A Casa de Cada Um 

 CENÁRIOS: Sala de visitas e quarto de um grande e antigo sobrado, que está sendo reformado.

PERSONAGENS:

LURDES: Dona da casa

MARCELA: Sobrinha de Lurdes

DORA: Empregada de Lurdes

RUI: Arquiteto responsável pela obra

 

(Sala de visitas do grande sobrado. No piso, parcialmente quebrado, estão espalhados pedaços de entulho, cacos de azulejo e algumas ferramentas de pedreiro. Dora varre o chão lentamente para evitar a suspensão da poeira. Marcela entra, vinda da sala de jantar.)

MARCELA (com espanto inocente)  Você está limpando isso aí de novo?!

DORA (ofegante)   É preciso, Marcela! Se eu deixar, isso aqui vira uma bagunça total! Eu tenho de cuidar da casa, é pra isso que sua tia me paga!

MARCELA – Mas, Dora, eles vão mexer aqui de novo! Daqui a pouco vão começar a quebrar aquele pedaço do chão e vai levantar o maior poeirão.

DORA – Paciência!… não consigo ficar parada esperando!

MARCELA – Mas, às vezes, não tem jeito! Você se cansa à toa! Sofre e não tem resultado.

(Dora pára bruscamente de varrer)

DORA (enfática) – Mas eu sei que foi limpo! Isso é que vale! Fiz a minha obrigação! (acalmando a voz, em tom de sofrimento) Mas numa coisa você tem razão, eu me canso pra valer! Olha só, não são nem dez horas da manhã e já estou com os quartos moídos! Dói tudo!

MARCELA – Então! É o que estou te dizendo!

DORA (retomando o tom vigoroso) – Não tem jeito, não! Eu sou assim!

MARCELA – Tudo bem, eu só acho que você poderia fazer as mesmas coisas gastando menos energia!

DORA – Isso é conversa de gente preguiçosa… que não gosta de trabalhar! Essa gente tem medo de arregaçar as mangas e fica inventando desculpas!

MARCELA (com culpa) – Bom… na verdade… eu não tenho aula hoje de manhã, só vou depois do almoço. Você acha que eu posso te ajudar?

DORA (desdenhando) – Você não tem jeito pra isso, não! É muito mirradinha! Pra este batente, a pessoa tem de ser forte! Mão forte sem medo de calo! Tem de encarar o que vier e não pode sentir dor!

MARCELA –  É que eu fico meio perdida aqui, sem fazer nada! Fico sem graça! Minha tia tem sido tão boa comigo que, às vezes, acho que estou abusando… me sinto em dívida com ela.

DORA (com orgulho no tom de voz) – Dona Lurdes é muito boa mesmo! Mas ela faz isso porque gosta de você!

MARCELA –  Eu queria poder ajudar mais… talvez dar um pouco de dinheiro para as despesas.

(A atenção de Dora é desviada por algumas ferramentas que estão espalhadas na passagem da porta da frente)

DORA (raivosa) – Ah, meu Deus! Esses homens são uns porcos! Acham que, só porque a casa está em reforma, podem ir deixando coisas espalhadas em qualquer canto! E eu passo o dia recolhendo! Se aquele arquiteto vier aqui hoje, vou ter de falar com ele… não dá pra ficar mais desse jeito!… sua tia não está passando bem!

MARCELA (com pesar)  É isso … ela não está bem e eu gostaria de poder ajudar!… me sinto tão culpada morando aqui de favor!… mas é que nos dois primeiros anos da faculdade, o horário é integral e não dá para trabalhar! As aulas podem ser pela manhã, de tarde, de noite… não tem muito jeito!

(Dora, sem atentar muito para o que Marcela diz, recolhe as ferramentas e as empilha  no canto da sala)

DORA – Ai, minhas ancas!

MARCELA (tornando-se ansiosa) – Vou falar para a tia Lurdes estipular um valor, como se fosse um aluguel, e eu vou, todos os meses, anotando num caderninho… assim que o horário da faculdade deixar, eu começo a trabalhar e pago tudo direitinho.

DORA (voltando a prestar atenção)    Pelo jeito, acho que você não conhece bem a sua tia! Ela não vai gostar de ouvir você falar isso! Na verdade, acho que não conhece mesmo, porque nesses anos todos, desde que eu comecei a trabalhar nesta casa, você apareceu pouquíssimas vezes!

