Resumo
Quando um antropólogo aborda o tema sexualidade, o primeiro mandamento
a ser en-fatizado é que, enquanto no reino animal irracional as funções
se-xuais são determinadas fundamen-talmente pelo instinto, a sexualidade
humana se manifesta através de padrões culturais historicamente
determinados, donde sua dinami-cidade temporal e diversidade es-pacial e performática.
A sexualidade humana é uma constructo cultural, tanto quanto os hábitos
alimentares e corporais. Nascemos machos e fêmeas e a sociedade nos faz
homens e mulheres. Mais ainda: o ser mas-culino e o ser feminino variam enorme-mente
de cultura para cultura, modificando-se substantivamente ao longo das gerações
dentro de uma mesma sociedade. Discutimos neste ensaio basicamente a construção
histórica da sexualidade brasileira, destacando a presença primacial
de três complexas matrizes sexuais: o modelo sexual hegemônico dos
donos do poder, representado pela moral judaico-cristã fortemente marcada
pela sexofobia, e os modelos peri-féricos indígena e africano,
dominados por multifacetada pluralidade cultural e grande permissividade relacional.
Concluímos mostrando a relação estrutural entre escravidão
e o machismo.
Modelo Hegemônico Judaico-Cristão
O traço definidor da moral sexual judaico-cristã é a sexo-fobia.
Diferentemente de outras culturas, onde deuses e sacerdotes praticavam toda
sorte de "perver-sões sexuais" consideradas ou neutras do ponto
de vista moral, ou mesmo virtuosas - a religião judaica prima pela dificuldade
em conviver com os "vícios da carne". Javé - diferentemente
dos Orixás, de Apolo e Tupã, é um deus assexuado. O céu
judaico-cristão -tão diverso dos congêneres dos muçulmanos
e germanos - é um pa-raíso assexual, onde os que na terra foram
virgens ou ce-libatários estarão mais próximos do trono
do Cordeiro e da Virgem Maria.
Como traços car-deais da cultura sexual abraâmica, salientam-se
o tabu da nudez, o machismo, o patriarca-do, a mo-nogamia e indissolubilidade
do matrimônio como alicerces da fa-mília nuclear, a noção
de honra e a virgindade pré-nupcial como re-quisito para as alianças
matri-moniais.
Modelo tão rígido comportou, desde os tempos bíblicos,
espaço para os desvios, que mesmo casti-gados alguns até com o
apedreja-mento ou a fogueira, fizeram parte integrante do modus vivendi de nossos
antepassados. Adultério, concubinato, sodomia e violência sexual
- todos condenados pelos rabinos e sacerdotes - nem por isto foram completamente
eliminados do orbe cristão, e abundam nos arquivos os processos civis
e religiosos contra tais pecadores, personagens freqüentes em nosso passado
colonial. Uma das representações mentais mais interessantes e
persistentes entre nossos ante-passados ibéricos transplantada para o
Novo Mundo foi o que os teólogos chamavam "heresia con-tra a fornicação
simples" em razão da qual inúmeros colonos de nor-te a sul
do Brasil foram denuncia-dos à Santa Inquisição, por defen-derem
a proposição herética de que não eram peca-do os
atos sexuais entre pessoas desimpedidas (i.e., que não fossem casadas,
virgens ou que tivessem votos religiosos). Outros, igualmente investiga-dos
pela sanha inquisitorial, eram acusados de propalarem que "era melhor se
casar do que ser padre", em franca oposição ao ensinamen-to
do donzelo Apóstolo Pau-lo.
Não bastassem as ameaças re-presentadas pelos "heterodoxos"
descendentes dos primitivos colo-nizadores, a moralidade imposta pelo Levítico
e Catecismo Roma-no sofreu seu mais grave embate através do confronto
de outros modelos sexuais, aos quais chamamos de "periféricos",
posto terem sido tratados sempre como marginais por parte dos donos do poder
hegemônico. Referimo-nos às matri-zes sexuais indígena e
africana.
Matrizes periféricas: Índios e Africanos
É incorreta a suposição de que índios e africanos
ostentassem, cada etnia per si, uma conduta sexual homogênea. O correto
é falarmos de "sexuali-dades indígenas" e "sexualidades
africanas" posto coexistirem, lado a lado, na Ameríndia e no Conti-nente
Africano, centenas e cente-nas de padrões sexuais completa-mente diversos
e às vezes antagônicos. Em comum, podemos detectar duas macro-tendências:
a enorme diversidade estrutural destas sexualidades e uma menor ri-gidez repressiva,
levando-se em o conta que se tratam de sociedades ágrafas e pour cause,
baseadas em tradição oral menos rígida se com-parada com
sociedades dominadas por códigos e leis escritas - algumas - delas, como
a judaica, mandamentos escritos em tábuas de pedra e re-veladas pela
própria divindade.
Se tomarmos como inspiração a sexualidade dos índios Tupinambá,
a primei-ra constatação, que tanto chocou os cronistas coloniais,
é a relação absolutamente neutra que tais sil-vícolas
mantinham com a nudez, além de primarem por desbragada luxúria,
falando cons-tantemente entre si de suas "suji-dades", incansáveis
em procurar variegados gozos eróticos, conhe-cendo diversos afrodisíacos
e ma-gias sexuais, que os cristãos inter-pretaram como coisas do Diabo.
