O
Esconderijo Era um apartamento velho, tinha lá
seus trinta anos, talvez um pouco mais. Seu estado de conservação, no
entanto, carregava-lhe mais uns dez. Seu tamanho diminuto conferiu-lhe
pioneirismo na época em que fora concluído, lançando a tendência dos
apartamentos funcionais, feito para as pessoas que se adaptavam à nova
realidade, cujo tempo era precioso e não podia ser desperdiçado com
tarefas do lar. Em três décadas o imóvel passara
de moderno à decadente. E neste cubículo decadente, morava Ofélia. Sentada em sua poltrona de couro
sintético, de assento e encosto roçados e rachados, acendia mais um
cigarro, sexto desde que havia acordado, uma hora atrás. Apagou o fósforo
com um sopro de fumaça e disparou um acesso de tosse pigarrenta. As
sucessivas baforadas de Ofélia tinham, ao longo dos anos, deixado uma
crosta marrom no pedaço do teto que ficava sobre sua poltrona, criando
uma mancha de maior destaque no já enegrecido ambiente. Ela era uma mulher imensa, por
volta de cento e dez quilos, distribuídos em um metro e setenta de
altura. Tinha o pescoço curto, cheio de dobras, fazendo com que o papo
praticamente encostasse no peito. Transpirava muito e tinha o buço
constantemente molhado, motivo pelo qual tinha sempre pronto um lenço
amarrotado na mão, ou no decote, alojado entre os enormes peitos, para
secar o rosto e o pescoço. Para livrar-se do calor, e até porque não
sentia necessidade de outra indumentária, passava o dia metida em um
camisolão estampado, fino e semitransparente. Os longos cabelos
brancos, manchados de amarelo, trazia enrolados num coque. -
Afrânio! – chamou ela com a voz rouca e embaraçada. Não obtendo resposta, chamou
novamente. Ouviu-se o som da descarga e em seguida o correr da água da
torneira. Anunciando sua chegada com o ruído
do trinco da porta do banheiro se abrindo, Afrânio surgiu na sala. -
Você me chamou, Ofélia? Afrânio era um sujeito magricela,
passado dos quarenta anos, ombros curvados para frente, pernas compridas
de canelas finas. Seu rosto era chupado com as maçãs salientes e em
seu pescoço longo, à cada vez que falava, bailava um enorme pomo-de-adão.
Morava com Ofélia há muito e estava desempregado há quase tanto tempo
quanto. Viviam do dinheiro da aposentadoria dela. -
Estava no banheiro. Acordei com uma dor de barriga daquelas!
Quase virei do avesso! Acho bom você não aparecer por lá tão cedo! -
Achei que você tivesse morrido! Pegue um copo de café pra
mim! Bem cheio! Afrânio foi até a cozinha
arrastando seu chinelo. Sobre a chapa engordurada do fogão vermelho,
entre uma frigideira cheia de óleo grosso e queimado, e uma panela suja
de molho, havia um bule de café quente. -
Este café é novo? – gritou Afrânio da cozinha. -
Não, mas acabei de esquentar! -
Nossa, Ofélia! Este café já tem três dias! Afrânio voltou com um copo de
requeijão cheio de café até a boca, do jeito que Ofélia gostava. -
Estava vendo o teto do banheiro, Ofélia, acho que precisamos
arrumar. -
Arrumar? Por quê? -
Ele está todo preto, descascando… -
Não me venha com essa, Afrânio. Não temos dinheiro pra
nada! – resmungou Ofélia, soltando fumaça enquanto falava. -
Eu mesmo posso consertar. Compro uma lixa e um pouco de
tinta… -
Deixe assim! Você sabe que eu detesto barulho. Esqueça esta
história, por favor! -
E não é só isso, tem um monte de outras coisas que a gente
precisava reparar. A janela do seu quarto, por exemplo, está emperrada,
não abre de jeito nenhum. Faz meses que o quarto não é arejado! -
Bobagem! Prefiro assim, fica escurinho pra eu poder dormir
durante o dia. -
Você não acha que pelo menos a cozinha nós precisaríamos
limpar? Está tudo engordurado! O fogão, as paredes, o chão… -
O que deu em você, Afrânio? Até parece que é meu marido!
