Roda
Dentada Personagens: Rubião Mônica Abelardo (Abel) Cenário: Sala
de um apartamento. Despojado, com poucos móveis. CENA
1 Rubião
está largado no sofá, tem as pernas estiradas sobre uma mesinha de
centro e as mãos entrelaçadas atrás da cabeça, servindo de apoio.
Com os braços assim dobrados, balança levemente os cotovelos para
frente e para trás como se quisesse alçar vôo. Mônica está em pé
olhando pela janela. MÔNICA
(suspirando aliviada) – No
fundo, acho que vou sentir saudade da mamãe. RUBIÃO
– Posso te garantir que ela foi embora contrariada. Se a gente não
insistisse, ela ficaria aqui pra sempre. MÔNICA
(sentindo-se leve) – Aah!…
Saudade a gente pode matar. Adoro a mamãe, mas eu não via a hora de
sair debaixo das asas dela… de poder começar a voar sozinha. RUBIÃO
(rindo) – A mãe sabia
disso! Por isso ela deixou comigo a responsabilidade de cuidar de você,
e foi vigiar o pai, que na cabeça dela precisa muito mais de cuidado!
Acho que, pra ela, o maior sofrimento mesmo, foi ter ido sem conhecer a
pessoa que vai dividir o apartamento com a gente. MÔNICA
– Nem fala! Ela quase muda a passagem só pra esperar esse seu colega
chegar. Você não deveria ter dito que ele viria hoje! RUBIÃO
– Coincidiu! Quando comprei a passagem pensei que ele fosse demorar
mais pra vir. MÔNICA
– Quem é o cara mesmo? RUBIÃO
– Ele é amigo do Mosaico… lá da faculdade! Eu só vi uma vez…
acho! Os
dois ficam em silêncio por alguns instantes. Mônica admira-se no
espelho que há na parede lateral da sala. É um espelho de corpo
inteiro. Olha-se de perfil, encolhe a barriga, empina a bunda. MÔNICA
(um pouco aflita) – Você
acha que eu engordei? Meu Deus, minha barriga!… Preciso cuidar do
quadril… será que está com mais de 90? Rubião
levanta-se e dá um abraço em Mônica. RUBIÃO
(com doçura, tentando acalmá-la)
– Você mediu ontem! Pare de se preocupar! MÔNICA
(sorrindo e reconfortada) –
Olha só quem fala!… Está uma pilha! RUBIÃO
(soltando a irmã) – É…
um pouco ansioso. Primeiro dia de trabalho. (pensativo)
Tem tanta coisa que eu quero fazer… aprender. Quero deslanchar. (rápido)
Chega de aulas, estágios… quero pôr em prática. (pára
por um instante) Ontem eu li uma reportagem sobre um desses gurus da
Administração, e fiquei imaginando... É impressionante como esses
caras conseguem mudar as coisas… virar a mesa… Mônica
volta a analisar sua imagem no espelho. MÔNICA
– Amanhã você começa no trabalho e eu vou fazer outro teste! Outra
agência... (Respira fundo
buscando coragem e volta-se para o espelho. Insegura) Você acha que
eu tenho o rosto bonito? RUBIÃO
– Calma… Por que não sai um pouco pra espairecer? Você é linda! MÔNICA
(num muxoxo) – Ah, sua opinião
não vale, você é irmão! (radiante)
Devo parecer boba, mas é que pra mim ser modelo é tudo… não dá nem
pra explicar! (alisa os cabelos
com as mãos, pensativa) Você tem razão! Vou fazer uma caminhada!
Pra queimar… Mônica
dá um beijo no rosto do irmão e sai decidida, como se tudo fosse inadiável.
Rubião larga-se sobre o sofá, estica as pernas e entrelaça as mãos
sobre a barriga. Fica pensativo. O tempo passa. Toca a campainha e Rubião
vai atender. À porta, surge Abelardo com uma mala na mão. RUBIÃO
(na dúvida) – Abelardo? ABEL
– Eu mesmo! (aperta a mão de
Rubião, olhando-o fixamente) Abelardo! Mas pode me chamar de Abel,
é assim que todo o mundo me chama (observa
a sala atentamente). RUBIÃO
(abre caminho para que o outro
entre) – Que bom, Abel! Eu sou o Rubião! Que bom que você
chegou! Entra! Chegou agora? Claro que chegou agora! Pergunta besta!
