"Não
fareis para vós outros ídolos, nem vos levantareis imagem de escultura
nem coluna, nem poreis pedra com figuras na vossa terra, para vos inclinardes
a ela; porque eu sou o SENHOR, vosso Deus" (Levítico 26.1).
Enquanto estacionávamos
nosso carro ao lado do hotel, na cidade do Juazeiro do Norte, observávamos
que apesar das fortes chuvas de janeiro que tinham caído nos últimos
dias, o céu azul-anil com nuvens brancas não tardou em reaparecer
no Cariri cearense. Após o check-in, subimos para o primeiro andar
e, ainda no corredor, caminhando em direção ao nosso apartamento,
pude avistá-la ao longe, branquinha, lá no topo da Serra do Horto:
era a estátua do renomado padre cuja vida estudei nas últimas
quarenta madrugadas. Esse homem foi o motivo de minha esposa e eu termos viajado
615 quilômetros, do Recife até o Juazeiro do Norte, onde passamos
quatro dias pesquisando junto aos seus romeiros e investigando in loco
um pouco mais sobre a vida desse "santo padre do Juazeiro".
Esse sacerdote católico
era de baixa estatura, pele clara, olhos azuis, acompanhado sempre de seu cajado,
usava uma batina preta e um chapéu redondo da mesma cor. "Foi detentor
de um fortíssimo carisma, sobre as massas populares".[1]
Quem é esse homem-ídolo?
Ninguém menos do que o padre Cícero Romão Batista (1844-1934),
mais conhecido por estas paragens como o "Meu Padrinho Padre Cícero",
carinhosamente chamado de Padim Ciço, uma das pessoas que mais
marcaram a história e a vida do povo nordestino.
Juazeiro
do Norte: Santuário da Idolatria ao Padre Cícero
"Viveu menino pobre
às margens do rio salgadinho, cresceu na ribanceira o homem santo de
Cristo. Seu nome percorre veredas no sertão pernambucano, Alagoas, Paraíba,
Sergipe e Bahia. O Ceará exalta o nome do seu filho mais querido. No
altar dos santos divinos é um deus-menino jamais esquecido. E quem é
ele? E quem é ele? É o padre Cícero Romão, do Juazeiro
do Norte, meu padim, sua bênção!". (Trecho da
canção "Deus Menino", Chico Silva).
Localizada a cerca de 540
quilômetros ao sul de Fortaleza, Juazeiro do Norte é a segunda
maior cidade do Ceará, com cerca de 250 mil habitantes. Sustenta-se do
turismo religioso que atrai centenas de milhares de fiéis do "santificado"
Padre Cícero. Durante algumas épocas festivas, a cidade chega
a receber dois milhões de romeiros, vindos de todo o Brasil, e alguns
do exterior, só para ver, fazer um pedido ou adorar esse mito nordestino.
Na residência que
foi do Padim Ciço, hoje transformada em Museu Padre Cícero,
nossa guia turística contou-nos que o pároco costumava relatar
para seus amigos mais íntimos que a cidade do Juazeiro do Norte era santa
e enfeitiçada. Dizia que, caso houvesse uma guerra, um manto cobriria
toda a cidade, deixando-a invisível aos olhos dos inimigos que nunca
conseguiriam atacá-la. Pensei: Puxa, essa coisa de manto deixando objetos
e pessoas invisíveis é típico da série Harry Potter.
Diariamente, igrejas, monumentos,
praças, procissões, novenas, peregrinações e missas
louvam, agradam e idolatram o "Meu Padim Padre Ciço."
Apesar da Igreja Católica
não considerar o Padre Cícero Romão Batista um santo, ela
não censura os milhões de devotos que o consideram um santo homem
de Deus. Baseado nas missas que assisti, posso afirmar que a Igreja Católica
em Juazeiro não apenas apóia, mas incentiva os romeiros a venerarem
o Padrinho. Qualquer político que ousar dizer que o Padre Cícero
não é santo, dificilmente será bem votado na região
do Cariri.
As romarias ao Padre Cícero
são vantajosas para todos. A Igreja Católica, os empresários,
os políticos e todos os setores da sociedade juazeirense são beneficiados
pelo grande fluxo de dinheiro trazido pelos consumidores desse sacerdote que
literalmente abarrotam as ruas e praças dessa cidade.