Se minha irmã pudesse te ver hoje, iria desconjurar o próprio filho
– falou dando risada. – Você sabe que eu não consigo fazer essas
coisas, me canso logo. Depois, tenho horror a este tipo de confusão.
Tome – passou-lhe o copo de café – tome um pouco de café e
sossegue! Está bom assim! Graças à Deus nunca vem ninguém aqui,
portanto não temos de ficar arrumando nada. Era o que me faltava… Nem
a cama eu arrumo! Pra que, se daqui a pouco vou deitar de novo?!… Senta
aí no sofá! Pegue um cigarro! – estendeu-lhe o maço. Ofélia
acendeu mais um cigarro, semicerrou os olhos, deu uma longa tragada, e
passou a caixa de fósforos à Afrânio, que já havia se acomodado.
Reinou o silêncio enquanto se dedicavam ao ritual da fumaça. -
Podíamos almoçar no “quilo” hoje! O que você acha? –
sugeriu Afrânio, quebrando a quietude. -
Nem pensar! – respondeu prontamente – Cansei de falar que não
gosto de sair de casa! Menos ainda hoje… Com esse calor dos infernos!
– enxugou o suor com seu lenço embolado. -
Vamos lá! É aqui perto, e é barato! – tentou Afrânio,
suplicante. -
Não, nem morta! Temos de caminhar muito! As calçadas estão
sujas, cheias de cocô de cachorro! O restaurante deve estar cheio! As
cadeiras são apertadas pra mim! Não gosto de me meter no meio dessa
gente! As pessoas me incomodam! Ficam me observando… Odeio aquela
barulheira de pratos, pessoas falando cada vez mais alto, comendo sem
parar! Parece uma nuvem de gafanhotos gigantes, com os olhos vidrados. Ao
me verem entrar vão começar a comer mais, e depressa, com medo de que
a gorda aqui acabe com a comida deles! Não, Afrânio, não! Prefiro
ficar na minha santa paz! -
Nesse caso vamos precisar de ir ao mercado, comprar alguma coisa
para comer! -
De jeito nenhum! Lá tem mais gente ainda! Peça por telefone! -
Caramba Ofélia! O que você quer?! Ficar enfurnada para sempre? Ela
não se sentia enfurnada, estava do jeito que gostava, sem ninguém para
mandá-la. O tempo de fazer o que os outros queriam já tinha passado.
Na opinião dela, era disso que as pessoas gostavam, de mandar umas nas
outras. -
Não perturbe, Afrânio! Vá você sozinho comer no tal
restaurante, ou vá ao mercado, quem sabe não arruma uma namorada bem
grudenta e chata – disse ela, dando uma gargalhada tossida. - Tenho
pavor às pessoas e suas conversas! Não se preocupe, hoje ainda tenho o
que comer aqui em casa. Meio
desenxabido, Afrânio sentiu-se sem coragem para sair sozinho. -
Acho que você tem razão. Tem alguma coisa para eu comer também? -
A gente se vira! -
Tá bom!… Acho que eu preciso ir ao banheiro de novo! Ai, que
dor de barriga! Afrânio
saiu correndo com a mão na barriga e soltando gases pelo caminho. Mais
tarde foram à cozinha preparar alguma coisa para comer. Ofélia fuçava
a geladeira em busca da caixa de hambúrgueres, movendo-se com
dificuldade maior que a habitual por ter ficado muito tempo sentada.
