Entrevista n.3
Sobre teorias, história da homossexualidade e biografia
Para o jornal O Mossoroense, RN

1. O MOSSOROENSE - Sir Richard Burton, Cole Porter, Santos Dumont, Gore Vidal, Tenesse Williams, Sófocles, Imperatriz Leopoldina. Homossexuais de diferentes espaços geográficos e cronológicos da história da humanidade. Dá para se precisar quando foi registrado o primeiro caso de homossexualidade?
LUIZ MOTT - O poeta alemão Goethe costumava dizer que a homossexualidade é tão antiga quanto a própria humanidade. E de fato a história começa por volta de 5 mil anos antes de Cristo. Já em 4.500 anos a.C. há o primeiro registro de uma relação homossexual que seria entre o deus Oros e Seti na tradição egípcia. De forma que a homossexualidade existe em todas as sociedades, algumas mais, como na sociedade grega, onde grandes filósofos como Platão, Sócrates, Alexandre Magno, foram homossexuais e onde chegou a existir um exército que era conhecido como o "Batalhão dos Amantes" porque era todo ele composto de homossexuais e onde surgiu a primeira e mais famosa lésbica da história, que é a Safos de Lesbos, é daí que vem o nome lesbianismo. Portanto, a homossexualidade é tão antiga quanto a própria humanidade e está em todos os povos.

2. OM - Até mesmo entre os índios?
LM - Os índios brasileiros praticavam a homossexualidade, tanto a feminina quanto a masculina. Entre as índias haviam espécies de amazonas, guerreiras que adotavam costumes dos homens. Isso faz parte da história do Brasil, embora não muito ensinada. Uma das referências mais antigas da história da homossexualidade entre os índios é que ali na Paraíba, onde hoje é chamada a Baía da Traição, era chamado o Cajual dos Tibiras, e tibira era o nome como os índios chamavam os homossexuais. Então, ali na Paraíba existia uma espécie de uma comunidade gay já na época da descoberta. E os africanos também por sua vez praticavam a homossexualidade na África. Em Angola e na Nigéria havia a presença de homossexuais, inclusive de travestis, de forma que quando se diz que a homossexualidade é coisa de branco, foi uma invenção dos europeus, não, ela sempre existiu e em todas as sociedades.

3. OM - A homossexualidade já constou do Código Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS) e foi retirada por não se tratar de tal coisa. Diante disso, o senhor acredita que a homossexualidade é uma opção de vida ou desvio de normalidade?
LM - A homossexualidade é melhor que o homossexualismo. Hoje em dia não usamos esse sufixo ismo, que denota doença, porque desde 1985, graças à pressão do Grupo Gay e de vários grupos do Brasil, o Conselho Federal de Medicina retirou a homossexualidade da classificação de doenças no Brasil. Em 1990, foi a Organização Mundial de Saúde (OMS) quem declarou que a homossexualidade não é doença. Existem mais de 70 teorias que tentaram explicar a homossexualidade, seja na Mitologia, na Religião, na Biologia, na Genética, na Psicologia, a maioria dessas teorias se contradizem, elas não são sustentáveis cientificamente, e cada vez mais o que os homossexuais dizem é que não nos interessa saber qual é a origem da homossexualidade, mas queremos saber como superar o preconceito.

4. OM - Por quê?
LM - Já que todas as ciências, a Medicina, a Mitologia, a Biologia, a Antropologia, dizem que nada distingue um homossexual de um heterossexual, a não ser o fato de que os gays gostam do mesmo sexo e os heterossexuais do sexo oposto e os bissexuais dos dois sexos. Portanto, se nada distingue em termos de inteligência, capacidade e honestidade um gay de um heterossexual, tem teólogos, católicos e judeus que dizem que não é pecado, e a principal prova de que não é imoral é que se Jesus Cristo, filho de Deus, considerasse que homossexualidade fosse pecado, teria dito e não tem nenhuma palavra no Evangelho de Jesus condenando os homossexuais, condenando sim os hipócritas, os bêbados, os adúlteros, os ladrões, mas não aos homossexuais. Não é mais crime, embora ainda haja preconceito e discriminação, já que a ciência garante que é normal. O que os homossexuais querem é ser tratados com igualdade.

5. OM - Por que ainda não foi aprovada no Brasil a parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo?
LM - É absurdo que dois gays ou duas lésbicas morando juntos não tenham direito à parceria civil reconhecida. É fundamental que seja aprovado no Congresso esse projeto apresentado pela então deputada e hoje prefeita de São Paulo, Marta Suplicy (PT), que garante aos homossexuais, não o casamento, como já é considerado na Holanda, mas a parceria civil registrada que vai garantir aos gays o direito de declarar Imposto de Renda juntos, de fazer um empréstimo bancário, de o patrimônio conseguido juntos ser dividido quando um dos gays se separa ou quando um dos dois falece, porque o que acontece é que a família do que faleceu geralmente se apropria de todos os bens e o sobrevivente fica na rua da amargura por não ter nenhuma garantia legal de poder construir essa parceria juntos.

