O Sítio Liberato resmungou, a claridade o acordara. Tapou o rosto com o
travesseiro na tentativa de prolongar um pouco mais seu sono, antes que o
despertador tocasse. Na difusão dos pensamentos, de
quem está apenas meio acordado, amaldiçoou-se por ter esquecido de
fechar a cortina do quarto. Estranhou, esse era sempre um de seus
principais cuidados antes de se deitar, pois sabia que não conseguia
dormir com o brilho da manhã. Rolou na cama umas três vezes
antes de abrir os olhos, e, ao fazê-lo, ofuscados, eles viram um lugar
diferente do que seu cérebro esperava encontrar. Conduzido por confusos
reflexos de defesa, sentou-se abruptamente na cama, assustado, com o coração
palpitando, esfregou o rosto e em seguida pôs-se de pé. Olhou lentamente
ao redor procurando entender onde se encontrava. Não achou nenhuma referência. Estava num enorme galpão e sua
cama ficava alinhada com uma centena de outras iguais. Eram quatro
fileiras e, entre elas, corredores demarcados por faixas brancas. Atrás
de cada leito, um guarda-roupa pequeno e um chuveiro circundado por um
biombo de plástico. A luz que o havia despertado entrava por janelas de
vidro, que ficavam no alto das paredes cinzas do galpão, quase chegando
ao teto, a uns seis ou sete metros de altura. Caminhou descalço pelo corredor
central olhando perplexo para as pessoas, que aos poucos iam despertando. Sentia-se como se estivesse num
pesadelo, não conseguia atinar com aquilo. No final do corredor, chegou a
um enorme arco que dava para a rua. Saiu. Teve a certeza de que aquela era
a rua onde morava, a praça na esquina, as árvores, a disposição dos
postes, mas, em vez de casas e prédios, outros galpões muito parecidos
com aquele que acabara de deixar, ocupavam o espaço. Foi até o meio da rua e ficou
parado por um tempo, abriu os braços interrogativamente e deu uma volta
sobre si mesmo, fixando-se no que via. Quanto mais observava, menos
entendia. Afinal, o que era aquilo? Onde estava sua casa? Que espécie de
brincadeira era aquela? Suas indagações foram
interrompidas pela buzina de um veículo utilitário, uma perua branca, em
forma de caixa, que transportava pelo menos umas dez pessoas espremidas em
seu interior. Foi para a calçada vagarosamente, não conseguiu reagir com
a prontidão esperada pelo motorista. Deu-se conta de que todos os carros
que circulavam pela rua eram iguais àquele. Quando apercebeu-se de que estava
de pijama, sua consciência obrigou-o a reagir contra o estado de
espanto e, embaraçado, voltou para o galpão. Ao percorrer o
corredor de volta, observou toda aquela gente de novo e pôde identificar
alguns vizinhos, que conhecia apenas de vista, que é como ocorre nas
grandes cidades. Algumas pessoas já estavam arrumadas, os homens
engravatados, as mulheres ajustadas em seus vestidos, sentadas na beira da
cama, como que aguardando um não sei quê. Outras, atrás dos biombos,
tomavam banho ou acabavam de se trocar. Não teve coragem de se aproximar
dos conhecidos, pois pareciam muito à vontade, como se nada estranho
estivesse acontecendo. Por onde andaria Sérvulo, o irmão mais velho que
morava com ele? Talvez pudesse dar-lhe uma explicação razoável sobre a
situação. Liberato pensava e não conseguia
nada plausível. Sérvulo, onde estaria Sérvulo? Levou um tempo para achar a cama
onde dormira, não a reconhecia como sua, eram todas praticamente iguais.
Estupefato, sentou-se e apoiou a cabeça com as mãos. Não conseguia
manter uma linha de raciocínio, seus pensamentos se embaralhavam. Nesse
instante, à sua frente, saído detrás do biombo, surgiu Sérvulo. Foi
como se Liberato tivesse visto Deus, trazendo a salvação. -
Sérvulo, você está aqui! Sérvulo, Sérvulo! Abraçou o
irmão fortemente, com profunda comoção. Sérvulo não entendeu a inusitada
reação, ficou sem graça e recebeu o abraço meio desajeitado. Achou a
brincadeira sem sentido e prontamente demonstrou seu desagrado. -
O que deu em você, Liberato? Liberato controlou a excitação e
ficou aguardando um esclarecimento para a pergunta que julgava estar implícita.