A imagem do Padim Ciço
é reverenciada e está à venda em cada esquina, seja em
suvenires, fotografias, chaveiros, chapéus, esteiras, chinelos, jarros,
pôsteres, cerâmicas, talhas, bolsas, broches e muitas outras bugigangas.
O artesanato é uma das principais atividades do Juazeiro e também
gira em torno do Padre Cícero. Encontra-se imagens do padre em miniaturas
e até em tamanho natural. Elas estão em pé ao lado das
portas de entrada de centenas de residências e de muitas lojas, sem mencionar
as de cera no Museu Vivo.
Até os telefones
públicos têm um formato de um cajado com um chapéu redondo
preto. Certa noite, durante o jantar, um dos gerentes do hotel nos revelou que
naquele estabelecimento havia sessenta funcionários fixos e quase trinta
porcento deles tinham como seu primeiro nome Cícero ou Cícera.
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Em
Juazeiro do Norte até os telefones públicos lembram o seu
"santo padre".
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O Padre Cícero está
presente em cada recôndito desta cidade, semelhante a O Grande Irmão,
do clássico 1984, de George Orwell, a observar todos os habitantes.
Também vimos algumas
estátuas do Padrinho Ciço espalhadas pela cidade: no alto
da Serra do Horto há uma monumental, toda em concreto, de 25 metros de
altura, sendo 17 metros de estátua e 8 metros de pedestal. Na então
Praça Almirante Alexandrino de Alencar, hoje Praça Padre Cícero,
na região central da cidade, há uma em bronze em tamanho natural
(inaugurada pelo próprio Padre Cícero em 1925).[2] Na frente da
Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, onde o pároco está
sepultado, há mais uma protegida por uma caixa de alvenaria com vidro
na frente. No jardim diante do edifício Balcão SEBRAE há
mais outra em tamanho natural...
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Estátua
do Padre Cícero em bronze, na Praça Padre Cícero.
No quesito de monumento à sua própria pessoa, o Padre Cícero
é o Saparmurad Niazov do Cariri.
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No quesito de quantidade
de monumentos a uma só pessoa, Juazeiro do Norte é a Ashgabat*
brasileira e o Padre Cícero Romão Batista é o Saparmurad
Niazov do Cariri. E no quesito de devoção cega ao seu líder
espiritual, Juazeiro do Norte é a Teerã nordestina.
Vendo a cidade entregue
à idolatria, pudemos sentir um pouquinho do incômodo que o apóstolo
Paulo sentiu ao visitar Atenas (Atos 17.16).
As Romarias
ao Juazeiro do Norte
"Do mundo inteiro vão
pro Juazeiro milhares de romeiros fazer sua oração. Vão
pulsar em fé e ajoelhar aos pés do Padre Cícero Romão.
[...] Meu Padim Ciço, meu Padim Ciço, somos romeiros
pedindo a sua bênção. Meu Padim Ciço, meu
Padim Ciço, somos romeiros sofredores do sertão".
(Trecho da canção "A Bênção do Padre
Cícero", J. Farias e Banda e do poeta compositor João
Caetano).
São várias
as romarias feitas a essa "Meca" nordestina durante o ano, porém
o maior fluxo de romeiros concentra-se nos meses de fevereiro, setembro e novembro.
A grande leva de romeiros chega a Juazeiro de ônibus ou de caminhão
pau-de-arara. Os miseráveis vêm a pé mesmo, pelas estradas
esburacadas, engolindo poeira e sendo escaldados pelo sol quente do sertão.
Durante as romarias, os fiéis alugam "ranchos", que são
pequenos quartos com banheiro em que cabem duas pequenas camas.
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Uma
parte de uma das "salas de promessas". Devotos deixam objetos
como gratidão ao Padrinho por bênçãos alcançadas.
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A quase totalidade dos romeiros
e dos juazeirenses é composta de um povo pobre e economicamente sofrido,
mas que acredita que dias melhores virão e, baseado nessa esperança,
continua vivendo. Esperam um milagre do Padrinho. Muitos deixam tudo o que lhes
resta aos pés do Padre Cícero. "A Casa dos Milagres",
ao lado da Igreja do Perpétuo Socorro, e as "Salas das Promessas"
no Museu Padre Cícero são alguns dos pontos turísticos
da cidade. Lá observei vários objetos e centenas de retratos deixados
pelos devotos como agradecimento por supostas bênçãos alcançadas
através do Padre Cícero Romão.