Senta aí! ABEL
(permanecendo em pé e olhando
para tudo) – Não se preocupe, estou bem assim. RUBIÃO
– Então vem comigo, eu vou mostrar o seu quarto… (estacando)
quer dizer… acabe de chegar primeiro, não tem pressa! (faz pequena pausa e esfrega as mãos) Bom… Acho que o Mosaico
deve ter te falado. Eu moro aqui com minha irmã e… a gente precisava
de alguém e… bom, sem formalidades, é muito legal você estar aqui
agora… pra dividir as coisas… e eu acho que vai dar certo. ABEL
– Claro que vai. Já gostei daqui, de cara. RUBIÃO
– Tem um quarto só pra você, é o primeiro do corredor. Eu vou te
dar uma cópia da chave da porta daqui da sala, pra você poder entrar e
sair quando quiser. A gente não tem muito problema com horário, só
maneirar um pouco com o barulho, claro. É que a partir de amanhã vou
começar a acordar cedo e a Mônica… (explicando)
a Mônica é minha irmã… ela às vezes também precisa madrugar e…
Ah! Só tem um probleminha… com relação ao banheiro! A Mônica é
modelo… e o banheiro… bom, a verdade é que ela precisa de um
banheiro só pra ela, pra se arrumar, maquiar… e pra nós sobra o dos
fundos. Acho que tudo bem, né? ABEL
– Não esquenta com isso agora, eu só preciso de um canto, depois eu
vou me acertando. RUBIÃO
– Claro… é que eu fiquei meio responsável pela Mônica, então
gostaria de manter um certo espaço pra ela, entendeu? É que o pessoal
lá de casa… de casa só, não… na verdade, o pessoal do bairro
inteiro, está na maior expectativa! A Mônica é muito bonita. Sempre
foi a mais bonita… Da escola, do clube, do bairro, acho que até da
cidade… ABEL
– O quarto é o primeiro do corredor? RUBIÃO
– Isso, aquela porta ali!… Quer ir se ajeitando? Vamos lá que eu te
mostro! Abel
pega a mala e os dois dirigem-se para o quarto. Um tempo depois, chega Mônica
e joga-se no sofá. Voltam
Rubião e Abel. RUBIÃO
(ao avistar a irmã) – Ah,
Abel, esta aqui é a minha irmã. Rubião
abre caminho para o outro passar à frente, Mônica levanta-se. MÔNICA
(cumprimentando Abel com um beijo
no rosto) – Oi!… Mônica! Tudo bem? ABEL
– Oi Mônica. RUBIÃO
– Mônica, esse é o Abelardo, mas ele gosta de ser chamado de Abel. Já
mostrei o quarto dele e ele já está se arrumando por aí… MÔNICA
– Seja bem-vindo, Abel! Acho que você vai gostar de morar com a
gente! (faz pequena pausa. Estica
o corpo espreguiçando-se) Ah… Andei pra caramba! Quando percebi já
estava escuro! Vim correndo. RUBIÃO
- Olhei na cozinha, não tem quase nada pro café da manhã. A
gente vai ter de se virar com uns biscoitos. (Para
Mônica) Você bem que podia comprar algumas coisas amanhã. ABEL
(querendo se entrosar) –
Esses dias aprendi uma receita ótima de panqueca com geléia, se você
comprar os ingredientes, eu te passo! É super fácil de fazer! MÔNICA
(caçoando) – Isso quer
dizer que você já me escalou pra fazer as panquecas… ABEL
(achando graça) – Bom, eu
estou chegando agora, não sei qual dos dois é o cozinheiro. MÔNICA
(dando-se por vencida) – Tá
bom, tá bom. Vocês dois, anotem num papel o que precisam... amanhã eu
vejo! RUBIÃO
(espreguiçando-se e bocejando)
– Acho que vou pro meu canto! Quero ver se consigo dormir cedo! Não
quero me atrasar! (para Mônica)
E você? MÔNICA
– É… também vou… (para
Abel) Você vai ficar aqui na sala?… (brincando,
ainda meio sem jeito) Não precisa acordar cedo, é? ABEL
(sorrindo) – É… por
enquanto… RUBIÃO
– Ele me disse que trancou a matrícula pra vir pra cá… e o
trabalho… quando começa mesmo, Abel? ABEL
– Ainda não sei direito, falta acertar algumas coisas… MÔNICA
– Vida boa, hein?… (juntando-se
ao irmão) Então vamos. (para
Abel) Não esqueça o abajur!… ABEL
– Tudo bem. Vou dar só mais um tempinho por aqui. Posso usar o
telefone? RUBIÃO
– Claro! Abel
senta-se folgadamente no sofá e coloca os pés sobre a mesinha de
centro. ABEL
(já pegando o telefone e discando
o número) – É interurbano, tudo bem? RUBIÃO
(hesitante) – Fique a
vontade. Rubião
e Mônica deixam a sala. ABEL
(enquanto aguarda a chamada,
aumentando o tom de voz para poder ser ouvido pelos que saíram) –
Ouvi dizer que vai chover muito nessa madrugada, se não quiserem se
atrasar, é melhor acordarem mais cedo. CENA
2 (6 meses depois) Abel
está sentado na sala, lendo jornal e comendo amendoins. Entra Mônica. MÔNICA
(deprimida) – Oi, Abel.
