Entrevista n. 13
Sobre assumir, biografia, personagens gays, homofobia

1. Você foi um enrustido clássico antes de assumir sua sexualidade. Chegou a casar e teve duas filhas com a união. Por que assumir a condição de homossexual é tão complicada e repleta de fugas? Quantos anos suas filhas têm hoje, e como é sua relação com elas e com sua ex-mulher?
Mott - Eu nunca tive um modelo positivo de homossexual durante minha infância e adolescência. Católico praticante, considerava a homossexualidade um pecado mortal e lutei muito para sufocar esta tendência. A imagem que as pessoas me deram da homossexualidade não podia ser mais negativa: uma velhice abandonada num quartinho de pensão de quinta categoria. Casei-me por medo da homossexualidade, porque sofria de "homofobia internalizada" eu era um homossexual egodistônico, meu ego estava fora de sintonia com minha essência existencial. Após 5 anos de casamento, lutando contra este desejo incontrolável, tive a felicidade de finalmente perceber que continuando casado, iria estragar minha vida, de minha mulher e infernizar a vida de minhas duas filhas. Éramos suficientemente jovens para dar novo rumo as nossas vidas. Foi doloroso, pois gostava da vida familiar, gostava de minha companheira, adorava minhas filhas e exercer a paternidade (era também mãe, pois ficava tomando conta delas dois dias por semana): mas hoje, após 30 anos de separação, não arrependo um só minuto desta decisão. Para mim, a homossexualidade foi uma graça!
Nos primeiros anos, sobretudo durante a adolescencia de minhas filhas (elas são nissei), foi difícil, houve incompreensão e hostilidade, mas desde que entraram na universidade e ficaram adultas, compreenderam a situação e hoje me amam, gostam muito de mim, me admiram enquanto pai e militante gay, mantendo bom relacionamento também com meu companheiro Marcelo.

2.O que define a sexualidade de uma pessoa: opção, genética, influência do meio em que convive ou o mistério? Com que idade uma pessoa tem consciência de sua condição sexual?
Mott - Costumo repetir que "a causa da homossexualidade é um mistério!" e vai continuar sendo, do mesmo modo como é uma incógnita porque alguns gostam do azul e outros do cor de rosa. Li recentemente que foi documentada a presença de condutas "homoeróticas" em 450 espécies diferentes de animais - o que reforça a idéia que a homossexualidade é natural, apesar de culturalmente domesticada na espécie humana. Gostaria muito que se comprovasse cientificamente que a atração homoerótica humana tem um componente genético pois obrigaria os religiosos a aceitarem-na como uma invenção do Criador. Sou a favor de todas pesquisas que tragam luz sobre esta polêmica e que descartem as setenta e tantas teorias malucas que até hoje foram propostas para explicar "o amor que não ousava dizer o nome".

3.Fala-se que os homossexuais representam 10% da população mundial. Esse percentual é super ou subestimado? Desses, quantos se assumem?
Mott - Esta cifra, 10% se baseia na principal pesquisa sexológica até hoje realizada no Ocidente, o famoso Relatório Kinsey. Quem duvidar destes números, que comprove o contrário! Se perguntar aos gays brasileiros, qual a porcentagem dos homens que "topam uma transa", muitos dizem que representam mais de 30%. Pesquisas científicas sérias comprovam que varia de fato entre 6% a 10%, independentemente de maior ou menor repressão. Os heterossexuais não têm porque temer, pois são e serão sempre maioria: uns 60% e os bissexuais, 30%.

4. O que te levou a fundar o Grupo Gay da Bahia em 1980? O que vocês conseguiram de prático para a causa homossexual até agora?
Mott - O GGB, Grupo Gay da Bahia, é fruto de um tapa na cara! Estava em 1980 sentado na praia com meu companheiro e um machista não agüentando nos ver juntos, me lascou um bofetão no rosto, fiquei tão revoltado com esta violência que resolvi organizar um grupo de gays para lutarmos pelos nossos direitos. Nestes 20 anos de luta, tivemos importantes vitórias: conseguimos que o Conselho Federal de Medicina
retirasse o homossexualismo da lista de doenças em l985; aprovação em 74 municípios de leis que proíbem a discriminação por orientação sexual; financiamento por parte do Ministério da Saúde de dezenas de projetos dos
grupos gays, lésbicos e de travestis para prevenção de aids junto a estas populações; apresentação do projeto de parceria civil registrada no Congresso Nacional.

