Geografia & Poesia

Voltar à página principal

 

Índice


CÂMARA NOS 500 ANOS
Parlamento Brasileiro
História e Perspectivas
Que Parlamento para o Século XXI? Desafios e Perspectivas frente à Mundialização

 
Fonte: http://www.camara.gov.br/intranet/camara500/Seminarios/PB_MiltonSantos.htm
Endereço da Câmara dos Deputados: http://www.camara.gov.br

Milton Santos - Quero agradecer a todos a oportunidade de estar presente para, em companhia de pessoas tão ilustres, participar desta mesa, que entendo como ocasião de trabalho. Nas ocasiões de trabalho, cada qual funciona em função de suas competências. Nesse caso, cabe-me falar como aquele que aparentemente sou, isto é, um geógrafo. É evidente que me sentiria mais à vontade no tema exatamente anterior ao de hoje, mas já que me puseram neste tema, vou fazer um esforço, como se dizia antigamente, transido de medo. Medo que me acompanhou na preparação dessa viagem e que foi agravado ontem quando, recebendo este caderno, soube que quem organizou esta audiência está pedindo aos assistentes que avaliem o desempenho dos palestrantes. Não sabia disso e me sinto como há 56 anos, quando fui fazer vestibular. Somente para mostrar que não gostei dessa forma de convidar as pessoas, por isso, vou fazer o pior que me for possível.

O assunto que nos trouxe aqui é a discussão do Parlamento brasileiro, sua representatividade; isto é, a maneira como um conjunto escolhido de cidadãos representa a totalidade de uma nação. Aqui, o assunto foi tratado segundo a ótica do Direito internacional público, segundo a ótica do povo e seu dinamismo e do divórcio existente entre o povo e seus representantes, e também entre os representantes e aqueles que são pagos para pensar o país, que são os intelectuais. Algo grave do Brasil é essa incapacidade de a área política prestar atenção ao que propõem os estudiosos.

Mesmo assim, confio nos que organizaram esta reunião, sei que vão fazer uma súmula para entregar ao presidente da Casa. Peço que a façam com cuidado, que façam um resumo, porque presidentes de Casas não têm tempo para ler muito. O presidente desta Casa tem de tomar conhecimento do que foi dito pelo Emir Sader, pelo Cícero Sandroni, meu velho amigo e companheiro de Brasília há quarenta anos, quando servi ao governo da República, aqui mesmo. O que tenho de dizer, o geógrafo pode dizer em época de globalização a respeito da representatividade dos que são eleitos.

As Constituições brasileiras, copiando ou não outras, pretenderam incluir território no pensamento da nação. E pretendendo fazê-lo inclusive pela forma de como o Poder Legislativo se organiza, referiram-se ao Senado Federal como símbolo da Federação. Por isso, há uma representatividade homogênea. Não importa o tamanho, a população, a riqueza, o Senado Federal é formado por igual número de senadores de cada estado; a Câmara dos Deputados, que aparentemente representa a nação — aí entra a discussão do geógrafo —, é formada por representantes do povo. Mas o que é o povo? O que é a nação? Quem jamais deu bom-dia à nação? Quem jamais se encontrou com a nação? A nação é uma intellectia vista por intermédio do território. Isto é, se a vida local não tem como se mostrar, a Federação, como tal, pode automaticamente se opor à globalização.

E a discussão que se põe; por conseguinte, a discussão proposta que nos trouxe aqui — aliás, minha vinda aqui foi só por isso, além de atender ao convite tão amável, insistente, delicado e sensível dos que organizaram esta reunião, e que parece que não foram os deputados, mas um grupo que decidiu exercer sua vontade de civismo independentemente de seus chefes — é o Parlamento. Neste lugar, não há chefe nem patrão. Estamos aqui por espontânea vontade. Não vou mais adiante porque não quero criar problemas para ninguém, muito menos para os funcionários que organizaram esta reunião.

A República brasileira, de alguma forma ou de outra, era de lugares. Gente como Celso Furtado chegou a dizer, em relação ao Nordeste, que o poder não se centrava nas cidades, mas nas fazendas. É evidente que não havia representatividade do povo, mas alguém representando a economia e a política dominantes e não a cultura dominante. Nessa República da enxada alguns vinham para o Congresso legislar em nome próprio, ainda que dizendo legislar em nome do povo brasileiro.

O conjunto de conteúdos dos lugares tem de levar em conta as pessoas, tem de considerar como elas se organizam, produzem e trabalham. Enfim, os ocupantes desses lugares devem rever definições externas do que é o país e do que é o mundo.