Polígamos, tais nativos pratica-vam uma espécie de gerontocracia
sexual onde os mais velhos guer-reiros, aqueles que tinham matado o maior número
de inimigos, tinham maior acesso às mulheres mais jovens. Não
só os Tupinambá, como diversas outras tribos nas três Américas,
abrigavam em suas al-deias grande número de "inverti-dos sexuais
" de ambos os sexos, chamando aos homossexuais masculinos de "tibira"
e às lésbicas de "çacoaimbeguira".
Quanto à sexualidade dos afri-canos que vieram escravizados pa-ra o Novo
Mundo, os traços mais comuns, que aproximariam a enor-me diversidade
cultural das centenas de etnias envolvidas na diáspora negra, seriam,
além da poligamia poligínica, a prática de mutilações
sexuais geralmente associadas a ritos de iniciação na in-fância
ou puberdade. Se tomarmos como exemplo algumas etnias do antigo Reino de Be-nin
- de onde procedeu a mais importante leva de africanos no úl-timo século
do escravismo, notamos como elementos característi-cos de sua sexualidade
a grande liberdade sexual das crianças e adolescentes, tolerân-cia
à masturbação recíproca, prá-tica da circuncisão
dos meninos e clitoridectomia nas donzelas.
"Não há escravidão sem depravação sexual.
É da essência mesmo do regime..." dizia Gilberto Freyre, demonstrando
cabalmente que a exacerbação erótica observada no Brasil
Colonial deve ser ex-plicada não por "defeito" da raça
africana, mas pelo abuso de uma raça por outra: "ao senhor bran-co,
e não á colonização negra deve-se atribuir muito
da lubrici-dade brasileira."
O que temos como certo é que o machismo ibérico assumiu - no Novo
Mundo, devido às condi-ções demográficas e sociológicas
da escravidão, uma feição muito mais agressiva e virulenta
do que a observada em Portugal e Espa-nha à época das Descobertas.
Abaixo do Equador, onde os brancos donos do poder representavam por volta de
um quarto dos habi-tantes, somente a extrema violên-cia e o autoritarismo
conseguiram manter submissa toda aquela mas-sa populacional de negros, índios
e mestiços, infelizes seres humanos tratados a fogo e ferro pela mino-ria
senhorial. Numa sociedade tão marcada pela injustiça social, so-mente
homens ultraviolentos seriam capazes de manter ordem e respeito junto à
"gentalha", daí ter-se desenvolvido um código de hi-pervirilidade,
que anatematizava, entre os machos brancos, qualquer conduta ou sentimento "feminino",
pois ameaçavam a própria manu-tenção dessa sociedade
estamen-tal e oligárquica. Aí está a raiz do machismo à
brasileira, filho bastardo da escravidão.
"Há males que vêm para bem", diz o brocardo popular,
e no caso do regime servil, podemos pinçar alguns elementos que influencia-ram
positivamente nossa ideologia e práticas sexuais hodiernas. Embo-ra não
possamos concordar que nosso país seja um exemplo de "democracia
racial', dadas as desigualdades sociais ainda hoje dominantes em nosso meio,
não há como negar que as interações sexuais inter--raciais
se deram no Brasil com muito maior freqüência, com menos violência
e com maior "cordialidade" do que nos demais países escravis-tas.
Diferentemente de outras so-ciedades, nas quais os senhores manifestavam nojo
e repulsa sexual vis-a-vis às fêmeas das "raças infe-riores",
entre nós desenvolveu-se um erotismo mestiço que fez da mulata
hoje, e da negra "mina" no século XVIII, o modelo mais cobiçado
de parceira sexual. Como dizia no sé-culo passado Charles Expilly, na
sua instigante obra Costumes e Mulheres do Brasil, "aquele que sentiu duas
vezes o cheiro acre, mas embriagador, da catinga de uma negra, achará,
desde então, muito desenxabido o chei-ro que exala a pele da mulher bran-ca..."
Segundo esse autor, tratava--se tal enunciado de um "axioma português".
Um segundo aspecto positivo, herança da miscigenação e
hibridismo pluricultural, é a influência das matrizes periféricas
de nossa se-xualidade, na alforria dos brasilei-ros da rigidez do Levítico
e do Ca-tecismo Romano. Um amoralismo mestiço e crioulo domina nossa
cultura sexual, destacando-se o Brasil, no cenário mundial, pelo exibicionismo
de nossas mulheres inventoras da devassa tanga, pela exportação
de travestis que causam furor entre franceses e italianos, pela extravagância
sensual de nos-sos desfiles de escola de samba, pelo remelejo dos bumbuns de
homens e mulheres no pagode. Não é por menos que nosso país
ocupa o segundo lugar em casos de Aids no ranking mundial, com uma estimativa
de mais de meio milhão de pessoas infectadas, 50% das quais por via sexual.
Nota
1. "A sexualidade no Brasil colonial", Diário Oficial
Leitura São Paulo, nº141, fevereiro 1994:6-8
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