histórica, se são excessivamente enfatizados os condicionamentos estruturais.

Possibilidade de permanência do conceito de progresso típico do século XIX

Pode haver dificuldade para compreender a historicidade, uma vez que há tendência a explicação de várias sociedades diacrônicas pelas mesmas "leis de desenvolvimento histórico".

Por ser primordialmente conceitual e teórica, pode esbarrar nas dificuldades de abstração dos alunos mais jovens.

Persegue a compreensão da totalidade social.

É inerentemente politizada e politizadora, nem que por resistência às suas assertivas.

 

 

 

Referências bibliográficas

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