MARCELA (ansiosa por explicar-se) – É que quando minha avó era viva, acho que havia mais contato entre a gente, apesar de minha mãe sempre ter querido ficar meio afastada. Só que, nessa época, eu ainda era uma criança, e minha relação com tia Lurdes era diferente… nem me lembro direito! Depois que minha avó morreu, minha mãe se afastou de vez! (clamando por compreensão) Por isso, fiquei muito sem jeito de pedir à tia Lurdes para morar aqui, enquanto curso a faculdade. Acho que estou incomodando, mas não tenho outro modo de ficar na capital!

DORA (atenta à conversa, porém, obcecada)   Veja estas paredes, que horror! Quando é que vão pintar isto?… (voltando-se para Marcela) Me parece que ouvi dona Lurdes dizer que depois que a... Fátima tinha morrido, não sabia quase mais nada sobre vocês.

MARCELA (sentindo-se ouvida) – Isso! Fátima era o nome da minha avó, irmã da tia Lurdes.

Que vergonha! E agora eu estou aqui, morando de favor! Poxa vida, acho que eu sempre vivi deste jeito! Nunca me senti morando na minha própria casa! Eu sempre morei com minha mãe na casa da minha avó, que, aliás, parece ter ido morar lá meio que de favor também!… Acho que é mal da minha família; morar de favores! (tornando-se pensativa) Vovó casou e enviuvou cedo… e sempre ficou morando naquela casa; com o tempo, acabou virando dela! Eu e mamãe ocupávamos o mesmo quarto… e eu sempre morei lá… num espaço emprestado!

DORA (sem perceber a gravidade da pergunta) – E seu pai?

MARCELA –  Eu não conheci!

DORA –   Ah!

MARCELA (ressentida) – Minha mãe diz que ele já morreu, mas nunca quis falar muito sobre ele! Foi mãe solteira… Por isso é que ela sempre quis ficar meio afastada! Acho que naquela época, a pressão sobre uma mãe solteira era ainda maior. Ainda mais numa cidade de interior! Assim, ela sempre cuidou de mim sozinha! Não deve ter sido fácil… pelo menos é o que ela sempre diz; que não foi fácil cuidar de mim!

DORA (querendo ser agradável) – O que importa é que você foi cuidada! Muito bem cuidada, ao que parece! Está aí, bonita, estudando em faculdade, logo arruma marido…

MARCELA (com culpa)  É!… Acho que fui, e estou sendo, bem cuidada! O problema é que parece que eu nunca tenho nada para dar em troca! Minha mãe cuidou de mim com tanto sacrifício e agora eu deixei ela lá, sozinha!… Estou aqui, morando na casa da tia Lurdes, ela me trata tão bem, faz tudo por mim, mesmo sem eu nunca ter feito nada por ela, e nem posso retribuir!

DORA –   Ora, Marcela, uma mãe sempre cuida dos filhos e…

MARCELA (com culpa crescente) – Mas meu pai desapareceu… acho que por minha culpa.

(desesperada por alívio) Eu preciso retribuir a ajuda de tia Lurdes de alguma forma!

DORA (tranqüila) – Fique junto dela! Já será o bastante!… (fugindo bruscamente do assunto) Preciso limpar estas paredes, estão imundas!

(Marcela sente-se atrapalhada pela mudança repentina no tom da conversa. Contemporiza. Recobra-se como quem acaba de acordar.)

MARCELA –  Dora! Você acabou de dizer que estava com dores no corpo!...

DORA (séria) – Sua tia não me paga salário e me dá moradia pra que eu fique medindo esforços! Eu aprendi, de pequena, que nada na vida vem de graça. Quando eu era criança, meu pai dizia que a gente tinha de merecer o que recebia. Então, todos os dias antes do jantar, ele perguntava pros filhos –  pros cinco – o que cada um tinha feito pra merecer aquela refeição. (perdendo-se nos pensamentos) Lembro que, numa destas noites, eu disse pra meu pai que tinha feito um pequeno jardim… um cantinho, no fundo do terreno da nossa casa; tinha plantado algumas flores e arrancado os matinhos em volta. Me sentia muito feliz por aquilo e contei com um enorme sorriso no rosto. Então, meu pai me disse que eu tinha passado o dia me divertindo e brincando no jardim… que não tinha feito nenhum esforço pra merecer o jantar… Fiquei sem jantar e aprendi!

MARCELA (meio sem graça) – Você não precisa!… Eu vejo que tia Lurdes gosta muito do seu trabalho!

DORA (absolutamente certa do que diz) – Eu sei! É porque, nestes anos todos, desde que eu vim pra cá, eu nunca dei nenhum motivo pra falatório! Principalmente depois que seu Francesco faleceu! Não quis que ninguém achasse que eu estava me aproveitando da sua tia! Sempre acordei cedo e trabalhei até tarde! Não vai ser agora, quando sua tia mais precisa de mim, que eu vou fazer corpo mole!