5.Por que a homossexualidade é tão discriminada? Quem mais discrimina? O preconceito tem diminuído no Brasil? O que pode ser feito em termos de educação para isso melhorar?
Mott - Os homossexuais são as principais vítimas da discriminação no Brasil, pois enquanto um negrinho, um judeuzinho, um deficiente físico, recebem apoio e auto-estima em casa, são ensinados por seus pais a enfrentar a discriminação da sociedade global, os gays, lésbicas e travestis o que recebem da família: humilhação, violência física, expulsão de casa. Para mudar esta situação de homofobia extrema, considero fundamental que sejam implementados
cursos regulares de educação sexual, cientificamente planejados, ministrados desde a pré-escola, pois terão um impacto crucial na transformação moral de nossa população. Cursos que ensinem, sem hipocrisia e falso moralismo, tudo o que um jovem adulto precisam saber sobre sexo: sua anatomia, sua higiene, a prevenção das DST, como evitar abuso e assédio sexual, como impedir a gravidez indesejada, o respeito que todos devemos ter em relação à livre orientação sexual dos outros, como um direito humano fundamental. Além da educação sexual científica, urge que o poder público puna exemplarmente os que violam dos direitos sexuais alheios: o assédio e abuso sexual, a discriminação baseada no sexo e na orientação sexual.

6.Que meios legais uma pessoa tem para se defender contra a discriminação no Brasil? Que leis amparam os homossexuais? A polícia não é mais uma a discriminar no momento de ser feito um Boletim de Ocorrência?
Mott - Já há quase 80 municípios que proíbem a discriminação contra os homossexuais. Em São Paulo, além a capital, Cabreúva e São Bernardo do Campo. Lutamos para que seja incluída na Constituição Federal a proibição de discriminar por "orientação sexual", como acontece na Constituição da África do Sul. Infelizmente, a polícia civil e militar causa muito sofrimento aos homossexuais, sobretudo às travestis, pois o machismo e a homofobia faz parte dos ensinamentos transmitidos aos policiais, que vêem os homossexuais como marginais e delinqüentes.

7.O Brasil continua encabeçando a lista dos países mais violentos contra homossexuais?
Mott - Infelizmente, o Brasil é o campeão mundial de assassinato de homossexuais: a cada dois dias, um gay, lésbica ou travesti é barbaramente assassinado, vítima da homofobia, este ódio doentio contra os homossexuais. Nosso país é contraditório, pois no carnaval e na tv aplaude as travestis, em S.Paulo 200 mil homossexuais e simpatizantes proclamam na avenida o orgulho de ser gay e o respeito à diversidade sexual, mas no dia a dia, 95% dos homossexuais vivem escondidos dentro da gaveta e a população, nos agride e apedreja. Veja o caso do Edson Néris, trucidado por 18 skin-heads na Praça da República, simplesmente porque estava de mãos dadas com seu companheiro.

8.Quando se fala em homossexualismo, os ativistas pedem a tolerância da sociedade. Isso não seria um erro, já que tolerância também remete a uma condição passageira, e o que se deve ter é respeito pelo que se é?
Mott - Não vejo diferença entre tolerância e respeito. Quero ser tolerado, respeitado, se possível amado e aplaudido como qualquer outro ser humano, independentemente de quem amo e com quem faço amor.

9. Geralmente as pessoas torcem o nariz para militantes, sejam de qual causa for, pois os encaram como chatos. Você, como militante, sabe dizer o motivo dessa visão? Militar é preciso?
Mott - Navegar é preciso. Viver é preciso. Lutar pelos nossos direitos, é preciso. Adoro aquele poeminha de Maikovsky:

"Há homens que lutam um dia, estes são bons
Há outros que lutam um ano, estes são melhores,
Há os que lutam muitos anos, estes são muito bons,
Mas há os que lutam a vida toda, e estes são imprescindíveis!