Muitos foram ao Juazeiro
e decidiram nunca mais retornar para suas casas. Vivem hoje amontoados em barracos
nas periferias dessa cidade, mas felizes por estarem próximos do seu
"santo padre". Muitos humildes retornam para seus lares famintos.
Dentro de suas geladeiras quebradas encontram-se caçarolas vazias,
sobre os fogões a lenha apenas panelas de feijão requentado, e
seus filhos estão desnutridos. Mas no próximo semestre retornarão
ao Juazeiro. São esses fiéis ingênuos que alimentam e enchem
os bolsos daqueles que promovem a "indústria" de Padre Cícero.
A Romaria
a Nossa Senhora das Candeias
"Bendita e louvada
seja a luz que mais alumeia. Valei-me meu Padrinho Ciço e a Mãe
de Deus das Candeias. [...] os romeiros vão chegando e é noite
de lua cheia". (Trecho da canção "Bendita e Louvada
Seja", Clemilda).
Estivemos em Juazeiro durante
as festividades e a romaria de Nossa Senhora das Candeias (também conhecida
como Nossa Senhora da Purificação).
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Uma mulher
coloca temporariamente seu chapéu na cabeça de uma estátua
do Padre Cícero. A outra coloca flores na mão da estátua.
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A tradição
judaica ensina que o filho varão deveria ser levado ao templo quarenta
dias após o seu nascimento. Já a mãe, por ser considerada
impura após o parto, tinha de passar por uma cerimônia de purificação.
Nas procissões católicas, o povo leva candeias ou luzeiros ou
velas acesas para supostamente iluminar esse trajeto de Maria levando Jesus
ao templo.
Na verdade, essa história
de candeias acompanhando a procissão tem sua origem na mitologia romana,
mas foi incorporada à celebração da Purificação
de Maria pelo Papa Gelásio I (que foi papa de 492 a 496).
A mitologia romana relata
que Proserpina, filha de Ceres, foi raptada por Plutão para ser sua companheira
no império dos mortos (inferno). O povo romano da Antigüidade recordava
essa cena levando luzeiros para supostamente acompanhar o sofrimento da Mãe
Ceres até às portas do inferno.
O dia de Nossa Senhora das
Candeias é apenas mais uma festividade pagã adotada pela Igreja
Católica Romana. Outros chamados "dias santos" para os católicos
também têm origens pagãs, a saber: "o dia de todos
os santos" e o de "finados", entre outros. Mas isso é
uma outra história. Voltemos ao Padre Cícero, do Juazeiro.
Em se tratando do Juazeiro
do Norte, independente do santo ou da santa conduzidos no andor, o grande homenageado
acaba sempre sendo o "Meu Padim Padre Ciço".
Aos Pés
da Estátua no Alto do Horto
"Olha lá, no
Alto do Horto! Ele está vivo, Padim não está morto!
Olha lá, no Alto do Horto! Ele está vivo, Padim não
está morto! Viva meu Padim, Viva meu Padim, Ciço
Romão". (Trecho da canção "Viva Meu Padim",
Luiz Gonzaga).
Enquanto nos aproximávamos
do início da ladeira do Horto, notamos que no cume da montanha pequenos
raios surgiam com certa freqüência próximos à estátua
mais famosa do Padre Cícero (no Brasil, apenas a do Cristo Redentor,
no Rio de Janeiro, é mais alta do que ela).
"Que coisa estranha!
E nem está chovendo!", comentei com minha esposa.
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O
autor subindo a Serra do Horto. Ao fundo a maior estátua do Padre
Cícero (dizem que no Brasil só é menor que a do Cristo
Redentor).
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Ao chegarmos ao estacionamento
do topo, fomos rapidamente cercados por vendedores de fogos. Observamos que
o que pensávamos ser raios, eram na verdade fogos:
"O senhor tem de
soltar seis fogos antes de fazer seu pedido ao santo e mais seis quando estiver
indo embora", falou-me um entusiasmado vendedor enquanto nos mostrava alguns
rojões de fogos.
"Não obrigado",
disse rapidamente.
"Se o senhor desejar
ou se tiver medo, pode comprar e eu solto os fogos pelo senhor. No momento dos
estouros dos fogos o senhor pensa nos seus pedidos", disse-me um outro
solícito vendedor.