Observou atentamente os movimentos de Sérvulo na espera de respostas, porém
o irmão manteve-se indiferente, deixando-o ainda mais atônito. Em instantes, a ansiedade
transformou-se em irritação, Liberato passou a questionar de maneira áspera
o significado daquilo tudo, mas o irmão parecia não entender a pergunta
- aquilo tudo, o quê? A cólera tomou conta de Liberato.
Que estupidez era aquela? Exigia que o irmão lhe respondesse onde
estavam, por que estavam ali, e qual era o sentido de toda aquela gente
junta, em camas iguais. Sérvulo não compreendia a ira do
irmão e não sabia o que fazer. Imaginou que Liberato estivesse num tipo
de acesso, um espasmo de loucura. Resolveu ser brusco. Entendeu que esta
seria a única maneira de interromper a histeria do irmão. Num movimento
rápido, passou o braço por trás do pescoço dele e apertou-o com
bastante força. Aproximou-se do seu ouvido e disse em tom baixo, porém
severo: -
Chega, Liberato! Já estão começando a olhar! Cala essa
boca! Liberato nunca tinha ouvido Sérvulo
falar daquela forma, não era dele agir assim. Surtiu efeito. Liberato
paralisou. Sérvulo soltou o irmão e
sentou-se em sua cama, que ficava ao lado, endireitou a gravata e pediu
que Liberato fosse se arrumar, e que se apressasse, pois já era tarde e
Deusodeu estava para chegar. Sem dizer nada, com a sensação de
cabeça vazia, Liberato abriu o guarda-roupa, olhou o vestuário por um
tempo, avaliou, e escolheu um terno. Já de banho tomado e vestido, deu
uma olhada panorâmica pelo ambiente. Assim como Sérvulo, as demais
pessoas, homens, mulheres e crianças, estavam sentadas sobre suas
respectivas camas e, exceto por um ou outro esganiço de criança, logo
abafado pelos pais, reinava o silêncio. Paisagem lúgubre, pessoas
taciturnas. Teve o impulso de voltar a
questionar Sérvulo, mas desistiu, o irmão não lhe dava a mínima
abertura, pelo contrário, desviava o olhar quando Liberato o encarava.
Sentiu que as pessoas o observavam, era o único que ainda estava em pé.
Sentou-se e, mesmo sem saber pelo quê, resolveu esperar. Passados alguns minutos, houve um
burburinho no ar, agitaram-se as pessoas. Viu-se um homem alto de cabelos
negros entrar pelo arco. Não era nem gordo nem magro, tinha a pele alva,
e vestia um conjunto cáqui tipo safari. -
Aí vem Deusodeu - disse Sérvulo. Deusodeu andava como que em um
desfile militar, impávido, indiferente aos que o fitavam. Fazia apenas
pequenas paradas diante de cada leito, para pronunciar o nome da pessoa
que ali estava e entregar-lhe um papel. Tinha as mãos firmes, os dedos
longos e as unhas perfeitamente cuidadas. Liberato analisava cada
movimento, procurando achar um sentido. Assim que pegavam o papel, as
pessoas liam as primeiras linhas ansiosamente. Alguns saíam apressados,
outros sentavam-se de volta e colocavam-se indiferentes, passivos,
inertes. Não tardou para Deusodeu
distribuir os papéis correspondentes a Liberato e Sérvulo. O olhar
desafiador de Liberato fixou-se no rosto branco feito cera de Deusodeu.
Quando este se afastou, ele não pôde mais resistir, perguntou ao irmão
quem era aquele homem, que papel era aquele que estava recebendo, e para
que servia. Sérvulo
permaneceu quieto enquanto lia o texto que recebera. Quando se levantou
para sair, respondeu impacientemente: -
Deixe de graça e cumpra o seu papel de hoje. Partiu deixando o irmão pasmado.