MARCELA – Não se trata de fazer corpo mole. A casa está em reforma, é natural que as coisas fiquem um pouco em desordem!

DORA (conclusiva) – De jeito nenhum! Vou pegar um balde com água e sabão!… e quando aquele arquiteto chegar, vou ter uma conversa com ele… Ah, vou!

(Dora sai pela porta que dá para a sala de jantar. Marcela sai em seguida)

(Dora volta trazendo o balde. Começa a esfregar rudemente  uma esponja contra a parede. Dora está por terminar o serviço quando entra pela porta da frente, Rui, o arquiteto.)

RUI (melodioso) – Com licença!

DORA (com satisfação incontida) – Ah, que bom que o senhor chegou!

RUI – Pelo amor de Deus, não me chame de senhor; faz eu me sentir muito velho!

DORA (provocadora) – O “senhor”, foi pra provocar mesmo! Muito bem, chamo como, então?

RUI – Só pelo nome! É mais fácil, mais curtinho… Rui! Viu?! Curtinho! Até nisso meu pai foi econômico comigo! É quase como chamar “Psiu”,  “Ô”… “Rui”! Está vendo?!… é o mesmo efeito!

DORA – Pois é, Rui! Eu estava mesmo querendo falar com você!

RUI (jocoso) – Estava?! Não está mais?!

DORA (impaciente) – Olha, você pode estar bem humorado esta manhã e deve estar se achando muito engraçado, mas nós não estamos nada bem aqui nesta casa, por isso eu peço que guarde suas piadinhas, escute e tente achar um jeito de solucionar esta desordem.

RUI (melindrado e tornando-se formal) – Entendi… O que houve de errado?

DORA (buscando formalidade) – Estou tomando a liberdade de falar em nome da minha patroa, dona Lurdes, porque ela não está bem, está indisposta e caiu de cama faz 3 dias. (voltando-se para Rui e sendo mais direta) Acho que a reforma desta casa está indo muito mal, está uma confusão… muitas coisas espalhadas pelo chão, muita sujeira… desleixo… muita demora! Nunca vi uma obra demorar tanto!

RUI (buscando um tom profissional) – Entendi… Eu tenho tentado manter as coisas organizadas. Sempre peço para o pessoal deixar as coisas todas juntas, num lugar só, e limpar o local quando o serviço termina. Mas você sabe como esse pessoal é! É difícil controlar tudo! Agora, quanto a demora, o prazo está de acordo com o que foi combinado com dona Lurdes.

DORA (irritadíssima) – Mas ela está ficando doente, já não agüenta mais! Se você visse como estava esta sala hoje pela manhã… acho esse seu pessoal um bando de desleixados!

RUI (perdendo a paciência e o tom profissional) – Espera aí, também não é assim! Tudo bem, pode haver uma coisinha aqui, outra ali… mas vocês se estressam demais! Parece que gostam de sofrer!…

DORA – Não vá ficando nervosinho, não! Queria ver se você teria coragem de falar assim com dona Lurdes! Aliás, eu não sei como ela foi contratar o seu serviço, justo ela, que sempre é tão cuidadosa!

RUI (recompondo-se) – Vamos lá! Sem nervosismo! Reformas são assim mesmo, parece que a coisa não vai terminar nunca! Toda obra grande é assim; atrasa, falta material, sai mais caro do que o esperado e todo o mundo acaba tendo chiliques. Eu avisei dona Lurdes, diversas vezes, que a obra que ela queria era grande, e que seria melhor ela se mudar durante este tempo! Mas sabe como são as pessoas de idade… Ela quis ficar… para sofrer, não sei! Agora só resta esperar!

DORA (condolente) – Você não faz idéia do valor que esta casa tem pra ela! Não gosto desse seu jeito de falar… principalmente dos mais velhos. (mostrando-se indignada) Eu também sou velha, e exijo respeito! Ninguém aqui está brincando! Você devia respeitar mais as coisas dos outros! A gente precisa saber o que falta fazer e quanto tempo ainda falta… seria bom se você falasse com dona Lurdes e tentasse tranqüiliza-la!

RUI (buscando empatia) – Claro! Acho que é importante! No início da obra, dona Lurdes ainda não me conhecia, porque tudo foi acertado com o meu pai, que é o dono do escritório! Então, quando eu comecei, senti uma certa desconfiança por parte dela… Natural! Mas agora, acho que ela já confia em mim! É só a gente conversar que ela vai ficar mais tranqüila!

DORA (mais calma) – Você vai ficar o dia todo aqui, não vai?

