Geografia & Poesia

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Um café com Milton Santos
Por Fernando Conceição
Fonte: http://www.uol.com.br/fsp

08/07/2001

Autor: FERNANDO CONCEIÇÃO
Origem do texto: Especial para a Folha de São Paulo
Editoria: MAIS! Página: 10
Edição: Nacional Jul 8, 2001
Seção: + MEMÓRIA
Observações: PÉ BIOGRÁFICO
Assuntos Principais: MILTON SANTOS; HISTÓRIA; BIOGRAFIA; MEMÓRIA
Biógrafo relembra o último encontro que teve com o geógrafo baiano, morto no dia 24 de junho

Um café com Milton Santos

Foi o marxismo como método de análise que possivelmente consagrou e impôs restrições políticas e acadêmicas a Milton Santos - Fernando Conceição - especial para a Folha

Há pouco mais de um mês fui generosamente recebido pelo professor Milton Santos em sua casa, por um par de horas. Talvez tenha sido a última entrevista longa que concedeu a alguém, ali como jornalista e admirador. Para quem o viu forte e com perfil assemelhado a uma esfinge talhada em pedra, agora estava visivelmente em declínio físico. Mas plenamente lúcido e, apesar da dor, em certos momentos bem-humorado.

Esse encontro foi precedido dos cuidados que um paciente consumido pelo câncer, submetido à quimioterapia, requer. Sua querida e dedicada mulher, Marie Helène, fez-me antes recomendações para que não demorasse mais de meia hora, porque invariavelmente ele se cansava e precisava repousar. Qual nada! Milton Santos abriu o verbo naquela tarde por quase duas horas, entre xícaras de café, suco e pamonhas.

Lembrou do tempo das férias de juventude, quando ia para a casa do tio Agenor Santana, na cidade de Barra do Rio Grande. "Tomava um trem em Salvador, tinha de fazer o transbordo. Antes, pernoitava em Bonfim. No dia seguinte, ainda de madrugada, tomava de novo o trem e em Juazeiro ficava esperando o navio. Era um outro mundo. Meu tio era advogado de um grande chefe da região. O sonho dele era ser deputado, morreu em campanha. Tinha um jornal. Possivelmente, o primeiro jornal no qual escrevi regularmente."

A vida política de Milton Santos iniciou-se pelo que, se ainda vivêssemos num mundo ideologicamente bipolar, poderia ser rotulado de "direita" do espectro político. "Eu tinha esquecido disso. Quem me lembrou foi o amigo Methódio Coelho, que telefonou de Salvador um dia desses." Isso mesmo. O sujeito que, no início dos anos 60, como secretário de governo do Estado da Bahia, na presidência da Comissão de Planejamento Econômico, propôs a criação de um imposto sobre a fortuna _o que provocou a ira dos golpistas_ era inicialmente execrado pelas lideranças do Partido Comunista Brasileiro, que combatia.

Na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, Milton Santos liderou a criação do Partido Estudantil Popular, que funcionou entre 1943 e 45, num período de forte oposição ao getulismo. "A gente tinha todas as idéias democráticas, liberais, mas não éramos de esquerda", relembrou. "O marxismo veio lentamente, principalmente depois que fui fazer meu doutorado na França, nos anos 50, com o professor Tricart."

Foi o marxismo como método de análise histórica que possivelmente consagrou e impôs restrições políticas e acadêmicas a Milton Santos. Expurgado do Brasil, perambulou pelo mundo.

Entre 64 e 76 morou em várias cidades da França, dos Estados Unidos, do Canadá, da Venezuela, do Peru, da Tanzânia... Deu aulas e até foi assessor parlamentar de uma polêmica (em suas palavras) senadora venezuelana, Mercedes Fermin, com quem acabou brigando: "Muito danada essa mulher, muito mandona, fortíssima: beleza de mulher".

As mulheres, aliás, são um capítulo à parte em sua vida. Como Einstein, ele gostava muito delas e há boatos na Bahia sobre o fascínio que exercia a partir do seu charme particular. Mas não tive a pachorra de entrar nesse campo _seria uma indiscrição imperdoável no contexto desse que veio a ser o nosso derradeiro encontro.