Eu me sinto um imprescindível, pois não fui o primeiro gay a levantar a bandeira de luta, mas sou o que por mais tempo, ininterruptamente, está na frente de batalha. E graças a Ganimedes, um dos deuses gays do Olimpo, fiz escola e sucessores, pois além do GGB, fundei e capacitei mais de uma dezena de grupos homossexuais pelo Nordeste, que continuam a luta por nossos direitos de cidadania.

10.Qual sua opinião sobre o personagem Pitbicha de Tom Cavalcante?
Mott - Sou totalmente contra a caricatura e a esculhambação das minorias, seja dos negros, mulheres ou homossexuais. O Capitão Gay, do Jô Soares, era um herói, gozado mas prá frente. Painho, do Xico Anízio, um pouco exagerado e humilhante para os pais de santo que não eram assim tao efeminados. Vera Verão é uma afronta aos gays e às mulheres, se ela tivesse um pouco mais de dignidade, mudava de personagem. Confesso não ter opinião formada sobre o Pitbicha, mas numa lista GLS da internet, vi militantes gays defendendo-o pois as vezes usa termos e expressões positivas sobre o universo gay.

11. A 5ª Parada do Orgulho Gay, que aconteceu domingo passado em São Paulo, reuniu mais de 200 mil pessoas, o que já a coloca entre as cinco maiores passeatas que ocorrem no mundo. O Brasil tem de fato um movimento gay ou o que acontece ali, usando a passeata como referência, é um carnaval fora de época?
Mott - São Paulo, a maior cidade da América do Sul, tem uma rica rede de estabelecimentos GLS, boites, saunas, bares, restaurantes. Os grupos gays paulistanos são poucos, têm poucos anos de vida e com poucos associados. Mas a população homossexual que frequenta a rica cena gay de SP é muito numerosa. São Paulo tem 37 milhões de habitantes. Deve possuir, portanto, mais de 3 milhões de homossexuais. Os 200 mil na parada, representam, não resta dúvida, um número fantástico, vitória aplaudidíssima da Associação da Parada e de seu animador, Beto de Jesus, mas 200 mil não chegam nem a 10% dos homossexuais do Estado. O dia que todos os homossexuais saírem do armário, a passeata vai começar na Paulista e terminar em São José do Rio Preto...

12.No meio artístico brasileiro, englobando aí escritores, cineastas, atores etc. , quem mais contribuiu para a questão homossexual e quem mais atrapalhou?
Mott - Querendo ou não, Caetano e Gil foram fundamentais, não só por se beijarem na boca em público, por divulgarem moda unissex, por algumas vezes falarem abertamente de suas experiências bissexuais, mas sobretudo por suas músicas maravilhosas, que enaltecem o amor, a liberdade sexual, a androginia. "Menino do Rio", "Leaozinho", "O Super Homem", "Meus Retiros Espirituais" são apenas algumas das músicas destes dois baianos que considero fundamentais na nossa cultura. Caetano escreveu num jornal uma frase que adoro: "O GGB é o orgulho da Bahia", enfrentando um jornalista homofóbico que havia declarado: "Mantenha Salvador limpa, mate uma bicha todo dia!"

13.Foi divulgado recentemente que a religião pode reverter a situação de um gay, tornando-o hetero novamente. O que você acha disso?
Mott - Segundo Freud e o Relatório Kinsey, a maior pesquisa sexológica do mundo, todos nascemos bissexuais, e temos um forte componente perverso polimorfo em nossa libido. Ninguém é 100% gay ou hétero, e podemos mudar ao longo da vida. Sexualidade é dialética, dinâmica. Claro que alguém que é só 10% gay, será mais feliz concentrando-se apenas na heterossexualidade, e se procurar uma igreja ou um psicólogo, poderá facilmente sublimar aqueles 10% que lhe causam desconforto. Ou o inverso: eu era mais ou menos 30% heterossexual, mas meu lado gay pesava mais forte, e desde que me separei de minha ex-mulher, nunca mais tive sexo com mulher. O errado é querer "curar" alguém que é predominantemente homossexual, pois os psicólogos, inclusive o Conselho Federal de Psicologia, garantem, que tal reversão é anti-ética e fadada ao fracasso.