“Cumprir o meu papel de hoje”, repetiu Liberato diversas vezes para si
mesmo. Não tardou mais do que quinze
minutos para que todos naquele galpão tivessem recebido de Deusodeu o
respectivo papel. A grande maioria já tinha saído quando Liberato
resolveu ler o seu. “Liberato, este é seu papel para
22 de março”, era o que vinha escrito na primeira linha do texto.
Aflito, Liberato deu apenas uma passada de olhos sobre o conteúdo,
retendo-se em frases intercaladas. Compreendeu que se tratava de uma série
de orientações, dirigidas especificamente a ele, com ações expressas
sempre no imperativo. Voltou ao início. “Aguarde até as nove da manhã.
Apanhe o utilitário que vai até o Parque das Fontes.
No parque, pare na lanchonete. Será abordado por uma moça.
Chama-se Júlia…”. Liberato parou a leitura e olhou
para os lados, no fundo, tinha a esperança de que alguém o estivesse
observando escondido, esperando o momento de sair da toca, e, quando fosse
a hora, viria rindo-se esclarecer que tudo aquilo era uma peça que lhe
estavam pregando, que não passava de uma grande brincadeira. Mas não
parecia ser. No final do papel havia uma
assinatura, a de Deusodeu - “Impositor do Sítio 4256”. Aguardar até as nove?… Aguardar,
ir ao Parque das Fontes, encontrar uma tal Júlia, estabelecer contato
promissor… Contato promissor para romance?… Ir para a agência, entrar
quinze minutos antes, falar com o chefe, aceitar a proposta de jornada…
Aceitar aumentar a jornada pelo mesmo salário?… Não, eu já tinha dito
que não… Aceitar… Entregar tudo conforme cronograma… Parque das
Fontes, Júlia, estabelecer contato promissor? Liberato lia e relia o papel,
afundava-se numa profusão de pensamentos, observava os que estavam
sentados nos outros leitos, olhava o relógio, esperava as nove. No seu íntimo,
achava que não deveria esperar nada, mas o que fazer? Deu nove. Ao sair do galpão,
prestou atenção na inscrição que havia do lado de fora, à esquerda do
grande arco de entrada: “Sítio 4256”. Notou que todos os outros galpões
também eram identificados como “Sítios”. A cada Sítio, correspondia
um número, enorme, prateado. Nove horas, o que fazer? O papel
diz para pegar um utilitário. Por que não vou de trem? Como saber qual
dessas peruas brancas poderá me levar ao Parque das Fontes? Um dos utilitários parou à sua
frente e um sujeito abriu-lhe a porta. Sem pensar, Liberato entrou. O
carro seguiu caminho. Durante o percurso, a paisagem ocupada por galpões
foi lentamente sendo substituída por outra. Prédios baixos e envidraçados
enfileiravam-se pelas ruas do comércio. De certa forma, Liberato sentia
familiaridade com os lugares por onde passava, era como se, em uma casa,
tivessem trocado apenas os móveis. Mais duas pessoas subiram no carro
antes de ele chegar ao destino e, meia hora depois de ter deixado o galpão,
ou melhor, o Sítio, Liberato chegou à entrada principal do parque. Andando pelo arvoredo, a caminho da
lanchonete, tentava lembrar como tinha sido o dia anterior. Puxou pela memória,
vasculhou os recônditos do seu cérebro, e nenhuma das suas lembranças
se passava nos cenários que vinha enxergando desde que acordara naquela
manhã. Recordava-se perfeitamente de quase tudo. Um dia típico: café da
manhã, noticiário, um pouco de estudo, almoço, meio-dia no relógio, e
trabalho até as seis. Enquanto pensava, sentou-se num dos
tamboretes em frente ao balcão da lanchonete. Refresco. Queria um refresco. Pediu
um de uva. Distraiu-se olhando para um grande
relógio pendurado na parede ao fundo. Marcava quase dez horas do dia 22
de março. -
Este parque é um ótimo lugar para se encontrar pessoas
interessantes – disse uma voz feminina atrás dele – posso me sentar
aqui? Liberato assustou-se ao ver a moça.