Posso ficar um pouco com você? ABEL
– Oi, senta aqui. Por que essa tristeza? MÔNICA
- Estou deprimida, hoje foi pior!… Eram umas 200 meninas pra fazer o
teste! Olha só! (gesticula
fazendo menção ao corpo) Me produzi inteira. Cuidei de cada fio de
cabelo. E nada! ABEL
(abraçando Mônica de lado)
– Está se sentindo pra baixo, é? MÔNICA
(desanimada) – Pois é…
você já está aqui com a gente há quanto tempo? Uns seis meses?… De
lá pra cá, já perdi a conta de quantas vezes fui reprovada… ABEL
– Uma hora você vai conseguir… (pensa
um pouco antes de falar) Posso te dizer uma coisa? MÔNICA
(baixinho) – Fala. ABEL
– Acho que você precisa aprender a se sobressair. MÔNICA
– Como assim? ABEL
- Quer ver?… Aposto que, lá, você ficou esperando num canto,
apagadinha, não ficou? MÔNICA
(relutante) – É, mais ou
menos. ABEL
– Não falei? Nessas horas, você precisa desfilar de um lado pro
outro, pra ver se alguém importante te descobre. Tem de fazer cena,
aparecer, sei lá!… MÔNICA
- Mas é meu jeito, eu não consigo ser assim. ABEL
– Mas você tem de ser
assim. Você precisa entender que é isso que eles esperam de você. E
se você quer aparecer, o que importa para eles é o que deve importar
para você. MÔNICA
– Não sei direito o que fazer. ABEL
– Sabe sim. Acho que você só precisa esquecer um pouco os pudores. MÔNICA
(com raiva) – Não
consigo!… ABEL
– Na próxima vai ser melhor. MÔNICA
(pensativa) – Acho que você
tem razão, não estou brilhando para quem deveria. Eles disseram que
sou bonitinha, mas que não era o que precisavam. Droga!… Um olheiro
que estava por lá veio falar comigo, mas só ficou de conversa mole… ABEL
– Olheiro?… MÔNICA
– É, eles ficam circulando pelos lugares… testes, desfiles… pra
caçar talentos. (desanimada)
Mas esse aí, acho que só queria me comer! ABEL
- Vai ver ele estava sondando. Tudo bem, estica o papo, vê no que dá. MÔNICA
(reflexiva, mais para si) –
O nome dele era Roger. Deixou o número do telefone… (para
Abel) É muita gente disputando… ABEL
– É, é muita gente mesmo… Mas eu tenho certeza que com você vai
ser diferente. Fama e sucesso… quem me dera!… Mas pra você eles vão
chegar… certeza! MÔNICA
(tentando reanimar-se, tornando-se
ansiosa) – É isso! Preciso mudar! Não vou desistir. Vou fazer um
book novo, vou malhar mais, vou… não sei, vou fazer alguma coisa!
