A Amiga do 38

Um fio de água corria pela torneira do banheiro. Com uma ligeira impaciência, de quem já repetira o mesmo gesto inúmeras outras vezes, ele fechou o registro com força. Era sempre assim, ela deixava a água correndo e saía do banheiro, ou deixava a água saindo e corria do banheiro, como preferirem.

Mal ele havia fechado a torneira, ela retornou, escova de dentes metida dentro da boca, espuma de creme dental espalhada pelos lábios, cabelo desgrenhado pela soneca no sofá.

Sexta-feira, começo da noite, fim de mais uma lastimosa semana. A princípio, razão para alívio e deleite, mas na realidade dos sentimentos, apenas um dique temporário de angústias, frustrações e melancolia.

Havia dentro dele uma obrigatoriedade de trégua, uma cessação intolerável das justificativas para seus conflitos. Dentro dela, uma ansiedade corrosiva, uma desagradável quebra no ritmo natural das coisas.

Ele debruçou-se no parapeito, olhar distante, para além de prédios distantes, mergulhado no infindável horizonte. “Se pelo menos eu pudesse falar, desabafar, mas ela… não, melhor não dizer nada. Talvez pudéssemos sair, arejar um pouco… não, ela vai falar dos problemas”. Ele tinha o corpo enquadrado pela janela, pensamentos reticentes, devaneios.

Cansado, resolveu tomar um banho, e ela se predispôs a passar um café, verdadeiramente, apenas colocar o pó no filtro de papel e ligar a cafeteira.

Enquanto aguardava a infusão, ela ficou hipnotizando a água, lendo e relendo os marcadores de volume riscados na jarra de vidro. “Ele poderia me ajudar, suas opiniões costumam ser boas para mim, mas ultimamente… não, melhor não aborrecê-lo, cuido eu sozinha”.

Ele se abaixou para apanhar o sabonete que caíra no chão, dava linha às idéias que voavam pela cachola. “Eu só queria ela mais perto, sua conversa me acalma tanto, mas ela é sempre tão pragmática… ou passou a ser… não sei, vai me cortar logo”.

Saiu do chuveiro e, como o costumeiro tapetinho não estava na saída do boxe, amarrotou a toalha no chão para poder pisoteá-la, e assim secar os pés. Havia algo que queria dizer. Amarrou a toalha na cintura, apanhou uma outra, de rosto, para secar o cabelo, e seguiu respingando água pelo corredor. Sim, havia algo que queria dividir, sentia que precisava dela, queria perguntar-lhe alguma coisa.

 -          Você sabe onde está o meu pijama? – ele perguntou – Aquele furadinho!

 Ela o olhou de esguelha, estava na ponta dos pés, pegando as xícaras da prateleira de cima. O cheiro de banho que vinha do corpo dele despertou-lhe uma faísca de desejo. Poderia aproveitar que ele estava só de toalha, com o corpo ainda úmido, abraçá-lo, beijá-lo. Não, não estava disposta, cabeça cheia. Ademais, ele também não parecia propenso, cabeça nas nuvens.

Ele descobriu que o pijama tinha ido parar no cesto de roupa suja. Pela manhã, ela o vira atirado no chão do quarto e, agindo com a mesma impaciência demonstrada por ele na pendenga da torneira, embolou as duas peças, que para ela eram andrajos, e as arremessou  com destreza para dentro da cesta, como um ás do basquete, ou do bola-ao-cesto, como se diria mais apropriadamente.

Ele foi resgatar o pijama, e, depois de vestido, retornou à cozinha para saborear o café recém feito. Normalmente, ele preferia o café um pouco mais forte, mas o dela, apesar de fraco, tinha sabor especial, talvez fossem as mãos dela, tão suaves, talvez o carinho que havia, ou que ele imaginava que havia, quando ela o preparava.

Desta vez, porém, a bebida estava mais encorpada, ela acertara a dose, intencionalmente, ou não, ela a preparara do jeito que ele gostava, e ele a elogiou.

Ela retribuiu o elogio com uma bicota, meio desenxabida, é verdade, mas sincera.

Apressada, deu o último gole e saiu da cozinha, ele foi atrás, seguindo-a por impulso, sem vontades, sem tino.

Ela revirou a gaveta procurando o alicate de unhas, ele pensou em ler a última revista, mas não conseguiu encontrá-la. Ela sim, encontrou o que procurava.  Sentou-se no sofá, e pôs-se a recortar o calo que tinha no dedo pequeno do pé, contornava-o cuidadosamente com a ponta afiada do alicate. “Se ele se juntasse a mim, poderíamos fazer mais dinheiro… preciso de um braço forte, alguém que me empurre, queria que fosse ele… não sei… talvez não seja, mas preciso do seu abraço”.

Sem se aperceber, ele já havia desistido da revista, não sabia mais o que procurava, porém andava pela casa e agia como se estivesse em busca de alguma coisa. “Queria que ela ficasse comigo, só abraçada, quieta, ou talvez falando… mas não planejando… isso, falando, num abraço, num calmo abraço”.

 -          Essa luz está muito fraca, não estou enxergando nada! – disse ela.

 Ele estava distraído, de novo na janela. Sugeriu que ela acendesse a outra lâmpada.

 -          Precisa é trocar o lustre – completou ela, propondo-lhe a tarefa.

 -          Amanhã… amanhã é sábado – disse ele, respondendo indiretamente a indireta.