Entramos noutras conversas. Recusou diversas vezes colaborar com estudos de instituições dos EUA, como a Fundação Ford ou consulados norte-americanos, das quais mantinha certa desconfiança. Sobre sua experiência como professor convidado da Universidade Stanford (EUA), em 1998, comenta: "Foi um tormento, foi horrível. Porque eu esperava ter discussões intelectuais, mas o que enfrentei foi uma coisa burra. Era para ficar um ano, somente quis ficar três meses". "As diretoras do centro latino-americano onde fiquei não perdiam a oportunidade de fazer propaganda para o governo de Fernando Henrique. Muitos desses centros de estudos latino-americanos nos Estados Unidos viraram isso: lugar de propaganda dos governos: convidam embaixadores, ministros... Eu expliquei a elas que não estava ali para isso. Dos alunos, eu nada tinha o que tirar. Fiz questão de dizer que tinha perdido o meu tempo."

Professores e agentes

Nesse momento, empolgou-se em falar em diplomacia: "Quando o seu amigo (Thomas Skidmore) me fez o convite para almoçarmos juntos, recusei. Desconfio dos latino-americanistas, sem contar que são meio agentes, o que para eles é normal, nós é que estranhamos. Há anos, num congresso de geografia a que fui nos Estados Unidos, muitos dos colegas participantes usavam o dístico da CIA (agência de inteligência norte-americana). E tem outra coisa: quando você trabalha para um organismo desses, sua aposentadoria é aumentada".

Relembra que, quando trabalhou na Universidade Columbia, em Nova York, lotado no Centro de Ciências Políticas, "o grande sonho" dos colegas era passar um ano no Departamento de Estado.

"Nós é que temos vergonha de ser agentes, o que de certo modo é um erro, porque o trabalho do geógrafo é meio esse, ser agente. Desde Heródoto, a geografia é isso. No Canadá, nos Estados Unidos, se estimulam os sujeitos que vão estudar os outros países, não o sujeito da embaixada, porque o tipo de relação deste não é aquele que tem o sujeito que está nas universidades. No Brasil, o Itamaraty tem ciúmes se outros fazem o trabalho de conhecimento de outros países."

Dessa sua passagem por Columbia (início dos anos 70), lembra que o contrato previa duas conferências públicas. Na primeira que fez, atacou a política norte-americana: "E aí não houve a segunda, eles a cancelaram".

Tinha recentemente sido convidado para um encontro com o embaixador da África do Sul. "Para mim a África do Sul é importante porque pode ter uma diplomacia ativa em relação aos problemas raciais no Brasil."

Até certo outono de 1992, quando o conheci (membros do Núcleo de Consciência Negra, na USP, do qual fazia parte, o procuraram para solicitar apoio), se dizia que "Milton Santos não se sentia negro". O que naquele primeiro contato ele deixou explícito é que não poderia aceitar a idéia de que a questão racial no Brasil devesse ser deixada apenas para os negros resolverem ou discutirem.

Era e é, no seu entendimento, um problema de toda a sociedade, e ele se recusava a tratá-lo como uma questão exclusivista. A questão racial brasileira passou a fazer parte da agenda de Milton Santos, de forma intensa, nos anos 90. Ele a entendia como um problema de falta de políticas públicas a serem implementadas por ações de um governo que não fosse tão afastado dos interesses sociais quanto o comandado por Fernando Henrique Cardoso, ao qual fazia sérias restrições, principalmente no que diz respeito à forma como se entregou ao chamado Consenso de Washington.

Sentado, com uma bengala recostada ao lado do sofá e com as pernas envoltas por um grosso cobertor, Milton Santos tem brilhos nos olhos ao relembrar esse e outros episódios de sua vida. Dá-me nomes de pessoas por quem devo procurar na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Toronto, em Buenos Aires, em Caracas, em Bordeaux _local onde conheceu Marie Helène, da qual foi professor e com quem se casou pela segunda vez, tendo um filho, Rafael.

Do filho do primeiro casamento, também chamado Milton Santos _morto em 1996, um profundo trauma para o pai_, nos lembramos ao final da conversa, quando o geógrafo passa o telefone da ex-nora. Fala dos dois netos.

No final da tarde, Milton Santos faz a sua única queixa durante todo o nosso encontro: "Acho que tem pouca luz... Eu não posso mais ler, não tenho trabalhado, não tenho escrito nem lido nada. Anteontem fui ao médico e ele passou outros óculos. Disse que a visão vai voltar lentamente".

Fernando Conceição é jornalista, doutor em ciências da comunicação pela USP e professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Está escrevendo a biografia autorizada do geógrafo Milton Santos.

E-mail: fernconc@ufba.br

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