6. OM - Qual foi a discriminação mais forte que você já sofreu?
LM - Eu como sou um gay do tipo mais masculino, não sou nem travesti, nem desmunheco, nem sou efeminado e sei lutar capoeira e dou porrada em qualquer um que me olhar atravessado, pois bem, eu sofro menos discriminação do que uma travesti, do que um gay efeminado ou uma lésbica masculinizada porque a sociedade é muito intolerante em relação a essas pessoas que saem da regra, que são desviantes. Mas, apesar de ser um professor, de ser um senhor de idade, é incrível o desprezo como as pessoas tratam homossexuais. Meninos de rua, por exemplo, quando vêem um gay o insultam, o agridem, apesar de ser uma pessoa mais velha, de condição econômica superior, não tem o menor respeito. Eu costumo dizer que no Brasil o primeiro sexo é o sexo forte, o segundo o frágil, que são as mulheres, e os gays não são nem o terceiro sexo, é depois do 24º sexo. Quer dizer, é a categoria social mais discriminada. Eu já por duas vezes recebi murro na cara. Uma vez de um protestante quando eu defendia os direitos dos homossexuais protestando contra declaração discriminatória de um protestante em praça pública e no Dia da Independência da Bahia, quando o Grupo Gay da Bahia desfilava junto a outros grupos, nós fomos violentamente agredidos, nossas bandeiras foram arrancadas, por mero preconceito homofóbico, porque a nossa sociedade ainda considera que homossexual é um descarado, um anormal.

7. OM - E a igreja, como trata os homossexuais?
LM - Os protestantes sobretudo nos consideram pecadores e o próprio arcebispo cardeal do Rio de Janeiro chegou a declarar que homossexuais é que provocaram a Aids e a Aids seria um castigo divino contra os homossexuais.


8. OM - Em sua palestra de hoje à noite (a entrevista foi feita terça-feira à tarde, dia em que Luiz Mott esteve em Mossoró) você vai sugerir que seja criado em Mossoró um projeto determinando a inclusão da disciplina Orientação Sexual no currículo das escolas. Essa educação vai garantir que no futuro haja menos preconceito contra os homossexuais?
LM - A discriminação contra homossexuais, que é chamada de homofobia, pode ser erradicada. Existem três soluções para enfrentar isso. Primeiro, que os próprios gays unam-se e discutam, reclamem e denunciem quando forem vítimas de qualquer tipo de preconceito e discriminação. Infelizmente, uma grande parte dos homossexuais vive na gaveta, escondidos, enrustidos, é fundamental que saiam, tenham orgulho como acontece com os negros e as demais minorias sociais. Segunda medida, é que a polícia e a Justiça sejam severas e passem a investigar e punir exemplarmente aqueles que praticam crimes contra os homossexuais. Terceiro, é que em todas as escolas, do ensino fundamental às universidades, haja curso de educação sexual, ensinando que a sexualidade é um direito humano fundamental - e é o tema da conferência de hoje - e ensinando a proteção contra as Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs), contra a Aids, contra também a gravidez indesejada, de tal modo que o sexo seja fonte de amor, de prazer e de gozo e não de causa de morte como acontece ainda.

9. OM - Qual a sua opinião sobre projetos que garantem direitos e benefícios específicos para determinadas classes sociais?
LM - As sociedades que discriminaram, que ofenderam, que excluíram certas categorias sociais, essas mesmas sociedades têm uma dívida de honra histórica contra esses grupos. E particularmente no caso das principais minorias do Brasil, a Igreja Católica tem uma dívida porque foi ela quem justificou a escravidão, foi ela que abençoou a perseguição aos homossexuais e ainda hoje a Igreja Católica e sobretudo as novas igrejas protestantes, a Evangélica, a Pentecostal, a Universal, a Assembléia de Deus, ainda consideram o homossexual como ser diabólico, querem tirar o demônio do corpo dos homossexuais, um desrespeito à própria humanidade dessas pessoas. De modo que eu considero que todos os benefícios que os demais grupos sociais, as minorias sociais, conseguirem, como os negros que vão ter cotas, ou então políticas afirmativas, essas mesmas garantias devem ser estendidas também aos homossexuais porque são grupos frágeis.

