Um ano e meio atrás, perto da cabana de hóspedes do Templo...
Depois de um dia de trabalho pesado, Lucius se refrescava numa cachoeira próxima, para chegar limpo à cabana de hóspedes a que chamava de "lar". Enquanto a água refrescante e límpida tocava seu corpo, seus pensamentos estavam distantes, imersos num rebuliço maior que o torvelinho da cascata. Inconscientemente, postara-se de costas para a queda d'água, no intuito de esconder sua "marca fatal" de algum olhar indiscreto.

Lucius já estava há mais de um mês na ilha. Sabia que o aniversário de Aurien era a data limite, e estava aflitíssimo por isto - restava apenas um mês e meio para a data fatídica. Se Aurien não declarasse à  sua mãe e a seu tio Jouran ter se apaixonado por alguém até essa data, seu noivado com o primo seria anunciado para toda a ilha, e o casamento se realizaria o mais breve possível. Era o que todos esperavam, o que muitos queriam.

Apesar da atenção especial que ela dispensava a ele, raramente falando no noivo, Lucius sentia-se inseguro. Deveria declarar-se? Como ela reagiria? Perderia sua amizade, seu respeito? Estas dúvidas o faziam hesitar, apesar de toda vontade que tinha de segurá-la nos braços.

Secou-se distraidamente, e como ia até a cabana não se incomodou em pôr a camisa. Colocou apenas a calça e o calçado rústico, feito de paina tecida e sisal. Algumas gotas perdidas desciam por sua pele, e seu cabelo molhado parecia escuro por causa da umidade que persistia. Andou sem pressa para a casa, imerso em pensamentos e tentando planejar o que fazer.

Ao abrir a porta, uma surpresa: Aurien estava sentada à mesa, com a cabeça sobre os braços e adormecida, o longo cabelo preso numa trança grossa arrematada com fios de pérolas de várias cores, sendo na maioria brancas alternadas com pérolas rosadas, cor-de-rosa forte, carmim, cinza-chumbo, cinza-claro, douradas, prateadas, azul-cobalto, azul-claro... Sobre a cabeça, um diadema de platina com pérolas multicores, safiras e esmeraldas repousava sobre a negra cabeleira, com pequenas correntinhas de contas preciosas pendendo das têmporas ao queixo. A maior pérola do diadema repousava engastada num pendente no meio da testa, uma enorme pérola irisada com a forma de uma gota. O régio vestido que envergava tinha mesclados traços árabes e europeus, com corpete justo e com arabescos intrincados em bordados dourados e prateados no tecido azul-celeste, as mangas soltas, compridas e transparentes levemente bordadas no padrão do corpete, assim como a longa saia de camadas, cuja transparência era disfarçada pelas várias saias sobrepostas, sendo a exterior levemente bordada com fios e pérolas metalizados como o corpete e as mangas.

Lucius ficou sob o batente da porta, sem fala e sem ação, por longos momentos. Aurien parecia pronta para uma cerimônia, ou mesmo para um baile da realeza. Parecia uma perdida princesa oriental dos contos e lendas dos beduínos do deserto.

Aurien acordou aos poucos, tendo as faces coradas de sono e as pálpebras pesadas, lânguidas, como quem acorda de um longo sono reparador. Um sorriso leve acompanhava seu espreguiçar,  seguido do tilintar das correntinhas das jóias em suas mãos e pescoço. Em cada dedo da mão, um anel com uma pérola em forma de gota, irisadas como a da testa. Cada anel tinha saindo sob sua pedra uma delicada correntinha, que ficava presa a uma pérola maior sobre o dorso da mão. Duas correntinhas uniam a pérola do dorso a um bracelete largo, recamado de pequeninas pérolas e com uma maior ao centro. Estas estranhas pulseiras-anel simulavam uma luva. No pescoço da jovem uma jóia similar cingia seu delgado pescoço, sendo que as correntinhas que se irradiavam da gargantilha larga pareciam prender as mangas e decote do vestido.