Preciso estar em mais lugares, fazer mais contatos! ABEL
(encantado com o que ouve) –
Assim é que se fala, Mônica! Pensa lá na frente! Se imagina famosa,
entendeu?… Pensa grande… Breve
pausa. MÔNICA
(aliviando-se) – Ah!…
muito bom te ouvir. Estava me sentindo fútil… Mônica
e Abel ficam calados por um tempo. MÔNICA
– E você, Abel? ABEL
– O que é que tem eu? MÔNICA
– Como é que vão as coisas? ABEL
– Tudo bem. Comigo tudo sempre vai indo. MÔNICA
– Engraçado, Abel, você não fala quase nada sobre você. ABEL
– Não tem muito pra falar. MÔNICA
(carinhosamente maliciosa) –
Huum!… Ultimamente tenho atendido umas ligações… voz de mulher,
procurando por você. Não quer falar dela? Eu não vou conhecer? ABEL
(caçoando) – Conhecer? Não…
acho que não. É que não é nada sério, não é bem um namoro. MÔNICA
(remedando) – Não é bem um
namoro… Sempre começa assim. (curiosa)
Ela é bonita? Traz ela aqui um dia! ABEL
(hesitante) – Não, é
que… Ela é mais velha e… nem que eu quisesse, ela nunca viria aqui. MÔNICA
– Por quê? ABEL
(meio sem graça) – Ela é…
gente de grana, entende? É um outro lance, Mônica, deixa pra lá! MÔNICA
– Acho que entendi. Tá bom, não quer falar, não fala. Breve
pausa. ABEL
– Mas tem uma coisa que eu queria falar. MÔNICA
– O quê? ABEL
– O Rubião reclamou de alguma coisa? De mim? MÔNICA
– Pra mim? ABEL
– É! Ele se queixou de alguma coisa? MÔNICA
– Não, por quê? ABEL
– Não sei, está meio estranho comigo. MÔNICA
– É, tenho percebido ele diferente sim, mas acho que não é nada com
você. Abel
deita-se espaçosamente no sofá. ABEL
– Se ele te disser alguma coisa, você me conta? Acho que me entendo
melhor com você. MÔNICA
– Claro… mas esquece isso, é coisa dele. Abel
retoma o jornal. Após momento de silêncio, Mônica deixa a sala. CENA
3 (2 meses depois) Abelardo
está em pé. Entra Rubião aparentando desânimo. O breve silêncio
cria um ligeiro mal-estar. ABEL
(tentando aproximar-se) –
Aconteceu alguma coisa? RUBIÃO
(com voz cansada) – Nada
especial. ABEL
(procurando ser simpático)
– Parece desanimado… Chateado? Espero que não seja nada comigo. RUBIÃO
(em dúvida) – Não… acho
que não… não é nada com você. Não tenho por que estar chateado
com você. Ou tenho? ABEL
– Pelo menos, eu acho que nunca dei motivo. Rubião
pensa um pouco, procura não transparecer a incompatibilidade. RUBIÃO
(direto) – Abel! Você e a Mônica…
não têm nada um com o outro, têm? ABEL
(surpreso) – Como assim? RUBIÃO
– Eu quero saber se… Vocês
por acaso estão namorando?… ABEL
(tranqüilo) – Claro que não…
(animado) Bom, pra ser
sincero, no começo, logo que eu vi aquela maravilha… (Abel
fica meio sem graça diante da possível reação de Rubião) Desculpa,
Rubião, mas a Mônica é… ela é um mulherão, você sabe. No começo,
eu até pensei que pudesse rolar… mas nunca rolou nada. Ainda bem.
Teria estragado. É que depois de um tempo elas começam a cobrar um
monte de coisas… e eu ia acabar tendo de sair daqui…Melhor assim. RUBIÃO
– Vocês conversam muito, né? ABEL
– É! Acaba sendo uma troca… Pequena
pausa. RUBIÃO
- A Mônica me disse que você conseguiu trabalho. ABEL
– Então… você viu? Estou dando aulas de alongamento pra mulherada
aqui do prédio. Aí embaixo, no salão. De segunda e quarta de manhã. RUBIÃO
– Só dois dias? ABEL
– Por enquanto é o que dá. (Rubião ri ironicamente e desdenha. Fica pensativo) RUBIÃO
(condescendente) - Você está
certo, tenho estado desanimado... (justificando-se)
É o trabalho... Lembra do entusiasmo que eu tinha no começo… pra
fazer as coisas? (desanimado)
Pois é, estou chegando à conclusão de que era tudo bobagem! Ninguém
quer saber de realizar nada! Eu chego no final do dia e não consigo
enxergar nada do que fiz! ABEL
(antagonizando) – É, mas
tem o salário no final do mês, Rubião! Isso dá pra enxergar, ou não
dá?!… Se não dá, cava uma promoção, vai te dar mais ânimo! RUBIÃO
