Geografia & Poesia

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Geógrafo ataca o uso político de estatísticas

Fonte: http://www.uol.com.br/fsp

27/03/2001

Autor: ANA GABRIELA ROIFFE
Origem do texto: Da equipe de Trainees
Editoria: CADERNO ESPECIAL Página: Especial-4
Edição: Nacional Mar 27, 2001
Observações: TRAINEE - ANALFABETISMO; SUB-RETRANCA
Assuntos Principais: EDUCAÇÃO; ANALFABETISMO; BRASIL; QUESTÃO RACIAL; ESTATÍSTICA; MILTON SANTOS

Geógrafo ataca o uso político de estatísticas

A educação mínima hoje não é mais a alfabetização: é preciso um npivel mais elevado, diz Milton Santos - DA EQUIPE DE TRAINEES

"O que está havendo no Brasil é uma preocupação estatística de educação." Dessa forma o geógrafo Milton Santos vê as ações do governo para erradicar o analfabetismo. Maioria populacional do país (54%, leia o quadro abaixo), os brancos têm apenas uma pequena quantidade de analfabetos (8,4%). Entre os pardos (39,5% da população brasileira) e pretos (5,7%), o índice de analfabetismo chega a 20,7% e 21,6%, respectivamente. Juntos, eles somam 21.836.051 pessoas, segundo o Pnad (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios) de 1998, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Os quesitos sobre cor e instrução foram introduzidos no censo de 1940. Todas as perguntas são autoclassificatórias. Cabe aos entrevistados determinar se são brancos, pretos, pardos ou amarelos.

Primeiro negro nomeado professor emérito da USP, Santos acredita que as pessoas ficam "felicíssimas" com os índices do IBGE. Para ele, os números forçam um tipo de debate distante daquele que deveria ser o central: a discussão sobre o lugar de cada um na sociedade.

O geógrafo diz ainda que a educação de hoje seria apenas um treinamento para retardar a distribuição de renda da população. "Educação é um instrumento, mas não é algo que, sozinha, seja uma produção."

Para que se altere o quadro brasileiro de exclusão e injustiça, o geógrafo, que lançou no início do ano o livro "O Brasil: Território e Sociedade no Início do Século 21", defende a revolução social. "Como não se quer fazer esse combate, o limite está chegando. Estamos chegando a todos os limites", afirma na entrevista a seguir. (ANA GABRIELA ROIFFE)

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Folha - A diminuição do analfabetismo entre negros, principalmente nos centros urbanos, pode reduzir a diferença de oportunidades entre eles e os brancos?

Milton Santos - Existem duas questões: primeiro é a da estatística. A outra é: o que é que eu faço com a minha alfabetização? Essa questão é que é importante. Hoje, a educação mínima não é apenas a alfabetização, você precisa ter um nível mais elevado de educação para melhorar. Eu posso fazer uma distinção puramente estatística ou fazer uma distinção metodológica. A alfabetização custa barato, custa pouco tempo. Rapidamente, as condições de alfabetização são mais universais. Sobre a pergunta, acho que sim. Mas como o Brasil quer retardar a distribuição de renda, há um esforço para deixar os pobres como pobres. Aí tem esse discurso de glorificação. Não é pela educação sozinha que se vai a algum lugar. Isso é uma grande balela.

Folha - A que outros fatores a educação precisa estar aliada para se tornar eficiente?

Santos - A uma revolução social. Primeiro educar num outro nível. Se você compara o Brasil que eu estudei com o atual, dá para ter mais negros na faculdade. Mas para qual a faculdade eles irão? E, depois que forem, quantos deles ficarão nos empregos? Muito poucos. E, se ele obtém o emprego, qual será o salário? Acho que essas são as questões. Eu não resolvo isso com educação. Educação é um instrumento, mas não é algo que sozinho seja uma produção.

Folha - O sr. acredita que a "cruzada" do governo pela alfabetização seja uma maneira de desviar de questões prioritárias?

Santos - O que está havendo no Brasil é uma preocupação estatística da educação. Nós devíamos ter uma cruzada pela ascensão social, que está em baixa e só seria possível com a mudança de estrutura dentro da sociedade. Teríamos que ter uma preocupação sistêmica com a melhoria das condições de todos os brasileiros.

Folha - Por que o sr. considera a educação de hoje como simples valorização da técnica?

Santos - Você é treinado, mas não é educado. A produção do cidadão não deve ser só do cidadão. Deve resultar de uma dupla formada pela cidadania completa e pela individualidade forte, com a listagem de direitos à igualdade efetiva, e não puramente essencial. Eu creio que é para isso que a gente luta. Como não se quer fazer esse combate, o limite está chegando. Estamos chegando a todos os limites. Nada é feito para que você seja igual, porque a pobreza não é definida só pela renda. É pelo poder, é a posição que você tem na sociedade. Se você só é treinado, você não está apto a discutir o seu lugar na sociedade, e esse é o debate central. A estatística simplifica tudo. As pessoas ficam felicíssimas com os índices.

Folha - De que forma os números simplificam?

Santos - Os números aparentemente são concretos, mas na verdade são abstratos. Você pode ter, inclusive, no uso deles, uma escolha que já é política. Você escolheu os índices que quer. Joga certos índices no mercado, no mercado adverso também. Pré-seleciona e obriga a discutir esses dados, forçando um tipo de debate. O que eu faço com isso? Não vou muito longe. O que eu vou fazer? Eu posso dizer que são 40% de negros. Mas como isso vai melhorar as condições? Esse é um problema fascinante. Por enquanto não tem nenhuma importância, mas daqui a pouco terá. Politicamente não tem, ainda. Os brasileiros consideram que está tudo ótimo, mas em breve eu creio que essas coisas mudarão.

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