Os olhos dela se encheram de alegria ao ver Lucius, e ela se levantou rapidamente do rústico banco de madeira. Ele ainda não esboçara reação, só não conseguia parar de olhá-la.

- Lucius, veja! Não é linda? Esta roupa usarei no meu aniversário, quando receber oficialmente os dons de Telonika!

Ele conseguiu enfim destravar a língua, murmurando:

- Realmente... Está parecendo uma princesa lendária assim...
- Esta roupa é antiga... Ela passa de geração para geração, e foi refeita inúmeras vezes, sempre com o mesmo tipo de tecido e os mesmos desenhos bordados. Apenas as pérolas e as jóias são reaproveitadas, quando ele fica amarelado. Este estilo de roupa é parte da consagração da Nielah Guardiã desde tempos imemoriais. É uma herança ancestral com pelo menos oito mil anos.
- Tudo isto?!
- A ilha tem em torno de quinze mil... Melhor dizendo: desde que os primeiros habitantes aqui chegaram. Mas isto é história, e hoje não quero perder tempo com o passado! Estou muito feliz! Meu aniversário está chegando, enfim completarei 23 anos. Serei decretada Guardiã dois anos antes do convencional, não é maravilhoso?

Lucius entrou de vez na pequena sala, fechando a porta e sentando-se diante de Aurien, esquecido de que não estava de camisa:

- Guardiã? O que seria isto?
- Serei a responsável oficial por proteger a ilha das tempestades magnéticas, de orientar de modo itinerante as aldeias e clãs da ilha... Bem, para falar a verdade, será apenas uma oficialização, pois já tenho há muito em meu poder a Herança Nielah e há muito sou a guardiã de fato. Entretanto ainda não o era oficialmente.
- E o que está fazendo aqui vestida desta forma, Aurien?
- Ah, eu queria que você fosse o primeiro a me ver assim. Nem minhas queridas jóias me viram sair... Quando vesti este traje e me olhei no espelho, tudo o que eu pensava era "como será que Lucius vai reagir ao me ver assim"?

O rosto dele se crispou numa expressão dolorosa:

- E por que isso? Saber como eu reagiria?
- Não sei, não pensei nisso... Mas você tem razão... É estranho, não é?

O rosto dela espelhava inocência e confusão. Ela também estava intrigada com sua própria reação, na qual só agora pensava.

Ela olhou para si e voltou novamente os olhos para ele, sem graça:

- Eu deveria ter ido mostrar o vestido para meu noivo, não é? Isto não é algo que se partilhe com um amigo...

Foi o tiro de misericórdia, a gota d'água, o passo que faltava. Antes que pudesse pensar, Lucius a enlaçou fortemente, surpreendendo Aurien, a colocou no seu colo e a beijou. A princípio ela não fez nada, aturdida demais com o que se passava. Mas quando um calor intenso e vibrante interligou cada célula do seu corpo ao que os lábios sentiam, quando suas mãos pousaram no peito desnudo e ainda úmido, esqueceu de tudo. De onde estava, de quem era, do que viera fazer... Estava apenas consciente do homem junto a si, que mexia com seu coração e suas forças como nem mil viagens acidentadas pelas zonas temporais poderiam fazer.

No momento em que pararam para respirar, Lucius mergulhou seu olhar nas enormes íris ambarinas. Viu seu próprio olhar baço de desejo e ternura nas pupilas dela. Gemeu entre feliz e angustiado, afundou o rosto no seu pescoço, arranhando-se um pouco na gargantilha dela, e falou:

- Queria ver minha reação? Queria me testar, menina travessa? Olhe só o resultado! Eu não sou de ferro, sabe? Se a garota que amo se apresenta diante de mim com toda esta inocência, numa roupa provocante, você quer que eu me segure? Desculpe... Não posso.

Sem qualquer esforço, ele a colocou de volta no banco e se levantou, dando-lhe as costas.