RUI – Vou sim! Tenho um monte de coisas para acertar e, como você mesma disse, preciso orientar melhor o pessoal!

DORA – Então, mais tarde eu vou ver como dona Lurdes está e ajeito uma conversa sua com ela.

RUI – Ótimo, e me desculpe o tom da nossa conversa! É que, às vezes, eu acho que as pessoas sofrem demais, e à toa! Meu pai é assim também! Sempre trabalhando… preocupado! Nunca está perto de mim, mas sempre preocupado comigo… Quando descobriu que eu estava estudando arquitetura me encheu de recomendações… para trabalhar no escritório dele, tinha de ser isso, tinha de ser aquilo…

DORA (irônica) – E adiantou?!

RUI – Mais ou menos! As coisas não foram feitas para serem levadas tão à sério!

DORA (repreensiva) – Não consigo entender isso muito bem! E acho que você deveria se preocupar mais com este trabalho! Pra que outros possam vir! As coisas muito fáceis não têm valor, as sofridas, sim, têm mais significado! Pra merecer as coisas boas do dia seguinte você precisa fazer por onde!

RUI – Não acredito que isso funcione! O que acontece, é que você não consegue aproveitar as coisas boas de hoje, merecidas pelo sofrimento de ontem, porque está sofrendo para merecer um bom dia amanhã!

DORA (ofendida) – Parece muito esperto isso, mas você, não ligando pra nada, nem consegue apreciar o que é bom! As coisas simplesmente passam por você… não fazem diferença!

RUI – Você me fez lembrar uma namorada que eu tive. Ela dizia que eu era insuportavelmente superficial. Não sei bem o que ela queria dizer com isso, mas ela me torrava a paciência! Queria sempre conversar, conversar… Não sei para que… Toda vez que eu resolvia conversar, ela se irritava! Resultado: eu me enchi, ela se encheu e pronto; acabou! Tudo porque ela queria levar as coisas à sério. Eu não gosto disso!

DORA – Só que aqui você vai ter de levar as coisas à sério, sim senhor! Não vai fazer ouvidos de mercador, não!

RUI (simulando preocupação) – Claro, não é isso que eu quis dizer! Vamos então para a prática. Quando cheguei, você estava passando o que nestas paredes? Água?!

DORA (meio desconcertada) – Claro, ora, estou limpando! (recobrando-se e tornando-se ríspida) Não está vendo que está tudo emporcalhado?! Vocês ficam apoiando as mãos pretas de sujeira nas paredes e o resultado é este! Parece um chiqueiro!

RUI – Mas nós vamos pintar estas paredes!

DORA – Eu sei, mas quando?

RUI – Assim que terminarmos de quebrar o piso, mais dois ou três dias, talvez. (vendo a possibilidade de ganhar vantagem sobre Dora) Mas com as paredes molhadas deste jeito… acho que teremos de esperar um pouco mais!

DORA – Decerto você achou que eu ia deixar as paredes sujas!

RUI (soberano) – Seria o mais sensato.

DORA – O mais certo seria não sujar as paredes, porque me custou muito limpá-las!

RUI – Foi um esforço desnecessário, concorda? Porque elas vão ficar novinhas dentro de poucos dias! Poderia ter esperado!

DORA (com raiva) – Não sei o que significa “poucos dias” pra você! Além disso já estão limpas! Peça cuidado ao seu pessoal! Que não ponham as mãos sujas nas paredes! Que aprendam a lavar as mãos!

RUI (irônico) – Muito bem, se não lavarem as mãos eu lhes puxarei as orelhas!

DORA (quase ameaçando) – Vou cuidar das coisas da cozinha! Cuide você das suas, que não são poucas!

(Dora vira as costas para sair e Rui, sem que ela o veja, faz uma careta e esfrega as mãos sujas na parede, numa provocação infantil.)

(Lurdes está recostada na cabeceira de sua cama, com o tronco ligeiramente inclinado e apoiada por travesseiros. Ao seu lado, sentada na beirada da cama, está Marcela, que lhe acaricia a cabeça.)

MARCELA – A senhora tem sido tão boa para mim, tia! Nem sei como agradecer!

LURDES – Não tem nada para agradecer, minha filha! Eu sou sua única família aqui na capital; se você não puder contar comigo, com quem vai contar?… não conhece mais ninguém!

MARCELA – Eu confesso que, quando estava para decidir minha matrícula na faculdade, e vim pedir ajuda à senhora, não achei que seria tão bem tratada!

LURDES (muito surpresa) – Por quê, minha filha?