Queria fazer uma ou duas observações de ordem conceitual. Peço desculpas por aborrecê-los com esse tipo de preocupação, mas sem isso não saberia o que desejam. A idéia de território — que é aliás a idéia com a qual trabalha o Direito público, os chamados cientistas políticos — não leva a lugar algum no território em si, razão pela qual nem o Direito público nem a Ciência Política incorporam território na sua formulação. A meu modo de ver, o que deve ser levado em conta não é o território em si, mas a maneira como ele é cheio de ações, que redefinem o território, que lhe dão seu verdadeiro conteúdo. A legislação para ser eficaz, se não incluir conteúdo, será algo apenas formal, como os conselhos dos cientistas políticos, que não incluem o conteúdo de território, serão igualmente formais. O conteúdo da nação, o conjunto de conteúdos dos lugares não se envolve realmente com algo que tem dinamismo, vida, se não se levar em consideração as pessoas que estão no lugar. Conhecemos esse lugar pela maneira como ele se organiza e produz a possibilidade de trabalho, da circulação e certamente produz também em cada pessoa, além da visão própria desse lugar, uma possibilidade de rever as definições externas do que é o país e o mundo.

Digo isso porque o território acaba por ser o dado essencial da condição da vida cotidiana. Essa vida cotidiana é contraditória por definição, porque une o passado e o futuro na figura do presente fugaz, obriga às obediências, estimula a revolta, mas conduz ao entendimento do papel das coisas que nos cercam e limitam nossa ação. Obriga-nos a pensar. E não há outra maneira de viver, isto é, outra vez nos conduzindo a revalorizar as possibilidades de produção de outro futuro. Ora, a política não é outra coisa senão isso mesmo. Dir-se-ia que o cotidiano é conjuntural. Não o é na medida em que cada um de nós vive fazendo coisas que dependem da maneira como nos inferimos em dada estrutura. Cada um de nós faz coisas que nos são permitidas ou não em cada lugar. Daí essa relação inseparável entre cotidianidade e lugar, relação pouco explorada pelos geógrafos, o que desculpa os cientistas políticos de modo geral e, mais do que os cientistas políticos, os juristas, que são os homens da forma, às vezes, fria e tornada autônoma em relação a um movimento. Se os próprios geógrafos não tratam as coisas da maneira que deveriam ser tratadas, por que os outros poderiam fazê-lo?

Minha sugestão é exatamente que comecemos daí. A partir daí, entenda-se ou busque-se entender como a globalização tem um novo papel na renovação do pensamento do Direito público constitucional, como a globalização obriga a uma nova forma de pensar a organização dos países.

No caso brasileiro, estamos assistindo a quê? Estamos assistindo a uma reforma da Constituição. O professor Emir Sader mostrou como essa reforma vem sendo feita por intermédio do trabalho das assembléias representativas da sociedade brasileira, desta Câmara por exemplo. Só que cada uma das reformas é apresentada como algo autônomo. E, se o território tivesse sido levado em conta, isso seria impossível, pois este, incluindo os homens, com o seu dinamismo, obrigaria a que essas reformas — sejam quais forem —, a fiscal, por exemplo, levassem em conta a "empiricização" dessa coisa metafísica que é a nação, através do enraizamento nos lugares ou, pelo menos, do uso diferenciado feito dos lugares, por frações da sociedade que se definem cada qual de modo específico em função disso.

A globalização permite reviver um antigo sonho de alguns constitucionalistas brasileiros que nunca foi muito adiante quando se tratou de traduzir ideais em direito positivo. Na Constituição que sucede o regime autoritário do anteguerra e durante a guerra, foi possível incluir um terceiro nível na Federação, dando ao município um papel importante. A globalização vai obrigar à criação de um quarto nível. Vou tentar explicar por quê.

Peço que me perdoem a aridez do que vou trazer agora, mas estamos aqui para trabalhar juntos. A tarefa de professor é trazer o seu trabalho, ainda que possa parecer aborrecido aos ouvintes, para que possamos trabalhar juntos agora ou depois. O que acontece com a globalização? Ela acaba privilegiando certas áreas dentro do território como um todo, áreas que acabam sendo utilizadas por atores hegemônicos de natureza global, que se apossam. E a legislação não cuida deles, porque o fenômeno não é bastante analisado até agora.

Faço uma pequena observação: esse fenômeno foi analisado no livro que, juntamente com a professora Maria Laura Silveira, estamos publicando na editora Record. Cheguei a essa conclusão devido a uma apresentação generosa do professor Emir Sader.