Até aquele momento, mantivera a esperança de que nenhuma mulher fosse
aparecer e que a linearidade dos fatos fosse quebrada, trazendo uma nova
possibilidade. Assentiu com um murmúrio,
indicando a cadeira ao seu lado. Seria ela a moça do papel? Contato para
romance futuro… E se não fosse? -
Prazer, meu nome é Júlia. Um arrepio percorreu a espinha de
Liberato, teve vontade de sair dali, fugir, gritar, mas ficou mudo. Júlia começou com uma conversa
banal, tentando aproximar-se. Nitidamente buscava quebrar barreiras e
aumentar a intimidade entre eles, no entanto, ela não obtinha respostas,
Liberato ficava quieto, não se manifestava. Isso começou a provocar uma
leve tensão no encontro. Júlia claramente não estava preparada para
aquele tipo de reação, a ansiedade foi crescendo até que, em seu ápice,
houve uma pausa. Ela procurando formas de manter-se fiel ao papel, e ele,
incrédulo. De repente, Liberato sacou seu papel do bolso e esticou-o
sobre o balcão. -
Onde está o seu? Deixe-me ver – pediu ele. Júlia ficou estarrecida, arregalou
os olhos e, pela primeira vez, pareceu perder-se do seu propósito de
seguir rigidamente as orientações do seu papel. Era justamente esta a intenção de
Liberato, obter uma brecha, quebrar a cena, conseguir falar com alguém. -
O que você está fazendo? – perguntou Júlia abobalhada. -
O que você está
fazendo, moça? Pelo amor de Deus, me explique o que é isso! O que
significa este papel? Por que eu o recebi? Por que você também tem um?
Por que você está fazendo o que está escrito nele?
-
Você é louco! Você é louco! – gritou Júlia. Ela
levantou-se energicamente e deixou o lugar correndo, assustada, como quem
vira um fantasma. Ele ainda fez menção de detê-la,
mas concluiu que seria inútil. Sob o olhar atento e curioso da balconista
da lanchonete - assim chamada porque seria um exagero dizer garçonete -
pagou pelo refresco e saiu. E agora? E se as coisas não forem
feitas de acordo com o papel? O que acontece? Segundo as determinações do seu
papel, Liberato teria de chegar à agência onde trabalhava um pouco antes
do horário, para discutir com seu chefe a questão da jornada de
trabalho. Irritou-se com o fato, já tinha
dito que não aceitaria. Aumentar o trabalho ganhando o mesmo? Pensam que
sou idiota? Ficou remoendo enquanto caminhava. De repente, caiu em si, não fazia
sentido discutir se era correto ou não o aumento de jornada, o fato
absurdo, e que deveria movê-lo, era tudo isso estar pré-definido num
papel, como se ele fosse uma marionete. Resolveu que faria tudo diferente,
não iria aceitar. Para começar, em vez de chegar
quinze minutos antes, apareceu na agência vinte depois. Encontrou o chefe
já desesperado, tentando recuperar o tempo perdido, nem teve de dar
explicações sobre o atraso. O chefe foi curto e grosso no assunto em
pauta, queria logo arranjar o começo do novo horário para a próxima
semana. Mesmo depois de receber a negativa de Liberato, ele pareceu não
ter entendido, e continuou a ladainha sobre as formalizações
trabalhistas necessárias. -
Você não entendeu, não vou assinar nada! – Liberato
interrompeu rispidamente, com olhar desafiador. – O que diz o seu papel
para esta situação? Ele prevê alguma coisa? O chefe engoliu seco e recolheu a
documentação de sobre a mesa. Aguardou por um instante na esperança de
que Liberato recuasse, mas, como nada aconteceu, deixou a sala sem dizer
uma palavra. O resto da tarde, Liberato passou
perambulando pelas ruas. Pensou muito. Ao anoitecer, voltou para o Sítio.