(aborrecido com a resposta) –
Eu não estou falando de ascensão, Abel! ABEL
– Então eu não sei do que a gente está falando. RUBIÃO
– Só estou falando que eu não quero isso! Que eu gostaria de me
sentir bem, usar meu cérebro, fazer alguma coisa criativa… ou pelo
menos útil… e que não fosse… (desanimando-se)
sei lá Abel, esquece, você não vai entender mesmo. ABEL
(um pouco ofendido) –
Realmente, eu não estou entendendo. Mas acho que esse seu jeito só
piora as coisas... RUBIÃO
– Pra você deve ser fácil falar… (baixinho
e com desdém) aula de alongamento! ABEL
– Não sei se é fácil ou difícil, só sei que é assim. Com o tempo
você se acostuma. E tem outra, eu não tenho culpa das coisas serem
assim. RUBIÃO
– Ninguém nunca tem culpa de nada. (pensativo)
Então, pra você, o melhor seria não pensar?... A gente deveria
simplesmente girar a roda. ABEL
– Rubião, eu não sei se a roda tem de girar ou não, mas eu com certeza tenho de me
virar… Isso sim, isso eu aprendi. RUBIÃO
– É… já percebi… Pequena
pausa, aumenta o mal-estar. Abel
dá dois tapinhas no ombro de Rubião e deixa a sala. CENA
4 (6
meses depois) Rubião
está sentado tomando café. Entra Mônica. MÔNICA
(secamente) – Que cara é
essa? RUBIÃO
– Saco cheio! MÔNICA
– De novo? RUBIÃO
– Não, é diferente! Uns seis meses atrás eu achava que estava só
desanimado, que iria passar. Agora, não, agora estou cheio …
Saturado! MÔNICA
– O que aconteceu? RUBIÃO
(irritado) – O trabalho, Mônica,
o de sempre! Tanto tempo… e tudo está me parecendo cada vez mais estúpido!
(irônico) Ah, mas eu trabalho
numa empresa multinacional! (desabafando)
Que merda, me sinto como se estivesse correndo pro nada! MÔNICA
– Calma Rubião. Você tem de cavar seu espaço, aparecer… Logo vai
estar por cima, e vai começar a ver as coisas de um jeito diferente. De
cima a visão é outra! RUBIÃO
– Você está parecendo o Abel falando!... (explosivo)
Aliás, estou cheio dele também! Acho que ele está fazendo você mudar
muito … acho que ele não está sendo nada bom pra você!… MÔNICA
– Para de cismar com ele, Rubião! Ele tem sido muito legal comigo,
aprendi muita coisa graças a ele. Ele só quer ajudar. RUBIÃO
– Ajudar, nada! Ele tem é interesse de manter as coisas como estão!
Ele montou nas nossas costas! Sabe há quanto tempo ele não paga a
parte dele no aluguel? É um sanguessuga! MÔNICA
(nervosa) – Deixa o Abel
fora disso!… Afinal, qual é o seu problema com o trabalho? Eu não
consigo entender! RUBIÃO
– Eu queria fazer do trabalho uma coisa melhor! MÔNICA
– Faça isso então! RUBIÃO
– Ingenuidade! Não há nada pra ser feito! Eles só querem ver
movimento! É tudo trabalho morto! Se o que estamos fazendo tem sentido,
não importa! Ficamos correndo atrás do rabo, chegando mais cedo,
saindo mais tarde... Sabe pra que? Pra justificar o salário! E sabe pra
que o salário? Pra que a gente possa comprar as coisas que eles
produzem. As coisas que eles produzem e que não nos fazem falta… não
precisamos delas. (pequena pausa)
O pior é que estou percebendo que o nosso dia-a-dia não é
diferente disso, vivemos uma farsa! Sem questionar nada, mergulhamos
todos nessa torrente! MÔNICA
– Credo, Rubião, que azedume logo cedo! RUBIÃO
– Ontem eu vi um garoto sentado no meio da calçada, pedia esmola.
Alguém deve ter dito pra ele que tinha um jeito de ganhar mais. Então,
ele passa horas tocando uma mesma música horrível numa velha
sanfoninha! O pobre garoto repete incansavelmente os mesmos movimentos,
movendo seu rosto contorcido de um lado pro outro, como se fosse um
boneco de corda, fazendo aquele som estridente e chato na sanfona! Pra
que? Ninguém quer aquilo! Ninguém precisa daquilo! Mas lhe dão mais
dinheiro. Por quê? Porque ele está trabalhando! Que hipocrisia! MÔNICA
– Você não quer comparar, né? RUBIÃO
– Sabe o que eu tenho feito no meu emprego? Estou gerando um problema!
