FREUD FLINTSTONE (Anderson Fonseca)

Nenhum brasileiro, nas últimas semanas, conseguiu ficar alheio ao assunto da moda: os programas de televisão que têm exposto pequenas tragédias de alguns lares do país e seus elevados índices de audiência obtidos. Os críticos mostram-se surpresos com tamanho sucesso, mas será que esse prazer de ver o sofrimento de outrém é novo?

Desde os mais distantes tempos, o ser humano delicia-se com tragédias. Há alguns séculos, milhares de pessoas ocupavam lugares em arquibancadas e tribunas para assistirem semelhantes serem destroçados por leões. Nos tempos atuais; mesmo após os avanços nas artes e nas ciências, o crescimento da racionalidade, a declaração dos direitos humanos e até a criação da Anistia Internacional; todos ainda sentimos atração em presenciar tragédias nas mais diversas formas, e o programa do Ratinho é apenas uma delas. Poderiam ser outras: ver seu irmão escorregar numa casca de banana ou mesmo seu vizinho espancar o cachorro, senão a própria esposa. Tais prazeres, tachados de pré-históricos por racionalistas, nos ajudam na descrição do complicado mosaico que constitui o homem pós-moderno: um difícil equilíbrio entre a lógica e a emoção, uma mistura de um ícone racional com um outro que nos liga a atitudes da pré-história (as emoções puras e sem culpa, o instinto). Então, por que não nomear o nosso homem de Freud Flintstone?

Hoje, as arenas ainda existem; mas, para negar o seu lado Flintstone, o nosso Freud tratou de tornar as coisas mais veladas. Os gladiadores estão por aí, na televisão, em lutas milionárias. A grande diferença foi a instituição da figura do mediador da luta, que a interrompe antes que algum dos "heróis" venha a morrer. Caso alguma fatalidade ocorra, foi a-ci-den-te, e todos voltam para casa com a consciência limpa. A violência que mais movimenta dinheiro é a de mentirinha: filmes de ação, repletos de tiros e explosões. Freud Flintstone os assiste com prazer. No final, presencia o vilão ser espetacularmente degolado; porém, no fundo, guarda uma frustração: foi apenas ficção. Então, Freud Flintstone vai até a vídeo locadora e retira a fita "Faces da Morte 5". Vê cenas reais dos mais variados tipos de morte e dorme feliz. É provável que, com todo niilismo que o rodeia, seja necessário para Freud Flintstone assistir a morte de alguém para acreditar que está vivo.

Freud Flintstone assiste também a corridas de automóvel. Sim, é muito excitante ver carros dividindo curvas a mais de 300 km/h. Melhor ainda quando alguém se estatela na parede. Mas, quando a conseqüência da corrida o atinge, Freud Flintstone chora. Se um campeão mundial acaba morrendo ao vivo para mais de 150 países, Freud Flintstone tem uma crise de consciência: se desespera de tanta tristeza e revê o acidente mais de 50 vezes. Em câmera lenta, é claro.

É justamente nesse instante que surge uma nova categoria: se há o Freud Flintstone consumidor, deve haver um Freud Flintstone para vender - a mídia. Freud Flintstone quer curtir mais um pouco a sua dor, então, um farto material lhe é fornecido: jornais, revistas, especiais de televisão, discos... E Freud Flintstone compra, cheio de emoção e guardando no coração uma revolta que não sabe muito bem de quê. Mal sabe que está revoltado com uma situação que ele própio ajudou a criar.

Mesmo que você, meu amigo Freud, negue a existência do sobrenome Flintstone em você, não esqueça que ele está presente em todo lugar. Se ele não está com você agora, estará amanhã quando ambos presenciarem um atropelamento e procurarem freneticamente por sangue no asfalto. Ou talvez ele tenha estado com você na última terça-feira e você nem percebeu: quando vocês foram ao shopping e compraram um CD do Tim Maia.