As pessoas preparavam-se para
deitar. Quase ninguém conversava, a não ser por uma ou outra indicação
trivial, do tipo “pode ir tomar banho que eu já acabei”. Quando
Liberato aproximou-se de sua cama, Sérvulo o recebeu afoitamente,
pegou-lhe o braço com firmeza e saíram pelo corredor. Feito criança
desorientada, sendo arrastada pelo pai, Liberato acompanhou os passos
apressados do irmão, muitas vezes perdendo o compasso. Do lado de fora,
seguiram para um canto escuro, entre a parede do galpão e um arbusto. Sérvulo
ficou por uns minutos andando em círculos, respirando fundo e esfregando
as mãos, pensando em como dizer o que queria. -
Eles estiveram aqui, Liberato! O que deu em você? Ficou
louco? – perguntou Sérvulo, para introduzir a conversa. Liberato não soube o que dizer. Sérvulo apressou-se em explicar
que não poderiam ficar naquela situação imprevista e imprópria por
muito tempo, precisavam voltar logo para a cama. Só estavam ali porque o
próprio Deusodeu, num gesto condescendente, havia sugerido que ele
aconselhasse o irmão. Explicou que a moça, a tal Júlia, e o chefe da agência
haviam relatado o ocorrido ao Conselho de Impositores. O Conselho havia se
reunido para decidir sobre como reagir ao comportamento estranho de
Liberato e, segundo Sérvulo, graças a benevolência de Deusodeu,
resolveram dar-lhe mais uma oportunidade. -
Eu estou mesmo me sentindo como se estivesse louco! Mas, por
favor, Sérvulo, me ajude a entender o que aconteceu – rogou Liberato. -
Eu fiquei pensando. Até ontem tudo era normal, nós não estávamos
aqui! -
Pare com isso, Liberato, pelo amor de Deus! – disse Sérvulo,
abrindo os braços e gesticulando muito. – O que você quer dizer com
“não estávamos aqui”? Você acordou aqui, comigo, esperou a hora de
sair, como sempre, foi trabalhar, conversou com seu chefe. Foi tudo
normal! Deusodeu me confirmou que tudo ocorreu dentro do esperado. -
Quer dizer que ontem eu estava aqui, com você? -
Claro! Absolutamente normal! Dentro do esperado! Tudo
encaixado! Por um momento Liberato ficou
digerindo as palavras. “Impossível”, concluiu enfático. Como poderia
viver tendo seus dias pré-determinados? Não teria mais vontade própria?
Outros definiriam o que era bom para ele? Não podia aceitar a situação
imposta. Tentando acalmá-lo, Sérvulo
procurou um tom mais sereno para a conversa, garantiu que o mal-estar
passaria e pediu que ele colaborasse. Afinal, ele não queria ver Liberato
como todos aqueles que se recusavam a seguir o seu papel, não queria o
irmão internado num manicômio, ou encarcerado num presídio. Buscando
empatia, Sérvulo confessou que ele próprio, às vezes, sentia-se
incomodado com as imposições do dia-a-dia, mas, quando isso acontecia,
procurava a igreja, e, de certa forma, isso o acalmava. Aconselhou
Liberato a procurar o padre. Para Sérvulo, a situação tinha
ficado muito perigosa, por isso implorava ao irmão que se acalmasse.
Avisou que ele seria vigiado o tempo todo, que não poderia cometer mais
nenhum deslize, nenhum vacilo, ou viriam em seu encalço. Frente ao silêncio
do irmão, Sérvulo finalizou a conversa, tinham de voltar e dormir.
Esperava que tudo estivesse compreendido. Passava das oito e, como sempre, as
luzes já tinham sido apagadas. Deitado em sua cama, olhando para o teto
iluminado pela exígua luz que vinha de fora, Liberato voltava a procurar
um sentido para as coisas. Transportou-se de novo para as lembranças do
dia anterior. Repetia mentalmente, várias vezes, passo a passo, tudo o
que havia acontecido, aumentando os detalhes a cada vez. Ficava sempre a
sensação de que faltava um pedaço. Os pensamentos foram ficando longe
e Liberato começou a adormecer, entrou naquele estágio em que não
estamos nem dormindo nem acordados, quando todas as soluções parecem
possíveis, onde a vida parece suave. O sonho misturava-se com a
realidade. De repente, um choque. Seu cérebro
recebeu um estímulo forte. Despertou sobressaltado. O trem! Ao sair do
trabalho, sempre voltava de trem para casa. Não tinha nenhuma lembrança
do que ocorrera depois de ter subido no trem. Estava na estação… o
trem chegou, subiu… E depois? Recapitulou, forçou o pensamento, tudo
era perfeitamente claro, mas dentro do trem a memória se apagava. Liberato sentiu-se agitado.
