ANTÔNIO GONÇALVES DIAS
Foi o primeiro grande poeta do Romantismo brasileiro e o de obra mais perene e consistente. Nasceu em Caxias, MA, em 10 de agosto de 1823 e morreu no naufrágio de ville de Boulogne, no Baixio dos Atins, MA, em 3 de novembro de 1864.

DIES IRAE

Já o mundo corrupto! – a terra ingrata
Frutos de maldição produz somente;
E enquanto os homens ao mercado afluem,
Vazio o templo do Senhor se enluta,
Empoeira-se o altar, e pelas naves,
Gretadas, rotas pela mão do tempo,
De cânticos e preces deslembradas,
A voz de Deus já não reboa imensa!

Tudo porém conserva o manso aspecto:
O sol girando, e na aparência o mesmo,
Do ano as quadras compassado alterna;
E os astros, seus irmãos, gravitam sempre
D’abóbada celeste. A terra é a mesma;
As águas pelos vales se deslizam,
Ou d’alpestres montanhas se despenham
Co’os mesmos sons, co’a mesma queda: as brisas
Inda conversam nos soturnos bosques;
A mulher, a mais bela criatura,
Nas suas próprias perfeições compraz-se,
Como quando, no Éden, as pulcras formas
Pasmou de ver representadas n’água,
E de as ver se ufanou. Inda conserva
O mesmo orgulho e inteligência o homem,
O rei da criação, o deus criado,
De quando vinham, por pedir-lhe os nomes,
Cetáceos, aves e os reptis e aquelas
Criaturas-montanhas, que passaram
Entre Adão e Noé à flor da terra!

Tudo o mesmo se mostra; mas a alma,
Esse mundo interior, esse outro templo,
Onde gravara o próprio Deus seu nome,
Como os templos de pedra, jaz sem lume,
Jaz como o prédio a desfazer-se em ruínas.
Onde um guarda solícito não mora,
E entregue às aves más, que em chilros pregam,
Que ali, na ausência do Senhor imperam.
Da divina bondade cheio o vaso
Já transborda de cólera e justiça
E o largo rio do perdão saudável,
Que mais não corra, empece: Santas águas
Por cuja causa os séculos já viram,
Sem justa punição, ofensas graves;
Que o Senhor consentisse persistirem
Os maus no mal, à espera d’emendá-los;
Que triunfasse a malvadez; e o crime,
Vexando os bons, senhoreasse a terra.

Mas Deus, que fora outrora pai clemente,
Dando começo ao reino da justiça,
Em austero juiz se há convertido.
Como um carro, que vai d’encontro ao abismo,
Perfaz o sol precípite o seu giro,
Indo a tocar a temerosa meta
Prevista dos profetas. Um arcanjo
Como mão robusta inda retém os elos
Da cadeia do tempo, enquanto a outra
Da vida o livro volumoso sela
Com sete brônzeos selos. Deus ofeso
Tira os olhos do mundo, e o mundo há sido!

Quem pudera pintar as discordâncias
Em que labora a natureza! Crescem
Da terra ígneos vapores, sufocando
O que respira, o que tem vida: os montes
Em crateras se rasgam, que vomitam
Fumo e lava incessante; o mar s’empola
E em fúria ardendo, arroja os altos cimos
Cruzados vagalhões, qual se tentara
Sovertê-los; os ventos se contrastam!
Novos prodígios, novos monstros surgem!
O mar se torna em sangue, o sol em fogo,
O Universo em mansão d’aflitas dores,
O homem sofre, blasfema e desespera,
E vendo os mundos desabar precípites,
Um grito solta d’horroroso transe,
Como de nau, que em alto mar s’afunda
E rola os restos n’amplidão das aáguas.
Satisfaz-se o Senhor. Que resta? – o caos,
O horror, a confusão, o vulto enorme
Do tempo, que escurece o fundo abismo,
Onde por todo o sempre jaz cativo;
E da morte o cadáver gigantesco
Quase ocupando a superfície inteira
Dum mar de chumbo, escuro e sem rumores.
Da glória do Senhor um raio apenas,
Fere da morte o rosto macilento
De tudo quanto foi, o quanto existe!



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