MARCELA – Estávamos muito afastadas! Quase não nos falamos, depois da morte da vovó! Na última vez, acho que eu tinha uns 12 anos!… Minha mãe… a senhora sabe!

LURDES – Sua mãe tem lá os motivos dela! Além disso, você tem se mostrado uma excelente moça! Acreditei que nos daríamos bem, baseada somente na impressão que eu tinha de você quando criança, e não me enganei! (aprovando) Eu tenho observado você! Sua preocupação… seus cuidados, seus modos contidos… você é um doce de menina!

MARCELA (agoniada) – Tia, estive pensando… eu gostaria de poder ajudar, pagando uma parte dos gastos da casa, mas…

LURDES – Você não precisa ajudar em gasto algum! Eu sei que, agora, você não pode … e se pudesse, tenho certeza que contribuiria com sua parte! Só o fato de você se preocupar com isso, e lamentar-se de não poder ajudar, já mostra o seu valor, minha filha! (certa do que diz) O seu padecimento mostra sua grande responsabilidade! Você não precisa me dizer nada; eu vejo!

MARCELA (com contentamento infantil) – Obrigada, tia!

LURDES – Você lembra muito minha irmã Fátima… Foi uma pena o destino ter querido que eu e sua avó convivêssemos tão pouco! Tenho lembranças lindas da nossa infância! Dos tempos em que papai e mamãe eram vivos e morávamos no sítio!

MARCELA – Vendo a senhora falar, me parece que foi uma época muito boa, bem diferente da impressão que eu tinha ao ouvir as histórias que a vovó contava!

LURDES (enfática) – Ah, não! Não se engane!…O que conto são lembranças de um tempo de convivência familiar, mas nada foi fácil, não! Pelo contrário, tudo sempre foi muito difícil para nós!

MARCELA – Vocês perderam os pais muito cedo, não foi?

LURDES – Muito… Éramos praticamente duas crianças! Quando vim para a capital, sozinha e quase sem nenhum dinheiro, eu era mais nova do que você!… Tinha recém completado 18 anos! Sua avó ficou lá… Pobre Fátima!… sempre sofreu muito!… mas mereceu o lugar que, certamente, ocupa no céu, ao lado de Deus!

MARCELA – Eu sempre fiz de tudo para alegrá-la! Lembro que, quando eu era pequena, ela adorava me ver dançar!… e eu vivia fazendo isso, só para vê-la sorrir!

LURDES (melancólica) – Pobre Fátima!… Ela adorava você! Depois que você nasceu, nas pouquíssimas vezes que ela veio sozinha me visitar, o que mais ela contava era sobre a netinha! Pobre Fátima!… Bem, para mim as coisas foram um pouco diferentes, mas também com muito penar!

MARCELA – Imagino!… A senhora aqui na capital, tão só e tão nova!… Como foi que a senhora se virou?

LURDES (mais melancólica) – Muita fé em Nossa Senhora de Lurdes! Sempre acreditei que o sofrimento era o caminho para a recompensa! Quando cheguei aqui, me hospedei numa pensão no centro da cidade. Por sorte consegui, com apenas dois dias de estadia, um emprego de balconista numa mercearia. E fui sempre me arranjando, até conhecer Francesco! Homem muito generoso!

MARCELA (infantilizada e meio sem jeito) – Ele já era rico, tia?

LURDES (escarnecendo, porém com certo pesar) – Rico?!…Os primeiros anos de casamento foram sofridos; Francesco trabalhava muito e não quis que eu continuasse no emprego. Alugamos uma casinha e eu procurava fazer as economias… e trabalhava muito na casa também! Depois do segundo ano de casamento vieram os filhos… Muita dificuldade e sofrimento, mas nunca perdi a fé em Nossa Senhora de Lurdes!

MARCELA – E a senhora conseguiu!… Esta casa… conforto! Acabou o sofrimento! Foi recompensada!

LURDES – Foi necessário muito esforço e sacrifício para as coisas começarem a melhorar!…Ganhamos bastante dinheiro, é verdade, e construímos esta nossa casa... (com os olhos perdidos no passado) Pobre Francesco!… Deus quis que ele se fosse cedo! Acho que foi de muito trabalhar e sacrificar-se! Esta casa sempre foi o orgulho dele! Sentia como se fosse seu castelo!… Seus olhos brilhavam, quando falava!…

MARCELA – E agora a senhora está dando nova vida a tudo isso! Não está feliz?

LURDES (falando para si) – Desde que Francesco morreu, a casa ficou um pouco largada. Os filhos foram morar no exterior… fiquei muito tempo desgostosa! Mas agora, por Francesco, decidi que vou deixar a nossa fortaleza novamente imponente, para que permaneça por muito tempo na história de nossa família!

