Entrevista n. 5
Sobre literatura e arte homossexual
1 - Obras literárias como O Retrato
de Dorian Gray, de Oscar Wilde, Giovanni, de James Baldwin, Orlando,
de Virginia Woof e Querelle, de Jean Genet, são alguns dos
clássicos, cuja temática contribuiu para a caracterização
de uma identidade que reivindica o lugar da diferença e, por
isto mesmo, não abre mão do desejo e da linguagem. Lendo
estas obras, conforme este recorte, elas assumiriam uma importância
política, para além da estética. Como o senhor
avalia o estatuto destas obras literárias?
Mott: O termo homossexualidade só foi cunhado pela primeira
vez em 1869, na Prússia, mas desde o começo da civilização
- no Antigo Egito, há 5 mil anos, o amor entre pessoas do mesmo
sexo vem sendo tema de incontáveis obras literárias
- a despeito de ser tratado como crime e punido com a pena de morte.
Apesar do "complô do silêncio" contra o "amor
que não ousava dizer o nome" - expressão atribuída
a Lord Douglas, o guapo amante de Oscar Wilde - sobretudo a partir
do Século das Luzes, autores gays, lésbicas ou simpatizantes
ousaram relatar em seus romances, as diversas facetas do homoerotismo,
quebrando tabus e abrindo espaço para o surgimento, nos finais
do Século XIX, do movimento de defesa dos direitos dos homossexuais.
Oscar Wilde, Proust, Gide, Abel Botelho, Adolfo Caminha sao alguns
destes precursores que abriram caminho para uma geração
mais engajada na defesa de temas e personagens homossexuais: Baldwin,
Genet , Loti, Wolf, entre outros.
2 - Em sua experiência de leitura de
obras do gênero, a fruição estética (eminentemente
no âmbito do indivíduo) não foi sacrificada em
função da luta pela emancipação e defesa
dos direitos dos homossexuais?
Mott: Vítima da homofobia dominante em nossa sociedade, embora
desde a adolescência me percebesse homossexual, lastimavelmente
só tardiamente tive acesso à literatura homossexual.
Filho de mãe escritora, autora de mais de 70 livros de literatura
infanto-juvenil (Odette de Barros Mott, 1913-1998), li sobretudo Dostoiewski,
Tolstoi, Machado de Assis, Jorge de Lima, Jorge Amado. Só adulto,
a partir da militância pelos direitos humanos dos gays e lésbicas,
que aproximei-me da literatura homossexual. Tive a felicidade de comprar
a biblioteca de um velho gay, com 2 mil volumes, toda ela voltada
para o homoerotismo - o que me permitiu ter acesso a literatura gay
nacional e internacional. Confesso, contudo, que a militância
continua sendo minha primeira opção, restando-me pouco
tempo para a fruição literária - procurando-a
sobretudo quando me auxilia a melhor entender e interpretar a realidade
homossexual do passado ou contemporânea.
3 - No limiar do século XXI, ao senhor
já seria possível fazer um balanço da produção
literária e artística contemporânea que, para
além do bem e do mal, possa estar contribuindo para que o indivíduo
se liberte das amarras sociais e morais?
Mott: Sinto-me mais apto e aparelhado a avaliar a produção
contemporânea historiográfica ou antropológica
sobre a questão homossexual - posto serem tais áreas
investigativas minha "praia" acadêmica. Considero
que apesar de ainda ser bastante diminuta a produção
acadêmica tupiniquim sobre o amor unissexual, já faz
um século que teses acadêmicas, de Direito e Medicina,
foram defendidas na Bahia e no Riode Janeiro, tendo a "pederastia"
como tema. Autores como Pires de Almeida, Firmino Pinheiro, Leonídio
Ribeiro, Ernani de Irajá, Estácio de Lima, Jaime Jorge,
entre outros, malgrado o preconceito anti-homossexual dominante na
primeira metade do século XX, têm o mérito de
registrar e descrever, às vezes com riqueza de detalhes etnográficos,
diferentes matizes da sub-cultura gay e lésbica nacional, permitindo-nos
reconstruir aspectos da vida quotidiana, do imaginário e sobretudo,
dos medos e repressões que estigmatizavam tal população.
Será preciso esperar a fundação do movimento
homossexual brasileiro, nos finais dos anos 70, para que a Academia
aprove moções acatando com a mesma objetividade pesquisas
voltadas para temas homossexuais, redundando numa crescente produção
etnográfica e teórica sobre diferentes aspectos da homossexualidade.
4 - Na arte do século XX, o corpo
libertou-se da opressiva sombra vitoriana e exibiu-se sem pudor. Do
ponto de vista da produção intelectual, pensadores como
Georges Bataille, Pier Paolo Pasolini, Roland Barthes e Michel Foucault,
guardadas as peculiaridades de cada expressão, foram importantes
ao focalizarem objetos que, até então, tinham sido relegados
a segundo plano na tradição da produção
acadêmica, científica e cultural. O senhor poderia fazer
uma breve avaliação da contribuição destes
pensadores?
Mott: Tenho mais familiaridade com o cineasta Pasolini e o filósofo
Foucault. Os filmes do cineasta italiano marcaram profundamente minha
juventude, pela linguagem barroca e surrealista como reconstruía
as fantasias sexuais de seus personagens (o filme Teorema, sobretudo)
- e cuja morte trágica, assassinado por um michê, reforçaram
minha convicção da importância de lutar contra
a homofobia e a relação neurótica que domina
as interações entre os gays e os "rapazes de programa"(homossexuais
egodistônicos). Há quem defenda a hipótese de
um assassinato político, pois a heterodoxia de Pasolini, comunista
e gay, ameaçava gravemente os alicerces do mundo heterossexual-burguês.
Quanto a Foucault, lastimo que tenha usado tão parcametne sua
brilhante inteligência e enciclopédica cultura na discussão
da questão homossexual. Só no final da vida, quando
já debilitado pela Aids, é que ousou assumir-se gay.
Sua interpretação da história da identidade homossexual,
além de politicamente questionável, é completamente
equivocada, pois inúmeras pesquisas comprovam que muitos séculos
antes do que ele chama de "medicalização da homossexualidade"(finais
do Século XIX), já existia uma "sub-cultura gay"
nas principais capitais européias, inclusive em Lisboa, conforme
mostramos em nossas publicações. Lastimo que tantos
autores gays, também no Brasil, repitam tão acriticamente
esta hipótese errada do mestre Foucault - reduzindo os homossexuais
da antigüidade, a meros autômatos de práticas sodomíticas.
5 -O senhor poderia eleger dez obras literárias
(e/ou outras) importantes em sua formação política
e intelectual?
Mott:
A Bíblia
A Ideologia Alemã, K.Marx
As regras do método sociológico, E.Durkheim
Os parceiros do Rio Bonito, Antonio Candido
Obras Completas de Gregório de Matos
Crime e Castigo, Dostoiewski
Sexo e repressão na sociedade selvagem, B.Malinowski
Corydon, A.Gide
O Cristo nunca existiu, Emílio Bossi
A Ética protestante e o espírito do capitalismo, M.Weber
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