- Eu... não queria desrespeitar você, sereia. Tenho tentado conter este diabo dentro de mim todo este tempo, mas hoje foi impossível. Fiz de tudo para cativar seu carinho: fui romântico, fui cortês, fui seu melhor amigo e confidente, e me contive o quanto pude para não ofender sua pureza e inocência. Peço de coração que me perdoe, suplico que não me odeie... Se quiser me ignorar de agora em diante, compreenderei. Apenas leve em conta que... eu a amo.

Ainda de costas, de ombros caídos, ele era o retrato da desolação. A musculatura soberba de suas costas, contraída de tensão, testemunhava o quanto era difícil para ele toda aquela situação.

Ela deu uma risadinha:

- Lucius, como você é dramático... Eu...

Foi interrompida por Lucius, que se voltou com os olhos chispando:

- Dramático? Eu?! Não me faça rir! Estou apaixonado por você desde que abri os olhos e me deparei com com seu olhar dourado. Enfeitiçou-me de uma forma tal que ainda tenho medo de que seja um sonho, de que se desvaneça no ar... Sabe o quanto foi duro ter de me conter quando era tão espontânea, abraçando-me, sentando na beirada da minha cama e acarinhando meus cabelos, meu rosto e pescoço enquanto eu "dormia", quando me beijava o rosto para se despedir?! Eu sou um homem, droga!
- Ei, Lucius, poderia esperar eu terminar? Já faz um tempo que eu descobri que sentia por você algo especial. Dez dias atrás, por sentir que meu noivado não daria certo, pedi a Auran que me liberasse do compromisso e me esquecesse. Só que naquele momento ainda não me dera conta de que era por sua causa que eu sentia não poder fazer o que antes achava possível e viável. Foi difícil de minha mãe aceitar, meu tio também achou que eu estava louca.

Ela se levantou do banco e o abraçou, com um suspiro:

- Posso lhe pedir uma coisa...?
- Não sei do que se trata... Peça e descubra.

Os olhos dela o fitaram, brilhando intensamente:

- Faça... de novo. É isto que se chama "beijar", não é? Beije-me de novo... Quero sentir tudo aquilo outra vez.

Os olhos dele expressaram hesitação e ternura. Para compensar a diferença de altura, Lucius a sentou na mesa, beijando-a primeiro na testa, depois nos olhos, nas bochechas... Quando os lábios dela procuraram os seus, um tanto desajeitados, seu olhar azul-violeta parecia arder em chamas. Tomou a boca cálida que se oferecia com doçura, aumentando a pressão e a paixão gradativamente, fazendo-a descobrir que um beijo era fonte de inúmeras sensações: formigamento, aquecimento, enlanguescimento... Ela ouvia o coração bater em seus ouvidos, completamente extasiada. A língua, os dentes, os lábios de Lucius tinham um gosto, um jeito de acariciá-la que a enlouqueciam. Ele mordiscava, lambia, beijava, sugava, deixando-a completamente entregue em seus braços. Para se controlar melhor, ele parou, ofegante, levantou sua cabeça e contemplou aquele rosto amado com devoção e posse.

- E então, sereia... Já me seduziu o suficiente?

Ela riu, pondo as mãos no peito amplo como quem quer afastar, mas acarinhando de leve, para desespero dele:

- Quem seduziu quem, meu náufrago? Foi seu olhar de luz que me encantou primeiro... Você me acusa de tê-lo enfeitiçado, mas... Tenho certeza de que foi você quem me pôs um encanto desconhecido.

Ele riu roucamente:

- Oh, parece que a mocinha está reclamando...

Ela se apressou em retrucar:

- De forma alguma! É quê...

Ela o olhou fixamente nos olhos:

- Eu sempre pensei que estas coisas estavam fora do meu alcance. Recebi declarações de amor que não me tocaram em nada, que só me causaram uma sensação de tristeza, desconsolo, piedade... Mas, quando você falou que me amava, senti que algo dentro de mim se libertava, como se as asas, antes presas junto ao corpo, se estendessem às minhas costas e agora eu pudesse voar o mais alto que minha imaginação pudesse levar.