Fragmentos de imagens começaram a conturbá-lo. Viu-se em pé, dentro do
trem em movimento, olhando pela janela. As ruas, as casas, as árvores, os
postes, as pessoas, mais ruas, prédios, semáforos, muros, painéis. Ele
passava pela paisagem em alta velocidade. Lembrou-se de ter sido tomado
por uma sensação estranha, como se, naquele momento, o trem houvesse
parado e, de repente, ao invés de ele passar pelas coisas, elas é que
passavam por ele. O trem parado e as coisas passando por ele, aumentando a
velocidade vertiginosamente. Depois disso, não se recordava de mais nada,
suas lembranças só recomeçavam no instante em que acordara naquele galpão. Não
compreendia o significado daquilo, mas algo lhe dizia que uma conexão
importante havia sido perdida naquela viagem. Precisava restabelecê-la.
Precisava voltar ao trem. Ao acordar na manhã seguinte,
Liberato viu Sérvulo em frente ao espelho da porta do guarda-roupa,
terminando de se aprontar. -
Já pode ir, preguiçoso. Como é, sente-se melhor hoje? –
perguntou Sérvulo, induzindo o irmão ao ânimo. Liberato deu um meio sorriso,
apanhou o mesmo terno do dia anterior e foi direto para o chuveiro.
Voltou vestido e sentou-se na cama como os demais, para aguardar
Deusodeu. Parecia que a rotina estava introjetada. Em pouco tempo, lá estava Deusodeu
novamente, no mesmo ritual, distribuindo os papéis, intrépido. Ao
entregar o papel a Liberato, Deusodeu tardou-se um pouco mais, lançou-lhe
um olhar ameaçador, um aviso. Propositalmente, sustentou o papel um pouco
mais distante das mãos de Liberato, subjugando-o, de forma que esse fosse
obrigado a estender o braço para pegá-lo. Liberato apanhou o papel e o
Impositor seguiu com a distribuição. Ao cabo de alguns minutos, todos já
sabiam o que fazer, menos Liberato. As orientações recebidas não lhe
davam muita chance de chegar à estação de trem. Lembrou-se do alerta de
Sérvulo. Se fugisse do roteiro, seria apanhado. Precisava arranjar um
jeito de ir até o trem sem que o pegassem. Seu papel determinava o início da
nova jornada de trabalho, deveria entrar às dez, portanto, pela manhã,
teria pouco tempo para tentar alguma coisa. Nesse primeiro dia, porém,
estipulou-se que seu turno se encerraria, excepcionalmente, duas horas
antes. Sob o pretexto da necessidade de adaptação ao novo horário, seu
chefe o dispensaria, possibilitando um providencial passeio ao Parque das
Fontes, onde Liberato encontraria Júlia, e os acontecimentos retomariam o
rumo normal. Depois de ter lido seu papel uma dúzia
de vezes, era exatamente nessa parte, entre a saída do trabalho e a
chagada ao parque, que Liberato enxergava a possibilidade de desviar-se
para a estação. Não sabia de que forma o vigiariam, mas correria o
risco. Planejou que seguiria rigidamente seu papel durante o expediente,
esperaria ser dispensado e pegaria o utilitário até a entrada do parque.