Isto intensificava suas queixas. Enquanto isso, Afrânio desenrolava o
arame que mantinha a porta do forno fechada, queria alcançar a
frigideira que continha óleo mais limpo. Dedicaram-se por mais de uma
hora no preparo do almoço, que constitui-se de um panelão de arroz,
feito no dia anterior, meia dúzia de hambúrgueres fritos, cobertos de
maionese, e dois ovos cozidos. Comeram e depois depositaram os pratos e
talheres dentro da pia, abarrotando-a um pouco mais. Afrânio
desceu para a portaria do prédio para distrair-se um pouco, conversando
com o zelador. Ofélia ficou esparramada em sua poltrona, cochilando
entre um comentário e outro do programa de televisão.
Algumas horas depois, acordou assustada com o barulho de Afrânio
entrando pela porta da frente. -
Sujeito chato esse zelador – resmungou ele. -
O que houve, Afrânio? – perguntou ela, enquanto alcançava o
maço de cigarros. -
Esse zelador é um idiota! Não se pode discutir futebol com ele! -
Eu te digo, Afrânio! As pessoas são desprezíveis! Você mesmo… Eu
te suporto porque você é família… e família… - completou,
fazendo uma pausa para que o sentido ficasse bem compreendido. - Não
sei por que você tem de ir conversar com esse sacripanta. Sujeito à-toa! -
Você tem razão! Sarquipanta! -
Sacripanta, Afrânio! Sacripanta! -
Isso mesmo. Cretino! Não entende nada de futebol! – praguejou,
indo correndo para o banheiro. Quietos,
passaram o final da tarde, cada um no seu canto, até que anoitecesse. -
Agora você vai ter de concordar comigo, precisamos comprar
comida, não tem mais nada por aqui! – exclamou Afrânio ao vasculhar
o armário da cozinha e constatar o fato. -
Você vai, eu estou cansada! -
Vou ao mercadinho antes que feche! Afrânio
foi ao pequeno mercado que ficava na esquina da rua onde moravam.
Abasteceu-se com muita comida, pois queria ficar pelo menos uma semana
longe desta tarefa. Voltava
pela calçada carregado de sacolas, quando deu-se conta que um indivíduo
estranho e suspeito vinha em sua direção. Era um rapaz de cabelo
crespo e avermelhado, usava camiseta e bermuda largas. Ao se
aproximarem, Afrânio começou a achar suas suspeitas infundadas, pois o
sujeito parecia distraído e olhava para outro lado. Quando estavam a
quase um metro de distância um do outro, Afrânio levou um inesperado e
forte empurrão, vindo de trás. Ao virar-se, meio cambaleante, para ver
o que estava acontecendo, o sarará que vinha pela frente lançou-se
sobre ele, puxando-lhe com destreza a carteira que trazia presa na
cintura da calça. O sarará
e seu comparsa, que viera por trás, saíram em disparada, deixando Afrânio
sem reação. Aturdido, ele se reorganizou com as sacolas, retomou o
caminho de volta, e ainda pôde recuperar a carteira com os documentos,
que os batedores haviam largado no caminho, após terem limpado o
dinheiro. De
volta ao apartamento, contou o ocorrido à Ofélia, que na penumbra, em
sua poltrona, apagava o cigarro no cinzeiro atulhado de baganas. -
Mundo podre! Não se pode nem andar pelas ruas! Bem faço eu de
ficar aqui! – sentenciou Ofélia. Afrânio
foi até a janela da sala, fechou a empoeirada cortina, e concordou com
ela: -
Mundo podre! Passaram
três dias sem sequer ver a luz do dia. Acordavam para comer e comiam
para dormir. Fumavam nos intervalos. O ar ficou pesado. Mal se falaram,
até que Ofélia constatou que estavam ficando sem cigarros. -
Eu vou, Ofélia. Me dá o dinheiro. Afrânio
saiu pela rua esgueirando-se nas sombras. Comprou vinte maços e voltou
para casa o mais rápido que pôde. Estabeleceram essa rotina para o resto de seus dias, esconderam-se do mundo. Dezembro/2001 |