MARCELA – Foi muita coragem sua, tia!

LURDES – Confesso que me sinto um pouco fraca e doente, mas ainda decidida!

MARCELA – Acho que a senhora deveria ter desocupado a casa… arranjado um lugar tranqüilo, enquanto a restauravam! Não foi sensato ter ficado aqui!

LURDES – Nunca, minha filha! Pois, o grande mérito reside justamente nisto! Permanecer aqui, acompanhar cada movimento, cada barulho… lutar contra os percalços, os transtornos… é como reerguer a casa com as próprias mãos!

MARCELA (discordando fortemente) – Mas eu me preocupo com a sua saúde! Parece tão fraca, tia!…Acho que não vale a pena sacrificar a saúde, por nada! Ainda penso que está sendo muito sofrido!

LURDES (gemendo) – Ai! Ajude-me a sentar!

(Lurdes fica sentada ao lado de Marcela, na beira da cama)

LURDES - É verdade, estou me sentindo mal, mas passa!… (delirando) Mexer com a casa… mexer com ela!… tem feito eu me sentir cada vez mais próxima de Francesco! Em alguns momentos chego a senti-lo ao meu lado!

MARCELA – Pena eu não ter convivido com ele!

LURDES (emociona-se e enche os olhos de lágrimas) – Você era de colo ainda…

MARCELA – Tia, não fique assim!… Desculpe!

LURDES – Não é nada, filha! Coisa de velho!… (querendo mudar de assunto) Me conte sobre você! Como vai a faculdade?

MARCELA (entusiasmada) – Ótima! Estou gostando muito! Tenho estudado bastante!

LURDES – E as amizades?

MARCELA (mais entusiasmada) – Ah, estou entrosada com um pessoal ótimo! Fazemos parte do mesmo grupo de trabalho! Gostaria muito de manter estas amizades!...

LURDES – Isso é bom! Cultivar amigos… importante para as horas difíceis!

MARCELA – Esta noite, depois das aulas, o pessoal combinou de se juntar na casa de um deles!…uma festinha, mais para bater papo!…

LURDES – Não te convidaram?

MARCELA – Me convidaram, sim!

LURDES – E você não vai?

MARCELA – Vou!… Quer dizer… não sei!… Não acho certo!… deixar a senhora sozinha de noite!… ainda mais agora, que não está se sentindo bem!

LURDES – Deixe disso, minha filha! Vá com seus colegas! É bom para você… Só tome cuidado e não faça nenhuma besteira!

MARCELA – Mas a senhora não está bem e vai ficar sozinha!…

LURDES - Eu fico bem! Sei que você é muito responsável! Vai, filha!

MARCELA – Será?!… Não sei… Não acho certo!…

(Dora entra no quarto fingindo ocultar a forte irritação que estava sentindo)

DORA – Dona Lurdes, vim saber se a senhora vai descer pra almoçar, ou se prefere que eu traga a bandeja até aqui.

LURDES (enfraquecendo a voz) – Ah, minha querida, não estou muito disposta para descer hoje! Prefiro que traga o almoço aqui!

MARCELA – Bem, tia, vou indo antes que me atrase para a aula!

(Marcela beija a testa da tia e sai apressada)

LURDES (para Marcela) – Não deixe de comer!…

DORA (para Lurdes) – Vou buscar o almoço!

LURDES – Espere um pouco, Dora! O que houve?

DORA (desenfreada) – A senhora já percebeu, não é? É esta reforma… ou melhor, este arquiteto! Falei com ele esta manhã! Sei que a senhora não está se sentindo bem, e eu não deveria incomodar com isso, mas esse rapaz, o tal Rui, está esgotando a paciência!…

LURDES – Ele me parece irresponsável! Bem diferente do pai… que é sempre tão sério!

DORA (gesticulando e andando de um lado para o outro) – Pois, então! Pedi que fossem mais cuidadosos! Pedi, até, que ele viesse falar com a senhora, para acalmá-la! Dei voto de confiança! Mas qual? Estava na cozinha preparando o almoço e… as porcelanas!… as porcelanas do bufete foram quebradas! Quebraram, juntaram os pedaços e deixaram sobre a mesa! Como se nada tivesse acontecido! Há tantos anos eu limpo aquelas porcelanas, e nunca… nunca quebrei nenhuma! A senhora sabe disso!

LURDES (tomando partido) – Claro que sei, Dora! Sou testemunha da sua dedicação e do seu esforço! Estes anos todos nesta casa não são por acaso! Acalme-se!