10. OM - Que fragilidade é essa?
LM - A grande fragilidade dos homossexuais em relação as demais minorias sociais é que os índios, os negros, aprendem em casa, com os pais, a desenvolver a sua auto-estima, a impor respeito na sociedade, a ter orgulho da sua condição, enquanto que os homossexuais, jovens e adolescentes quando descobrem que são gays, primeiro: há 30% a mais de suicídios homossexuais do que de heterossexuais e eles ainda são humilhados, agredidos, expulsos de casa, às vezes são obrigados a se submeter a tratamentos violentos e psicanálise, psiquiatria.

11. OM - Como você tem acompanhado o crescimento de um mercado de consumo destinado especificamente ao público gay?
LM - Ultimamente tem se falado muito no chamado "mercado cor-de-rosa", o pink marketing. Nos Estados Unidos e na Europa há pesquisas que mostram que os gays, por não terem despesas com filhos, com mulher, geralmente trabalham, então têm um nível de renda maior e um poder aquisitivo mais elevado. No Brasil ainda não há pesquisas sobre isso e a pobreza generalizada não torna os homossexuais um grupo economicamente superior ao resto da população. Eu considero que enquanto houver discriminação forte, como eu disse dentro de casa, na escola, no exército, na rua, na polícia, é importante que os gays passem a pressionar também pelo lado de consumidores. Na medida em que alguma firma, algum produto, alguma indústria divulga campanhas, publicidade que discrimine os homossexuais, como recentemente a Kodak fez uma campanha em que havia um gay que era um tipo desprezível, então que os homossexuais se organizem e que façam uma certa pressão para que não se cometa mais esses equívocos.

12. OM - Você está sofrendo um verdadeiro assédio da imprensa local para expor as suas idéias, um claro sinal de mudança de postura da sociedade quanto à homossexualidade. Qual foi o período mais difícil que os gays enfrentaram nesse sentido?
LM - Fico satisfeito que Mossoró, que tem uma tradição libertadora e de resistência na história do Brasil, tenha primeiro uma prefeitura que, mesmo sendo de um partido considerado conservador - o PFL - tenha aberto espaço para discutir liberdades e incluir nessas liberdades a questão da sexualidade. Se um indivíduo é reprimido, é mal resolvido sexualmente, ele vai descarregar essa sua insatisfação ou nos outros indivíduos ou no seu próprio físico na medida em que muitas doenças são causadas por repressão, por neuroses sexuais como o próprio Freud tão bem descobriu e divulgou. Considero portanto que a minha presença aqui em Mossoró nas rádios e nos jornais vai ajudar a levantar essa discussão. Estou propondo a criação de uma lei municipal que proíba qualquer tipo de discriminação baseado na orientação sexual, ou seja, ninguém pode ser proibido de entrar num local ou ser discriminado pelo fato de ser homossexual, bissexual ou heterossexual.

13. OM - Percebeu alguma discriminação enquanto esteve por aqui?
LM - Espero que a minha presença ajude o movimento pela libertação sexual e que ao ser entrevistado nas rádios, como fui hoje, os locutores não mais recebam telefonemas de pessoas dizendo que essa rádio não deveria ter aberto espaço para esses assuntos ou então crentes dizendo que os homossexuais não entrarão no reino dos céus porque isso reflete o preconceito, e é contra isso exatamente que nós lutamos, para uma sociedade igual. O poeta Fernando Pessoa dizia que o amor é essencial, o sexo é um acidente. Pode ser igual, pode ser diferente.

14. OM - Você já foi casado e tem duas filhas. Como elas reagem a essa sua opção?
LM - O relatório Kinsei, que foi a maior pesquisa sociológica realizada no mundo, diz que é muito difícil um homossexual 100% e um heterossexual 100%. Todas as pessoas tiveram ao menos uma fantasia ou atos com si mesmo ou sexo oposto embora se definam primordialmente ou como homossexuais ou como heterossexuais. Eu não sou 100% homossexual, porque durante ao menos 5 anos de minha vida eu casei com uma mulher, ex-colega da universidade, japonesa, isso foi em 1972. Nós ficamos casados 5 anos, duas filhas, e depois desses anos de casamento numa relação sem maiores conflitos eu me dei conta que estava vivendo um teatro para a sociedade ver porque eu não estava feliz como gostaria. E foi em 1978 que eu tive coragem, enfrentei a barra de dar uma nova direção à minha vida e me assumi publicamente como homossexual. Costumo dizer - repetindo uma frase do grande romancista fracês Jean Gennet - para mim a homossexualidade foi uma bênção, porque eu não me arrependo um só dia de ter me assumido e não só fez bem para mim, ajudei milhares de pessoas que nos escrevem, querendo se suicidar, desesperados porque é extremamente difícil enfrentar a barra de ser homossexual. Mas as minhas filhas não vêem nenhum problema nisso. Costumo dizer que é preciso ser muito macho para ser bicha nesse país porque a dificuldade, a intolerância, a opressão, porque vivemos numa sociedade extremamente heterossexista, dominada pela heterossexualidade.