Pra depois poder vender a solução! Trocando em miúdos, estou tentando
justificar a necessidade de uma porcaria, que, na verdade, é a minha própria
existência! E posso te garantir, não está sendo fácil. Você
consegue imaginar algo mais estúpido do que isso? Os
dois ficam em silêncio por um tempo. MÔNICA
(desligada do que se falava)
– Estou com olheiras? Acho que vou fazer umas compressas com água
gelada pra pôr nos olhos! Tenho um desfile hoje à tarde. É coisa
pequena, no shopping, mas vai ser bom pra aparecer. Não posso chegar lá
com bolsas embaixo dos olhos! RUBIÃO
– Por que você chegou tão tarde esta noite? MÔNICA
– Batalhando… batalhando! Teve um coquetel depois do lançamento da
nova coleção. RUBIÃO
– E acabou tão tarde assim? MÔNICA
– Não! Depois fiquei tratando alguns assuntos com o Roger… RUBIÃO (irritado) - Que Roger, aquele booker?… Que
assuntos? MÔNICA
(impaciente) – Ah, Rubião,
dá um tempo! Vai ficar pegando no meu pé? Eu estou aprendendo a usar
as oportunidades. Tenho interesse em ficar perto do Roger, ele tem
aberto as portas pra mim!… RUBIÃO
(com raiva, perdendo a compostura)
– E você, tem aberto o
que pra ele?… Mônica
encara o irmão com ódio. MÔNICA
– Como você é grosso! Ridículo! Você não está vendo que eu estou
crescendo… Sabia que eu vou começar a fotografar?… já está quase
tudo certo! Eu estou chegando, Rubião… estou chegando! (procurando
ser esnobe) E você?!… Você não me parece tão bem! RUBIÃO
– Claro que não! Porque eu ainda insisto em achar que sou gente, me
nego a ser um zumbi! Agora, você, já não sei mais!… Mônica
vira as costas ofendida e vai embora. CENA
5 (3
meses depois) Abel
ao telefone, andando pela sala. ABEL
(aparentemente carinhoso) –
Então me fala, vai… não adianta, no fim você sempre conta… fica
se coçando por dentro, não agüenta, e acaba contando… (pequena
pausa) Eu sei que era surpresa, mas agora você já começou…conta…
Ah, não! Agora quem está se coçando sou eu, fala logo! (pausa) O quê?… qual?… aquele que eu te mostrei? (pausa)
Comprou pra mim? (fingindo-se
encabulado) Você é louca!… Não era pra ter comprado, eu só
falei que tinha gostado… Entra
Mônica, vinda da rua. ABEL
(atento à entrada de Mônica)
– Claro que eu gostei… não… não é isso, é que eu fico sem graça,
você sabe… (pausa) Claro que é! Nossa, é lindo! (pausa)
Hoje à noite?… (pausa) Como
é que a gente faz? (pausa)
Lembro… sei… (ficando de
costas para Mônica) Eu posso ir de taxi?… (pausa)
Eu sei, mas é que eu acho chato você ter de pagar até o taxi e…
(pausa) Tá bom… (pausa)
Às nove?… Tá… (pausa) Eu
também tô… (sussurrando) Um
beijo… Abel
desliga o telefone e dirige-se a Mônica. ABEL
(entusiasmado) – E a nossa
estrela, como é que está? (beija
o rosto de Mônica) (efusivo)
Ah!…Eu vi as últimas fotos… ficaram ótimas! Parabéns! MÔNICA
(contentando-se) – Gostou
mesmo? ABEL
– Lindas… MÔNICA
– Que bom que você gostou. Deu trabalho… Depois que está pronto,
os outros acham que foi fácil… só eu sei… ABEL
(admirado) – Mas, olha…
valeu o esforço, viu? MÔNICA
(envaidecida) – Obrigada. Pequena
pausa. Abel olha para Mônica, fica rodeando, faz cena. ABEL
(solene) – Mônica…
aproveitando que a gente está sozinho, eu queria te dizer uma coisa…
faz tempo que eu não toco no assunto, você quase não pára mais aqui,
mas eu queria te dizer que… aquele dinheiro que você me emprestou, eu
não esqueci não… MÔNICA