 Naquele momento, o vazio monstruoso que havia dentro de cada um, poderia ocupar todo o apartamento, só não o fazia porque o vazio não preenche nada, é vazio. Mas o dela não era igual ao que havia nele, se é que é possível diferenciar um vazio de outro. Supomos que somente o seja quando se sabe com o que se quer preenchê-lo, e aí, cada qual com sua necessidade, cada qual com seu vazio. Na situação, parecia não haver intersecção, como se ele não pudesse suprir o que nela faltava, uma parte que fosse, nem ela diminuir o que nele não se achava.

Embora, às vezes, o silêncio signifique a plenitude, não era o caso naquela hora, e do vazio interior veio o silêncio. E em silêncio ficaram por um bom tempo, ela a lidar com seu calo, e depois com as unhas, ele a perambular pelo apartamento, a procura de algo, que não sabia o quê. Esse mesmo silêncio poderia abrir para ambos um universo de possibilidades. A chance de olhar para dentro do vazio, encará-lo, perceber e sentir o que faltava, flertar, começar a se encontrar. Mas tocou o interfone e, num toque mágico, o alçapão que levaria ao desconhecido fechou-se repentinamente. Houve um certo alívio, pelo menos desta vez estavam livres do enfrentamento, e não falamos de se defrontarem um ao outro, mas de cada um encarar a si mesmo, o mais difícil dos encontros. 

      -          Deixa que eu atendo – disse ele, dirigindo-se rapidamente à cozinha.

 Ele atendeu o interfone e ela esticou os ouvidos para saber do que se tratava, mas da breve conversa – ele apenas intercalou a resposta “tudo bem” por três vezes – ela pouco pôde concluir.

 -          Quem era? – perguntou ela.

 -          Era a coisinha lá… nunca consigo pronunciar o nome dela… a sua amiga… - respondeu, tentando acertar o nome da mulher com quem falara. - A sua amiga do 38. Ela disse que está subindo. Será que tem problema se eu ficar assim de pijama?

 -          Claro que não – ela afirmou meigamente.

 Não demorou mais do que dois minutos para que ela, a vizinha do 38, chegasse à porta do apartamento e tocasse a campainha. Então, a outra, a mulher da qual vínhamos falando, a que se sentia só e ansiosa, e que há pouco cutucava as unhas dos pés, levantou-se do sofá e foi abrir a porta. A visita entrou como uma bala. Despachada, começou a falar sem parar.

Ele, que tinha ido para o quarto, ouvia o tremendo falatório e tentava decidir, se ficava por ali mesmo, afinal pouco conhecia a visitante, se trocava de roupa, pois talvez não fosse adequado apresentar-se com aquele pijama, ou se voltava do jeito que estava, mostrando-se receptivo e à vontade. Nesta indecisão, encontrou por casualidade a revista que tanto procurara, estava sob o criado-mudo, lembrou-se que ele mesmo a deixara ali na noite anterior, pouco antes de adormecer.

Resolveu que iria fazer sala, e levou consigo a revista. Cumprimentou a vizinha, sentou-se na poltrona e começou a ler as notícias, de pijama furadinho mesmo.

 -          Quando cheguei, senti cheirinho de café – disse a vizinha, com explícitas segundas intenções.

 -          Claro! Já estava indo fazer…

 -          Ah… deixa que eu vou junto – ofereceu-se a despachada.

 -          Você quer? - perguntou ela, dirigindo-se a ele.

 Ele, que estava na poltrona, de pijama furado, lendo sua revista, que fora difícil de encontrar, pois esquecera o que buscava, pois sentira-se vazio, e precisara dela, ela, que já lhe fizera um café gostoso, que tratara das unhas dos pés, enquanto percebia-se vazia, e desejava contar com ele. Ele e ela, com suas angústias cercadas pela conversa da amiga do 38, que se olharam normalmente, sem perplexidade, e decidiram tomar mais um café.

E conversaram, e veio o café, e a vizinha lavou as xícaras, e guardou-as na prateleira de cima, onde sempre ficavam, e conversaram mais um pouco, muitas amenidades, muito senso comum, e a vizinha despachada solucionava, arranjava tudo para todos.

E ele lia sua revista, e emitia opiniões que vinham dela, da revista, sem saber se poderiam ser suas, dele, mas julgava, sem se importar onde ele estava, se é que estava.

E ela comentava a novela, a falta de dinheiro, e concordava com a vizinha, sem saber se concordava, e ria, sem saber se tinha graça, e nem onde estava, ela, e não a graça.

Pararam um instante para respirar.

 -          Aaah… amanhã é sábado – disse a vizinha, com prazer na voz.

 -          É, amanhã é sábado – concordaram em uníssono.

 Na verdade, já era sábado, é que temos esse costume, o amanhã só se faz depois de dormirmos. O sábado já estava lá, sem que eles soubessem.

 -          Acho que vou indo. Preciso descansar.

 -          Fica mais um pouco.

 -          Não, preciso ir… mas foi ótimo.

 Depois de combinarem alguma coisa, só para dar a conversa por encerrada, a amiga do 38 despediu-se com três beijinhos no rosto de cada um, era para poder casar.

Os dois ainda ficaram um tempo nos últimos preparativos, aqueles que nos liberam para ir dormir. Não disseram nada. Estava tudo latente.

Deitaram-se na cama, um de frente para o outro, e olharam-se nos olhos.

Até aqui, aparentemente, não aconteceu quase nada nesta nossa narrativa, nada que merecesse tanta tinta. Foi apenas o relato sobre pessoas que se encontraram. Será?

Mas é por aqui mesmo que ficamos, porque há momentos, como este, em que as palavras e pensamentos não nos dizem mais nada, apenas complicam o que deveria ser sentido.

E eles se abraçaram como náufragos. Um profundo abraço, até adormecerem.

 

Setembro/2002