Pondo a mão sobre o tigre que ele tinha no peito, em cima do coração, ela tocou com a outra o próprio peito, pensando alto:

- Estranho... Seu coração está acelerado como o meu... É normal?
- Sim, querida, é normal...

Lucius sentou-se no banco, um pouco afastado, estranhamente silencioso. Aurien, num salto, desceu da mesa e sentou-se a seu lado. Notou que ele olhava fixamente à frente, pela janela, o olhar perdido e uma expressão séria nas faces.

- Lucius... O que há de errado?
- Nada... - ele respondeu baixinho.
- Sinto que há algo que você quer me dizer, mas não disse...
- Você não me disse...

Pacientemente, como quem fala com uma criança, Aurien indagou:

- Eu não disse o quê?
- O que sente por mim... Curiosidade, paixão... amor?

Foi a vez de Aurien ficar pensativa, e de Lucius fitá-la atentamente, sem perder uma reação sequer. O rosto alvo parecia tremendamente concentrado, tentando entender tudo para colocar em palavras:

- Eu não sei dizer. Sinto muito a sua falta quando não está comigo. Fico lembrando das coisas que conversamos, do modo como seus olhos brilham e ficam claros quando você ri... Tenho sempre vontade de ajeitar seu cabelo, como se fosse um dos meninos das aldeias que visito, mas fico com vergonha, lembrando que você é um homem... e que quando o toco sinto algo estranho. Parece que minhas mãos comicham, como se uma energia fluísse de mim para você e vice-versa, de modo desencontrado. A única vez que fiquei realmente consciente dos riscos de ser uma mulher e estar a sós com um homem foi com você. Isto nunca me preocupou ou passou pela minha cabeça antes... Sei que, mesmo sendo bem menor que você, poderia colocá-lo no chão sem sequer tocá-lo, porém... Sempre ficava pensando que eu queria que meu náufrago fizesse algo... Que eu nem conseguia verbalizar, pensar ou imaginar direito... E hoje descobri. Claro, eu sabia a teoria... Mas parecia algo tão... estranho. Confesso que achava meio nojento até... Fluidos corporais sendo trocados, coisas assim... No entanto agora entendo porque os habitantes da ilha não abriram mão do contato físico para gerarem vidas.

Encarando-o com firmeza, concluiu:

- Se tudo isso é amar... Então amo você. Se esta dor que sinto, quando penso no futuro que não existe para nós, é um indicativo... Eu o amo demais.

Lucius ficou dividido entre o receio e a euforia. Euforia pelo fato de ser correspondido. Receio pelo comentário estranho a respeito do futuro.

- Aurien... Por que diz, com tanta convicção, que não teremos futuro? Nosso amor só está começando!

Sem dizer nada, ela voltou a se sentar na mesa. Novamente sua expressão denotava seriedade, que agora mesclava-se a resignação e tristeza. Assim que achou as palavras que queria, começou a explicar:

- Meu noivado de conveniência tinha uma razão de ser. Era uma tentativa, uma oportunidade, de eu ter filhos antes de... clamar sobre mim o meu destino.
- E por que era tão importante que você tivesse filhos? Também poderemos tê-los, claro, mas... Por que esta urgência?
- Em breve, daqui uns anos, terei de abdicar de minha existência comum para fazer de minha vida o que nasci para ser. Todos os clãs aguardam com muita ansiedade o passar das gerações das Nielah, pois há uma geração especial... A vigésima terceira, que encerra um ciclo e começa um novo. Esta Nielah, cujos poderes e responsabilidades excedem às outras, se chama Ben Al Chems. Dentro da hierarquia Nielah a Ben Al Chems está acima até da Absoluta. A Absoluta continua governando a ilha... Mas a palavra final em qualquer questão será da Ben Al Chems. As Ben Al Chems, antes de o serem, passam um ano reclusas sob um encantamento, chamado de Maldição, e saem deste lugar completamente mudadas. Esquecem de sua vida pregressa, como se renascessem, e ficam tremendamente poderosas, ou melhor dizendo, com plenos poderes. Aí está o motivo da "urgência": minha mãe, preocupada com o destino do clã, queria que eu desse descendência para preservar sua linha direta na árvore genealógica. Só tenho no máximo três anos para isso.
- Você disse que uma Ben Al Chems "esquece" de sua vida... Esquece das pessoas também?
- Sim, de todos. Até de seus pais, seus irmãos... Que dirá um marido ou filhos. Meu marido tinha sido escolhido dentro da família por isto. Ele sabe de tudo e ainda assim aceitou ser esquecido depois... Claro, com minha entrada no Túmulo de Âmbar seríamos oficialmente "desligados", ele poderia recomeçar sua vida sem problemas. Ao sair de lá, nem saberei quem é Aurien... Serei rebatizada de Heliodora, e será por este nome que atenderei.

Balançando nervosamente as pernas, Aurien fitou o vazio, suspirando:

- Vê por que eu pensei que o amor fosse algo impossível e fora de meu alcance? Será apenas sofrimento para aquele que eu amar ou que me ame. Porém... Não nego que meu lado egoísta ficou feliz e satisfeito de saber que meu amor era correspondido... Que eu pude conhecer o amor... Mesmo sem poder vivê-lo como se deve.

Ao olhar para Lucius, Aurien começou a chorar baixinho, fazendo cair no chão várias pérolas cinzentas e rosadas. Tristeza e amor sob a forma de jóias. Como Lucius nunca tinha visto Aurien chorar antes, não sabia que as lágrimas das Nielah se convertiam em pérolas, e estava surpreso, pêgo a meio caminho de um gesto de consolo, estático e sem ação pelo que se passava, até que enfim reencontrou a voz:

- O que é isso, Aurien?!
- As... lágri... mas... Nie... lah viram... péro...las em... contato... com o... ar da... ilha. Depois... eu explico.

Lucius a abraçou, deixando a questão de lado. Sentia o deslizar das pequenas esferas por seu torso, quase fazendo cócegas, e fixou-se na questão que o preocupava deveras: mesmo que pudesse viver com Aurien algum tempo, este tempo seria limitado. Desde que a conhecera estavam em contagem regressiva, e nem sabia disso!

Quando ela serenou, deixando-se ficar abraçada a ele e suspirando de vez em quando, ele disse:

- E o que você pretende fazer a nosso respeito, Aurien? Não podemos desperdiçar o pouco que teremos. Mesmo pouco, sempre será melhor que não ter vivenciado o amor.
- Querido, você não entendeu? Eu não poderei reconhecê-lo depois de ter entrado no Túmulo! Você conseguiria conviver com o fato? Poderá me ver de longe, mas será como um estranho para mim. Apenas mais um, sem destaque algum. Nem os filhos que tivermos eu poderei reconhecer... Poderá conviver com isso?

Suspirando, Lucius decidiu ser sincero:

- Para ser franco, sereia, eu não sei. A única certeza que tenho é de que sei que me arrependerei se não viver com você o tanto que conseguirmos o quanto antes. Não creio que eu possa amar outra pessoa da mesma forma que a amo, ou que poderei ser feliz vendo-a de longe, tranformada numa estranha incapaz de me distinguir dos demais. Só o que sei é que minha vida será vazia demais no futuro, então quero enchê-la de lembranças agora, para ter o que recordar quando tudo mudar e você me esquecer...

Ele próprio sentia vontade de chorar, mas se continha. Via-se com uma menininha no colo e um garotinho pela mão, olhando para Aurien de longe, sem sequer receberem um aceno ou gesto mais pessoal por parte dela. Apenas o olhar de uma estranha que vê um homem com sua prole. Não o olhar de uma esposa e mãe para seu marido e seus próprios filhos. Uma cena desoladora, triste e árida a seu ver. Mas que parecia ser o futuro de ambos.