(mostrando-se indiferente) –
Imagina, Abel, eu sei disso! ABEL
– É que pode parecer que eu estou… MÔNICA
– Não parece nada! ABEL
– Eu não quero que você pense que eu estou abusando. Eu estou
arrumando um jeito de juntar a grana… acho que mês que vem eu já vou
ter como te devolver o dinheiro. MÔNICA
– Eu sei, não se preocupe... (pára,
um pouco pensativa) Só não comenta nada com o Rubião, é que… ABEL
– Lógico que não. MÔNICA
– É que ele está… (pensativa
e intrigada) ele não me disse nada… mas eu acho que tem alguma
coisa esquisita… ele não tem ido trabalhar… ABEL
– Eu percebi… será que ele deixou o emprego? MÔNICA
– Ou foi mandado embora, não sei. Mas é melhor deixar que ele conte. ABEL
- Não vou falar nada. Aliás, a gente quase não se fala mais. Eu bem
que tento, mas tem sido difícil. MÔNICA
(pensativa) – Muito difícil… Pequena
pausa. ABEL
– Sabe o que eu acho?… Acho que você
dá muita satisfação
pro Rubião…
Tá certo, ele é seu irmão mais velho, mas… não sei. Pausa. MÔNICA
– Eu já pensei nisso, acho que você tem razão. ABEL
– Comigo tudo bem, eu já sei… se dependesse dele eu já não
estaria mais aqui. Mas você!?… (encorajando-se)
- Ele é engraçado… vive discursando por aí que está tudo errado,
mas ele só vê as dificuldades dele, a dos outros ele não vê!…
Caramba, a coisa está difícil pra mim também! MÔNICA
– Tá difícil pra todo mundo… ABEL
(mostrando-se angustiado) –
Pois é, tá difícil, caramba, tá difícil… Mas fica tranqüila que
eu não vou te deixar na mão, mês que vem a gente acerta. MÔNICA
(pensativa) – Não esquenta. Pequena
pausa. ABEL
– Ih, não ficou com cara boa. Te deixei chateada? MÔNICA
– Não, não é nada… só estou cansada. ABEL
(beijando a bochecha de Mônica)
– Tá bom, deixa eu tocar a vida! Vou me arrumar, preciso sair hoje à
noite. MÔNICA
– Tá… eu vou descansar um pouco. Abel
e Mônica deixam a sala. CENA
6 (6
meses depois) Entra
Mônica e encontra Rubião com um copo de uísque na mão. MÔNICA
– Bebendo de novo? RUBIÃO
– Estou tenso! MÔNICA
– Você está sóbrio? RUBIÃO
– Claro! É só pra relaxar. MÔNICA
- Eu preciso falar sério com você! RUBIÃO
(tranqüilo) – Bom, pelo
menos alguém quer falar comigo! E não é qualquer uma! É a Mônica
Vaz… MÔNICA
– Pára, não começa! (pausa)
Há meses eu venho pedindo pra você deixar de beber! Não adiantou
nada! Você continua varando as noites, bebendo, arranjando encrenca… RUBIÃO
– Tá bom, tá bom, diga lá minha irmã, o que de tão sério você
tem pra falar com este ser desempregado… este pária… esta sucata! MÔNICA
– Ontem você passou dos limites… Deu um vexame naquele bar! Que
horrível, Rubião, você quase foi preso! E você sabia muito bem que
eu freqüento aquele lugar!… Tinha gente de revista lá! Você não
faz idéia o trabalho que me deu pra evitar uma notinha maldosa. Eu tive
de implorar! RUBIÃO
(sincero) – Me desculpa se
eu fiz você passar vergonha! MÔNICA
– Você tem razão, eu sou a Mônica Vaz, sim, a modelo! Me custou
muito chegar aqui! Tirando fotos, montando books, batendo de agência em
agência, passando por testes… engolindo sapos! Agora é minha vez!
Estou começando a ser reconhecida, mas vou ser muito mais. Eu mereço,
sou mais eu! Chega de ficar deprimida porque não passei no teste! Quero
que todos me reconheçam nas ruas, quero aparecer na televisão!…
Quero estar onde as coisas acontecem! Ter gente importante perto de mim!