DORA (desabafando) – Desculpe, mas é que nós… quero dizer… a senhora, não pode tolerar mais este tipo de irresponsabilidade! Eu me mato de trabalhar, limpo e recolho coisas o dia inteiro… praticamente termino o dia me arrastando! E eles ficam cantando e achando graça de tudo, com suas botas cheias de areia… pra cima e pra baixo! Não me incomodo tanto pelo esforço, a senhora sabe, que se precisar, eu sou capaz de trabalhar dias seguidos, sem um só minuto de descanso! Me incomoda é o jeito debochado deles!

LURDES – Você tem razão, Dora! As pessoas não sabem fazer por merecer as coisas boas que recebem! Acham que vieram ao mundo para brincar! Mas não sofra tanto assim! Depois do almoço peça para o arquiteto subir; vou falar com ele!… (gemendo) Ai! Me ajude aqui com estes travesseiros!… Estou um pouco zonza!

 (Dora ajuda Lurdes a recostar-se novamente).

(Rui está agachado, de cócoras, medindo um dos cantos do piso da sala de visitas. Marcela começa a cruzar a sala dirigindo-se à porta de saída.)

(Rui, estica o pescoço na direção de Marcela, num esforço para ser visto por ela)

RUI – Oi!

MARCELA (pára, surpresa) – Ah, que susto! Oi!

RUI – Já está saindo?

MARCELA – É! Estou indo para a faculdade!

RUI – Bons tempos! Algumas aulas para matar o tempo, um monte de amigos, reuniões do grêmio!…

MARCELA – É!… (mexendo na pasta) Estou com a sensação de que esqueci alguma coisa!… deixa ver!…

RUI (querendo puxar assunto) – Tudo bem com você?

MARCELA – (distraída com a pasta) -  Tudo! E com você? E a obra?

RUI – Comigo está tudo ótimo! Com a obra eu acho que também, apesar das opiniões contrárias!… Sua tia comentou alguma coisa com você?

MARCELA – Não falei com minha tia sobre este assunto, mas sei que ela não está bem, em parte, por causa desta terrível desordem! Dora também está muito nervosa com tudo isso! Não é para menos!…

RUI – E você também?!

MARCELA – Bem, eu acho que, de certa forma, Dora está certa!… você podia se preocupar um pouco mais com as coisas, e…

RUI (com liberdade inconveniente) – Ah, mas o que essa empregada quer?… que eu fique chorando pelos cantos da casa?… que arranque os cabelos porque um azulejo quebrou?…

MARCELA (irritando-se) – Talvez um pouco mais de respeito com as coisas dos outros!…

RUI – Está certo! Entendo que as pessoas mais velhas, às vezes, se apegam à bobagens… lembranças, antigas peças…  (imitando uma mulher esnobe) “o prato de porcelana que não sei quem me deu”, “o copo de cristal não sei de onde”… Entendo!… É que eu sou uma pessoa tranqüila!… nós, que somos mais jovens, temos de mudar essas coisas!

MARCELA – Não acha pouco caso?

RUI – Eu acho que preocupação é besteira! As preocupações eu deixo para o meu pai!… os negócios do escritório… passar as noites em claro, sofrendo para desenhar novos projetos!… Estas amarguras todas, deixo para ele! A gente não veio ao mundo para sofrer! A vida tem de ser uma festa! Você não acha?

MARCELA – Não sei!… Festa!… Hoje mesmo, não sei o que fazer!

RUI – Como assim?

MARCELA (indecisa) – É que eu tenho uma festa!… mas acho que não vou!

RUI - Por que?

MARCELA – Minha tia está doente, e eu deveria me preocupar com ela, cuidar dela…

RUI (buscando mais intimidade) – Deixa disso!… Vai deixar de se divertir por causa da sua tia? Pare de sofrer! Sua tia está bem e, depois…(jocoso) tem a empregada para cuidar dela! As duas podem ficar se lamentando muito bem sozinhas!

MARCELA – Não acho muito certo pensar assim!

RUI – A gente tem de pensar do jeito mais fácil! É isso que a sua empregada tinha de entender! Eu cuido desta obra do jeito que ela deve ser cuidada: apenas como uma obra! Não precisa sentimentos! E por que eu sou encarregado desta reforma? Porque eu fiz arquitetura, porque meu pai já era arquiteto e porque escolhi a faculdade onde o vestibular era mais fácil! Viu?! Tudo é simples! Nós é que complicamos!

MARCELA – Não gosto do seu jeito de falar!

RUI – É só o meu jeito de falar! Você não precisa ser assim, se não quiser, mas não deixe de aproveitar a sua festa! Não fique enfurnada em casa se amargurando!… Aliás, estou reparando que você está mais bonita hoje! Não é só para ir à aula, é?!