15.OM - Como assim?
LM - Os únicos modelos oferecidos, divulgados na mídia, são modelos em que se vê um homem beijando um mulher, nunca se oferece a possibilidade como algumas poucas novelas mostraram, aquela a Próxima Vítima que tinha o Sandrinho e o outro rapaz, dois jovens bonitos, normais se amarem e trocarem afeto. A sociedade, a mídia não oferece essa imagem. O que oferece são caricaturas, visões preconceituosas, que humilham os homossexuais que se mostrassem essas imagens tão negativas dos negros com certeza seriam processadas porque o movimento negro e a sensibilidade racial brasileira, inclusive do governo, é muito mais desenvolvida e praticamente nenhuma dos homossexuais. Na última conferência de Durbin, na África do Sul, apesar dos homossexuais estarem presentes e de terem levado alguma proposta, o preconceito dos países árabes e do Vaticano impediu que se tocasse no assunto da homossexualidade.

16. OM - Na novela Torre de Babel duas lésbicas tiveram que ser "mortas" por causa da repulsa do público às referidas personagens.
LM - O lesbianismo no Brasil e no mundo é menos visível que a homossexualidade masculina. A Inquisição não queimou nenhuma lésbica, mas sacrificou centenas de homossexuais. As lésbicas provocam menos polêmica e menos repulsa social porque a sociedade considera que elas ameaçam menos a masculinidade do que um homem que se torna gay, porque ele põe em xeque a hegemonia do macho, se torna solidário com as mulheres, assume certos trejeitos muitas vezes, então o lesbianismo sempre foi mais aceito. Então, uma das primeiras vezes em que a televisão mostrou duas lésbicas bonitas, ricas, socialmente da classe superior, que mostrou dessa forma positiva, elas foram explodidas no shopping, segundo a Globo, por pressão de famílias católicas, da Tradição, Família e Propriedade (TFP), o que foi deplorável porque elas não chegaram sequer a se tocar, foram apenas olhares e palavras de ternura entre duas mulheres, o que mostra realmente que ainda estamos na pré-história no que se refere aos direitos humanos dos gays, lésbicas e travestis.

17. OM - Que história é essa de que São Sebastião e até Lampião seriam gays?
LM - Na verdade, nem São Sebastião nem Lampião fui o autor que primeiro levantou a suspeita ou a polêmica a respeito da possível homossexualidade desses personagens. Durante toda a Idade Média, os sodomitas, como chamavam os gays, cultuavam São Sebastião como sendo um santo gay. Ele teria vivido no século IV depois de Cristo e teria sido amante do imperador Diocleciano e quando se converteu ao Crstianismo, ele foi martirizado, de modo que muitos autores antigos, inclusive Oscar Wilde e o Garcia Lorca, falam que São Sebastião teria sido homossexual também. Tem até um filme que mostra São Sebastião como homossexual, de modo que existe uma tradição na história dos homossexuais que mostra São Sebastião como seu patrono.

18. OM - E quanto a Lampião?
LM - Quanto a Lampião não fui eu. Foi um autor lá de Pernambuco que descobriu vários aspectos da vida do Lampião que são suspeitos. Por exemplo, ele sabia bordar, costurar, adorava perfume, dizem que até as volantes (polícia) no mato de longe já sentia o cheiro de Lampião, ele usava lenços de seda francês, não sei quantos anéis nos dedos. Isso não é coisa típica do macho. Agora também uma coisa: nem sempre o fato de ser delicado ou de se ser um homem feminino implica que a pessoa goste sexualmente do mesmo sexo. Há muito machão que é gay, na cama vira uma boneca, muito homem delicado que é supermacho. A mesma coisa com relação às mulheres. Nem toda lésbica é masculinizada, é um sargento, um trator. Há lésbicas que são sandalinhas e são delicadas.

19. OM - A aparência não tem nada a ver?
LM - A aparência externa não revela preferência erótica individual. Agora mais do que folclore, falar desses personagens homossexuais ilustres ajuda a desmascarar, a quebrar um tabu com relação à homossexualidade. Muita gente dizia: mas o Lampião, o Zumbi eram militares, grandes lutadores. Basta lembrar que Alexandre Magno, o maior general da Antigüidade era homossexual, de modo que isso mostra que não é incompatível ser gay e ser uma pessoa vigorosa, valente e até um militar.

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