Envolvendo as faces bronzeadas com suas mãos brancas e macias, Aurien o fitou nos olhos, o rosto ainda marcado pelo choro recente e uma tremenda dor no olhar:

- Eu imploro, meu querido... Suplico que me perdoe... Se eu ao menos tivesse notado o que estava acontecendo... Talvez, se eu tivesse me afastado de você a tempo, ao invés de forçar uma convivência cada dia mais estreita... Isto tudo é culpa do meu egoísmo!
- Ei, não se culpe! Você não pode se impedir de ser quem é... E mesmo que tivesse se afastado, já era tarde demais pra mim.

Ele apertou de leve as maçãs do rosto dela com ambas as mãos, num gesto carinhoso:

- Eu não lhe contei que me apaixonei à primeira vista? Então... Só se você não me salvasse para evitar que o amor nascesse... E ainda assim não garanto. Seria questão de tempo, caso eu tivesse sobrevivido, uma hora ou outra nossos caminhos se cruzariam... E daria no mesmo, não acha? Eu creio piamente nisto. Não tínhamos como escapar, tinha de ser e pronto. Só nos cabe aceitar, não vê?
- No entanto... Do fundo do meu coração, gostaria de que nosso amor fosse possível e normal. Se pudesse escolher, eu seria uma moça comum, distante da linha de sucessão de qualquer dos clãs, tendo por obrigação apenas seguir minha vida pacata... Então, certo dia, encontraria um belo náufrago de olhar violeta, eu me apaixonaria... E viveríamos felizes.
- Querida, isto é um conto-de-fadas. Fugir da realidade não será solução. Apenas um adiamento, ou mesmo uma perda de tempo, que só lamentaremos no futuro. Cada instante, cada segundo que perdermos jamais poderá ser recuperado.

Afastando-se dele, Aurien foi até a janela, onde se debruçou, olhando para o templo que se erguia na colina ao lado. Foi seguida de perto por Lucius, que passou seu braço longo e forte pelos frágeis ombros. Apoiando a cabeça numa das mãos e o cotovelo no parapeito, ela disse:

- Se você quiser... Eu posso apagar qualquer vestígio de minha existência de sua mente. Todas as lembranças, fatos, dados... Sentimentos... Posso fazer isto agora ou antes de clamar a Maldição sobre mim.

Ele se afastou a passos largos, indo para o outro lado do aposento. Surpresa pelas maneiras bruscas, Aurien se voltou. Viu que ele a fitava, irritadíssimo, o rosto vermelho e braços cruzados denotando raiva e mágoa, e indagou, confusa:

- Lucius, o que há? Eu apenas...
- Que raios de sugestão foi essa?! Pensei que eu tivesse deixado tudo muito claro! Não tenho a mínima intenção de enterrar minha cabeça no primeiro buraco e esquecer o que senti e sinto. Esta é a minha escolha! Se vou sofrer com ela, problema meu. Mas não admito que ninguém tire isto de mim... Ainda mais você, justamente você, que é a pessoa que me despertou estes sentimentos.
- Desculpe, eu apenas estava pensando no seu bem... Não quero que seu amor um dia se torne um fardo tão grande... que possa fazê-lo me odiar. Mesmo que Heliodora não compreenda estes sentimentos, tenho certeza de que a Aurien que viveu neste corpo, onde quer que ela possa ter ido parar, sofrerá muito ao sentir-se odiada por quem mais ama.

Relaxando os braços, ele se aproximou alguns passos, ainda mantendo certa distância:

- Tolinha... E quem disse que eu odiaria você? Nenhum de nós tem culpa alguma nisto. Somos vítimas, não algozes. Aprenderemos a conviver com os problemas à medida que surgirem, certo? Um passo por vez, nada mais do que isto. É pedir demais?