MARCELA – Não… me arrumei para o caso de decidir ir, mas…

RUI – Vai sim! Pena que hoje eu não posso, senão iria junto!

MARCELA – Talvez você esteja certo!

(Marcela fica parada um momento, olha para seu relógio de pulso e parte em direção à porta de saída)

MARCELA – Preciso ir! Tchau!

RUI (acenando) – Tchau, e pense no que eu te falei!

(Dora entra na sala. Marcela para na porta e espera)

DORA (formal, para Rui) – Senhor Rui, falei com dona Lurdes, conforme combinamos! Ela pediu pra que você subisse daqui uns quinze minutos!

RUI (para Dora) – Ah sim, claro!

MARCELA (para Dora) – Dora, já estou de saída! Por favor, depois, avise minha tia que eu vou chegar um pouco mais tarde… vou à uma festa… ela sabe o que é!

DORA – Festa?! Festa!… Está bem, eu aviso!

(Marcela sai da casa. Dora sai pela porta da sala de jantar. Rui olha para o relógio, espera um pouco, e sai pelo mesmo caminho de Dora. Apagam-se as luzes)

(Voltam as luzes. Sala de visitas. Marcela, voltando da festa, entra contando os passos. Olha para o relógio. Dora entra agitada, torcendo as mãos)

DORA (em pânico) – Ouvi barulho!… Que bom, que bom que você chegou!… Graças à Deus você chegou cedo! Pensei que a festa ia demorar mais… Graças à Deus!…

MARCELA (assustada)   Saí mais cedo… mas o que você tem?! O que aconteceu?!

DORA (com os olhos esbugalhados) – Sua tia, Marcela… sua tia!…

MARCELA (olhando para a porta da outra sala) – O que tem?! O que?…

DORA – Ela teve um troço!… Chamei a ambulância!… Precisamos levar pro hospital

MARCELA (correndo para a porta da sala de jantar e começando um choro) – Eu sabia que não deveria ter saído!… eu sabia!

(Apagam-se as luzes)

(Luzes no quarto de Lurdes. Já de volta do hospital, Lurdes  está dormindo em sua cama. Entram Marcela e Dora. Vagarosamente, aproximam-se)

DORA (para Marcela, em tom baixo) – Pobre dona Lurdes! Ficar assim, desse jeito, entrevada!

MARCELA – Os médicos disseram que, apesar da idade e do derrame ter sido forte, ela ainda tem chance de voltar a andar.

DORA – Quanto sofrimento! Que mulher! Que fibra! Que exemplo!

MARCELA – Vai depender muito de nós, da nossa dedicação! (com alívio) Acho que agora, vou poder retribuir tudo o que ela tem feito por mim! Vou poder cuidar dela! Quitar minha dívida!

(Lurdes abre os olhos)

LURDES – Marcela?! Dora?! Vocês estão aí minhas queridas! (gemendo) Ai! Tenho a cabeça pesada!

(Aproximam-se mais. Marcela fica de uma lado da cama e Dora do outro.)

MARCELA (como que falando à uma criança) – Estávamos falando que vamos cuidar direitinho da senhora! A senhora pode ficar sossegada, porque em dois tempos vai sair desta cama!

DORA (em tom baixo, mas entusiasmada) – Pode ter certeza! E, enquanto isso, eu vou cuidar pra deixar a casa do jeito que a senhora sempre quis! Não vou descansar um minuto sequer!

MARCELA (com o olhar perdido nos olhos da tia) – Tia… tia… tão boa comigo!

DORA (orgulhosa, para Lurdes) - Agora, então, depois que a senhora pôs o Rui, aquele arquiteto de quinta categoria, pra correr!… Moço irresponsável! Vai ver! Com o pai dele vai ser diferente! Logo estará tudo terminado! Fique tranqüila! Rapidinho, a fortaleza, como a senhora gosta de dizer, vai ficar como antes… como o seu Francesco gostava!…

LURDES (olhando para o teto) – Francesco!… Francesco!…Deus me colocou nesta cama, para comprovar o quanto fiz… o quanto dei de mim!… Te sinto cada vez mais perto, Francesco! E a nossa casa!… Não valeu a pena todo o sacrifício? Não valeu a pena?…

(Dora pega uma das mãos de Lurdes e encosta seu rosto no dela. Marcela faz o mesmo, do outro lado da cama. As três ficam assim, de rostos colados)

MARCELA (suspirando aliviada) – Tudo vai acabar bem, tia! Eu não vou mais sair do seu lado! Tudo vai acabar!

 

FIM