14.Ano passado, a imprensa do país divulgou relação de gays "notáveis" na história do Brasil. A fonte foi o Grupo Gay da Bahia. Divulgar nomes contribui para o movimento? Quais eram os principais nomes divulgados?
Mott - Após criteriosa pesquisa histórica, temos uma lista de mais de 100 "desviantes sexuais" célebres de nossa história. Alguns eram apenas efeminados, como o escritor Alvares de Azevedo e Santos Dumont, sem termos evidência que praticaram efetivamente "o amor que não ousava dizer o nome". Outras, como a Imperatriz Leopoldina, era masculinizada e deixou diversas cartas extremamente apaixonadas para sua dama de companhia, a inglesa Maria Graham. Zumbi é um caso curioso, pois era apelidado de "sueca", nunca foi casado nem teve filhos (raridade para um chefe militar de sua importância), era amigo íntimo de um padre nas Alagoas (e a homossexualidade nesta época era chamada de "vício dos clérigos"), Zumbi veio de uma tribo de Angola onde havia muita tolerância e prática da homossexualidade, e quando o mataram, foi castrado e colocaram seu penis dentro da própria boca, exatamente como ainda hoje fazem com os gays. Cito mais alguns nomes de "desviantes sexuais vips": Darcy Penteado, pintor paulista, um dos fundadores do jornal Gay Lampião, SP, 1926-1987
· Jorge Guinle Filho, artista plástico, NY- RJ, 1947-1987
· Hélio Oiticica, amante dos negros e partidário da "arte para vestir"
· Amacio Mazzaropi, ator e diretor de cinema, SP, 1912-1981
· Luiz Antônio Martinez Corrêa, Diretor Teatral, barbaramente assassinado por garoto de programa, RJ, l987
· Carlos Augusto Strazzer, ator, 1993
· Moacir Moreno, ator do grupo Patifaria Baiana, A Bofetada, Salvador, 1994
· Alberto Cavalcanti, cineasta, diretor artístico da Vera Cruz, S. Paulo
· Mário Gusmão, dançarino ator de teatro e cinema, Bahia, 1928-1996
· Francisco (Chico) Alves, cantor, 1898-1952
· Assis Valente, compositor, autor da canção Cidade Maravilhosa, 1911-1958
· Orlando Dias, cantor popular, BA/ RJ
· Cazuza, (Agenor de Miranda Araújo Neto) compositor e cantor de rock,RJ, 1958-1990
· Oswaldo Nunes, sambista carioca, 1991
· Ismael Silva, cantor popular, RJ,
· Renato Russo, cantor e compositor,1960-1996
· Álvares de Azevedo, (Aluízio Manuel Antônio) escritor, SP- RJ, l83l-l852
· Junqueira Freire (Luiz José) , monge beneditino e poeta, Salvador, 1832-1855
· Olavo Bilac, (Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac) escritor e patrono do exército, l865-l9l8
· João do Rio, (João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto), jornalista e escritor carioca, membro da Academia Brasileira de Letras, 1881-1921
· Mário de Andrade, (Mário Raul de Morais Andrade), escritor e crítico de arte, apelidado "miss S.Paulo", l893-l945,
· Ernani Rosa, poeta catarinense, Florianópolis , 1886-1955
· Mário Faustino dos Santos e Silva, poeta e crítico literário do Jornal do Brasil, Teresina, 1930-1962
· Lúcio Cardoso, (Joaquim Lúcio Cardoso Filho), escritor, autor de Crônica de uma casa assassinada, MG-RJ, 1913-1968
· Pascoal Carlos Magno, teatrólogo e embaixador, fundou o Teatro do Estudante do Brasil, RJ, 1906-1980
(cf. lista complea no site www.ggb.org.br )

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