O que a globalização faz é como que entregar certas áreas, na sua função e na sua dinâmica própria, a um motor externo ao país, que regula a vida de cada região em função de interesses "privatísticos". As empresas muito grandes mandam em pedaços do Brasil cada vez mais numerosos, aqueles pedaços que necessitam de infra-estruturas modernizadas. Empresas, quando se instalam, pedem aos governos federal, estadual e municipal que lhes ofereçam infra-estrutura. Essas empresas, de produção seja de porcos, seja de frangos, seja de soja, seja lá do que for, estabelecem uma disciplina extremamente rígida, como se fosse recriada a figura do servo e da gleba outra vez. Os agricultores guardam a propriedade da terra. O uso da terra é regulado pelos interesses dessas empresas, criando uma fragmentação do território, uma alienação do território, um descontrole do território pelo Estado, o que permite dizer que, com a globalização, não são os políticos que fazem política. A política é feita pelas grandes empresas. Os políticos são, de maneira quase geral, porta-vozes. Eles elaboram os discursos de interesse da grande empresa, sobretudo porque muitos estão convencidos, outros são convencidos, e outros, sem estar convencidos, falam assim mesmo. Só há uma solução na cabeça e no coração dessas pessoas: é essa globalização perversa, que modifica, inclusive, o caráter da nação.

O que se passa é que, além do município, dentro do estado, mas além do estado federado, dentro na nação, mas além da nação, há pedaços do território convocados a comportamentos indispensáveis, se querem continuar trabalhando.

Há regras extremamente rígidas no processo produtivo, o que também me faz perguntar-lhes por que as coisas devem ser assim. É a porta aberta para uma espécie de conscientização, que será tanto mais eficaz quando os partidos se derem conta de que as coisas assim são, e há conseqüências geográficas e políticas que deverão ser consideradas quando a Constituição, que está sendo reformada agora, for reformada novamente, porque a globalização está criando no país uma série de condições que obrigarão a uma reforma da Constituição novamente daqui a alguns anos.

Quando penso no que está sendo feito agora no Congresso, fico estarrecido. Essa é mais uma razão para que nos disponhamos a repensar o país a partir da sua realidade, de modo a oferecer, daqui a pouco, possibilidades para que outras coisas sejam feitas.

Que os deputados não nos ouçam, está bem, mas os intelectuais não são feitos para audiência dos poderosos. Jamais houve conciliação, por mínima que fosse, entre alguém que se imagine um verdadeiro intelectual e o trabalho cotidiano do homem de poder. Há mesmo uma contradição. O trabalho do intelectual é feito para ser entregue à população, se possível, por meio da sociedade civil e organizada, que inclui os partidos, e, se não possível, de forma selvagem como a presença aqui, que, aparentemente, é burocrática. Se fizermos uma análise superficial, é evidente que vamos imaginar que a organização da reunião foi extremamente burocrática. Imagino que boa parte das pessoas presentes é independente ou deseja ser. O fato de essas portas se abrirem para eles e para nós cria um diálogo que, daqui a pouco, será frutuoso.

O município já não dá conta da representatividade do cotidiano, porque o que produz no homem o ente filosófico que o faz saber-se no mundo, entender sua função, seus limites e as esperanças possíveis senão o cotidiano, que é melhor visto por meio do trabalho, as formas de trabalho que acorrentam ou liberam?

Por isso, as classes médias são, ao mesmo tempo, as mais acorrentadas. No país, são as que têm maiores dificuldades para entender o processo do mundo. É função do seu trabalho. Agora que os trabalhos começam a faltar às classes médias e são remunerados de forma incorreta, apenas como miragem para seus filhos, elas estão conhecendo também uma formidável metamorfose política, que terá grande importância no Brasil que se está reconstituindo.

O cotidiano do trabalho. O trabalho é acorrentado ao interesse das grandes empresas. Estas reorganizam o território ao seu talante e fazem-no de forma ainda não regulada, para mostrar à comunidade interesses que, por enquanto, se manifestam por meio não apenas de representantes legislativos, mas também da imprensa local. Há, por isso, má representatividade, na medida em que ela é a caixa de ressonância tanto dos grandes interesses, que pagam a mídia, como também dos interesses dos leitores, que exigem uma forma de reação da mídia local e regional, representativa de uma área que não é o município nem o estado.

A realidade já mostra uma nova divisão territorial do Brasil, que, creio, vai exigir representatividade política, reclamar e participar do jogo das decisões que concernem à construção do futuro.

Tenho outros temas para trazer aqui, mas prefiro ficar neste, isto é, a globalização, que é perversa, mas também traz, a partir da contradição oferecida pela vida, novas formas de realização da convivência social. É necessário que a estudemos mais profundamente e transmitamos os resultados de nossos estudos à população, na medida do possível, com debates como esse que daqui. Não importa que as pessoas não falem. O debate está aí. Às vezes, é no silêncio que acontecem os debates mais frutíferos.

Nesse particular, outra vez, agradeço aos organizadores desta reunião o convite e felicito-os. Muito obrigado.

FIM

Índice
Anterior: O intelectual anônimo
Próximo: A Universidade: da internacionalidade à universalidade