RUBIÃO
(inconformado) – Gente
importante?… Você está sendo usada por essa gente… Viraram a sua
cabeça… MÔNICA
– Não me venha com essa história! Eu não sou uma coitadinha que
veio do interior, deslumbrada, e que não sabe o que está fazendo! Pequena
pausa. RUBIÃO
– Não te reconheço mais… Acho que se você parasse, e se olhasse
pelo menos uma vez, também não se reconheceria… Mas você não
enxerga mais nada além de sua imagem no espelho… Entrou numa competição
sem sentido… está competindo com você mesma. Eu queria te ajudar… MÔNICA
(irritada) – Quem disse que
eu quero ajuda?!! Eu não preciso
de ajuda! RUBIÃO
(inconformado) – Você está
se prostituindo!… MÔNICA
(com muita raiva) – Quem
cuida da minha vida sou eu!
Mesmo que eu estivesse me prostituindo, é problema meu! Rubião
fica um tempo em silêncio para diminuir a tensão. RUBIÃO
(cansado) – Você ainda está
envolvida com aquele Roger? MÔNICA
(impaciente) – Eu lá quero
saber de Roger? Pra fazer desfile em shopping? Acorda, Rubião!… Eu já
nem me lembrava dele… o Roger não me serve mais!… Mônica
dá alguns passos impacientemente. MÔNICA
(severa) - Você se perdeu,
Rubião… sem emprego…bêbado!… Onde você quer chegar? RUBIÃO
(impaciente) – Não sei…
Nem sei se é preciso chegar a algum lugar. Mas com certeza não é pra
onde você está indo.... Não quero seguir esse seu caminho. MÔNICA
(nervosa) – Pois é
exatamente disso que eu quero falar! Nossos caminhos ficaram muito
diferentes… Muito diferentes! Eu tentei… (ficando
agoniada) Tive toda a paciência do mundo. Esperei esse tempo todo
pra ver se você melhorava! Sustentei a casa, me calei, respeitei seu
momento…Mas você não quer se acertar! RUBIÃO
(indignado) – Eu não
preciso acertar nada! Não tem nada de errado comigo. MÔNICA
– É, é isso!… Você não quer se acertar, e eu não posso pôr
tudo a perder. Você
continua desempregado e … sua parte já não faz mais falta e... (indecisa)
eu não preciso mais de você… RUBIÃO
– Não precisa mais de mim?
Você está vendo o jeito que você fala? Será que você não percebe?! Mônica
fica quieta, insegura. Abel aparece, percebe o clima e fica sem saber o
que fazer, olhando sem jeito para os dois. Mônica olha para Abel,
respira fundo e ganha coragem. MÔNICA
– Eu vou falar com a mamãe... e ela vai entender!… RUBIÃO
– Falar com a mãe?… MÔNICA
(insegura) – O que eu queria
te pedir Rubião… O que eu quero… Eu quero que você saia do
apartamento… (decidida) A
gente inventa alguma coisa pra contar pra mamãe e você volta pra lá. Pausa. RUBIÃO
(inconformado) – Quer dizer,
que depois desse tempo todo, você quer que eu volte pra casa? (num riso nervoso) É esse papel ridículo que você espera que eu
faça?… (mais nervoso) É
mesmo a minha irmã que está falando? (gritando,
de costas para ela) Você quer que eu vá embora? É isso?… (para
Abel) Isso também foi um conselho seu? (agarrando
Abel pela camisa e gritando na sua cara) São essas coisas que você
pôs na cabeça dela? Isso é idéia sua também?… MÔNICA
(puxando o braço do irmão)
– Pára, Rubião! ABEL
(exaltado, desvencilhando-se de
Rubião) – Me solta! Eu não falei nada! Não sei nem o que está
acontecendo! RUBIÃO
(desnorteado) – Não sabe
mesmo! (para Mônica) E nem
você… Não, não mesmo!… Vocês não fazem nem idéia do que está
acontecendo! Rubião
desmonta sobre o sofá. Em seguida, Mônica senta-se lentamente ao lado
dele. Momento
de silêncio. RUBIÃO
(levanta-se, amargurado) –
Pra mim, chega! Já cansei de brigar, não quero falar mais nada! Vou
sair um pouco… Mais tarde eu arrumo minhas coisas… Vou embora hoje
mesmo!… Façam bom proveito. Abel,
hesitante, deixa a sala. Rubião, lentamente, sai do apartamento. Mônica
faz expressão de dor, desespera-se, põe as mãos sobre o rosto,
dobra-se sobre os joelhos, chora. A
luz vai esmaecendo. FIM
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