Correndo para os braços que se abriram para ela, Aurien se aninhou, apoiando o rosto no peito largo:

- Você vai ter de me ensinar a viver assim... Fui educada para sempre pensar nas conseqüências, procurar soluções... Viver simplesmente não é algo fácil para uma Nielah. Terá de ser meu mestre nesta matéria... Estará preparado para isto?

Ela sentiu-se aquecer ao ouvir a risada dele, sentindo-a reverberar no tórax amplo e entrar em seu ouvido diretamente:

- Claro, sereia... O mestre mais exigente que jamais teve! Você não se livrará tão fácil de mim! Depois de terminar seus deveres para com os telonikes, seu tempo será todo meu, não esqueça! Cada segundinho que tiver de folga, vai passá-lo comigo. Já vivemos tempo demais separados, e passaremos muito mais no futuro. Precisamos aproveitar ao máximo...
- Sim, concordo... A partir deste instante, só existe o agora.
- Não, sereia, como seu mestre sou obrigado a corrigi-la.
- Hã?
- Só existe o agora... e nós!

Rindo, começaram a se beijar, até que o som dos risos se dissipou no ar, dando lugar a sonhos e planos sussurrados à meia-luz do entardecer.

GLOSSÁRIO:
límpida: limpa, clara, transparente.
imersos: mergulhados, afundados em.
rebuliço: confusão, movimentação.
torvelinho: agitação, redemoinho.
postara-se: colocara-se, posicionara-se.
intuito: intenção.
fatídica: que traz um destino, uma desgraça, um futuro.
hesitar: titubear, estar indeciso.
rústico: rural, camponês.
paina: espécie de "algodão produzida por uma árvore chamada "paineira".
sisal: fibra têxtil, cuja textura se assemelha às de cordas de fibras naturais.
persistia: continuava.
arrematada: terminada, enfeitada com.
diadema: meia coroa, uma faixa em geral metálica usada para adorno.
irisada: com as cores do arco-íris, colorida.
régio: digno de reis, da realeza.
arabescos: caprichoso entrelaçamento de figuras geométricas, folhas, plantas, homens e animais, feito à maneira árabe.
beduínos: povo nômade do deserto.
lânguidas: preguiçosas, sensuais, amolecidas.
tilintar: barulho de moedas, de sininhos, metal contra metal.
recamado: revestido, recoberto.
cingia: rodeava, apertava (em volta de)...
delgado: longo e estreito.
irradiava: saía, em forma de raios (raiado) de um ponto central.
murmurando: falar bem baixinho.
itinerante: nômade, que não pára num só lugar, que vaga.
íris: parte colorida (azul, verde, castanha...) do olho.
cativar: conquistar.
cortês: agradável, gentil, de bons modos.
desolação: aflição, tristeza.
soberba: de causar inveja, de que se orgulhar (neste caso, rs).
chispando: faiscando, lançando chispas.
desvaneça: desapareça, suma.
extasiada: em êxtase, encantada...
comicham: coçam, "formigam".
fluísse: saísse, isse...
fluidos: líquidos (no caso, ela se refere às secreções corporais, como saliva, suor, etc.).
resignação: renúncia, abdicação, que desistiu de lutar contra algo.
clamar: chamar, trazer para.
abdicar: renunciar, desistir.
hierarquia: distribuição ordenada dos poderes, ordem de comando.
reclusas: retiradas, isoladas, encerradas em algum lugar.
pregressa: que veio antes.
plenos: totais.
serenou: acalmou.
prole: filhos (coletivo de).
árida: desértica, seca como um deserto. Em sentido figurado, algo desolador, triste, cenário sem vida.
pacata: calma, serena, sem grandes emoções...
vestígio: rastro, pista.
bruscas: repentinas.
algozes: carrascos.
reverberar: refletir, ecoar.
"Lágrimas em forma de jóias."
Meus links favoritos:
A Maldição de Ben Al Chems
Saga Meriden
Dicionário Priberam (Português de Portugal, mas bem útil e "usável")
Dados da Autora
Kiandra
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