Nessa hora, desviaria o trajeto e sairia correndo. Calculou que teria pelo
menos uns vinte minutos para fazer sua tentativa, antes que a moça a sua
espera resolvesse acionar os Impositores. Assim fez. Seguiu estritamente o
que mandava o figurino. Trabalhou no que tinha de trabalhar, conversou com
as pessoas certas, concordou, aceitou, agiu conforme todos esperavam. Foi
dispensado e saiu. Pegou o utilitário e ligou seu cérebro. Teria de ser
rápido. Desenhou mentalmente o caminho que faria a pé, do parque à estação,
sequer pensou na possibilidade de não adiantar nada voltar ao trem, de
tudo não passar de um devaneio, uma tentativa insana de achar uma saída
para algo que não conseguia explicar. Ao descer do carro, um fato
inesperado. Liberato avistou Deusodeu do outro lado da calçada,
acompanhando seus passos à distância, sem nenhum esforço para
disfarçar. O coração de Liberato ficou
acelerado, teve vários impulsos ao mesmo tempo, sem saber por qual se
decidir. Ficou tão aflito que não pensou mais, disparou numa desabalada
corrida para a estação de trem. Olhou para trás e não viu mais
Deusodeu, não sabia se havia mais alguém com ele e se o estariam
perseguindo. Todos os rostos passaram a ser uma ameaça. Liberato
continuou correndo, como quem corre da morte. Entrou na estação já quase sem fôlego.
Parou um pouco, curvou-se ligeiramente para frente e apoiou as mãos sobre
os joelhos. Enquanto recobrava as forças, mantinha os olhos atentos nas
pessoas que passavam ao seu lado. Em
poucos segundos o trem chegou. Liberato entrou no vagão com passos rápidos
e, assim que a porta se fechou, distinguiu Deusodeu subindo lentamente a
rampa de acesso à plataforma, vinha acompanhado por duas pessoas. Os três homens se aproximavam cada
vez mais, e o trem não partia. Uma angústia tomou conta de Liberato, sua
visão turvou-se, sentiu-se tonto. Ao fundo, além dos três sujeitos que
subiam a rampa, a paisagem começou a se mexer. O trem continuava parado,
a rampa no mesmo lugar, seus perseguidores chegando, mas o cenário ao
fundo ia se movendo cada vez mais rápido. Ruas, galpões, árvores e
postes passando acelerados pelos olhos de Liberato. Nessa vertigem, quando
já via Deusodeu a poucos passos da porta, o trem deu um solavanco e
partiu. Os homens, a plataforma, e o cenário, formaram uma única imagem,
que o comboio foi deixando para trás. Em seguida, as luzes se apagaram. A claridade despertou Liberato.
Lentamente, ele abriu os olhos. Teve vontade de chorar. Dessa vez, os
raios entravam pela janela do seu quarto, sim, ele estava de volta, em sua
casa, rodeado por suas coisas. Levantou-se eufórico. Sentiu a cabeça
pesada. Examinou o que pôde, tocou em vários objetos para certificar-se
de que tudo aquilo era real. Lembrou-se do irmão e chamou por
seu nome. Da cozinha, Sérvulo respondeu-lhe com um resmungo. Liberato
correu até ele e deu-lhe um forte e desesperado abraço. Não conseguiu
mais conter o choro.
-
O que deu em você, Liberato? Liberato nada respondeu, suspirou
profundamente aliviado e sorriu para o irmão. Sem entender muito bem, mas também
sem tempo para explicações, Sérvulo sorriu de volta e limitou-se a
dizer que estava atrasado, saindo com pressa. Por um bom tempo, Liberato caminhou
pela casa e ficou curtindo seus pertences. Queria prolongar a sensação
de alívio que experimentava. Teve a idéia de dar um passeio para
espairecer, pegaria o carro e iria até o Parque das Fontes. Apreciaria
cada centímetro do percurso, um lindo e maravilhoso trajeto, sem galpões,
sem caixotes brancos sobre rodas. Seguiu para lá mergulhado no
prazer. Sentia-se dono de si mesmo novamente. Chegando ao parque, decidiu passar
pela lanchonete, queria o suco de uva que não pudera tomar naquele dia
inexplicável. Sentou-se no mesmo tamborete e fez o pedido à mesma
balconista. Inesperadamente, uma voz feminina
rompeu o silêncio atrás dele:
-
Este parque é um ótimo lugar para se encontrar pessoas
interessantes. Posso me sentar aqui? Liberato sentiu um terrível
calafrio. Aturdido, olhou para trás. Era Júlia que estava ali. Voltou-se para frente, desesperado,
tentando afugentar o que estava vivendo. Neste instante, avistou o grande
relógio-calendário que estava pendurado na parede da lanchonete. Eram
quase dez horas da manhã, do dia 22 de março. Abril/2002 |