"Não precisa.
Não quero. Muito obrigado", repliquei enquanto subia a rampa de
acesso à estátua.
Algumas pessoas trajavam
batinas pretas semelhantes às do Padre Cícero. Perguntei a uma
delas se fazia parte de algum movimento eclesiástico ou de alguma seita.
Ela me olhou estranhamente e disse que estava apenas pagando promessa.
Muitas barracas vendendo
vários suvenires estavam nos dois lados da rampa que ia lotando de romeiros
à medida que progredíamos. Em muitas delas eram vendidos CDs e
fitas cassetes piratas com músicas de romarias e benditos, além
de blusas e artesanato. O som alto das músicas, os gritos dos vendedores,
o cheiro forte de frituras e rapaduras permeavam a rampa e davam um toque bem
regional.
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Aos
pés da estátua do Padre Cícero. Fiéis dando
três voltinhas ao redor do cajado da estátua.
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Subimos os degraus e nos
posicionamos aos pés da estátua que estava lotada de romeiros.
Pessoas demonstravam sua devoção: algumas senhoras se esfregavam
com as costas na parte inferior da estátua pedindo que o Padim
curasse suas dores lombares. Outras suspendiam seus bebês em direção
à estátua e os forçavam para que a beijassem. Muitos escreviam
seus nomes na estátua enquanto choravam. Alguns rezavam ou cantavam cânticos
de louvores ao Padrinho. Entre o cajado e a batina do Padre há um espaço
que dá para passar uma pessoa de cada vez. O romeiro emocionado dá
três voltas em torno do cajado enquanto faz seu pedido (havia uma fila
enorme esperando para realizar esse ritual).
Imaginei Moisés retornando
do Monte Sinai com as tábuas dos Dez Mandamentos e vendo o povo adorando
um bezerro de ouro. Aquela multidão em Juazeiro e aquele povo de Israel
no deserto estavam tão próximos de Deus e simultaneamente tão
longe dEle. Tinham a Luz ao seu alcance, mas optaram por rituais das trevas.
Ali, aos pés da estátua
não me contive e chorei discretamente para que ninguém percebesse.
Enquanto isso, alguns metros adiante, havia um palanque armado onde um sacerdote
católico com chapéu de palha (para se identificar melhor com os
romeiros) fazia algumas colocações absurdas comparando o Padre
Ciço com Jesus Cristo.
Dei a volta por trás
do palanque e adentrei o Museu Vivo onde existem algumas imagens do Padim
em cera, em tamanho natural, retratando cenas do seu cotidiano.
Uma sala dentro do Museu
Vivo me chamou mais a atenção. Lá havia aproximadamente
oito filtros de barro, com alturas que variavam de um metro a um metro e meio,
e várias canecas de alumínio penduradas em um fio no teto. Muitos
romeiros acreditam que a água é milagrosa e, sem qualquer receio
de contrair alguma doença, pegam as canecas, enchem-nas com água
do filtro, bebem e se banham com roupa e tudo. Alguns, mais criteriosos passam
água nas regiões do corpo que necessitam de cura. Ao meu lado,
um senhor idoso e de aparência bem humilde derramou um pouco dágua
dentro da calça enquanto murmurava baixinho: "É minha próstata,
Padim! É minha próstata, Padim!" Falei para
ele que quando retornasse para sua cidade deveria se consultar com um bom urologista.
Ele apenas me olhou abusado.
Minha esposa estava ficando
bastante enauseada com tudo que viu, ouviu e cheirou. Por isso, resolvemos descer
o morro e retornamos à cidade.
O Padre
Cícero e o Milagre do Juazeiro
"Meu Padim Cícero,
do Juazeiro, tão milagreiro, sou romeiro do sertão. Meu Padim
Cícero, do Juazeiro, tão milagreiro, a minha grande devoção".
(Trecho da canção "Canção de Fé",
José Idelfino).
Mas, qual foi o fato que
transformou um simples pároco de um pequeno povoado do interior do Nordeste
em uma celebridade internacional? O "milagre" que transformou esse
padre, natural do Crato, em um dos brasileiros mais biografados e comentados,
aconteceu quando o mesmo tinha 45 anos.
Havia uma beata juazeirense,
analfabeta e costureira de profissão, chamada Maria Madalena do Espírito
Santo de Araújo,[3] mas conhecida como Maria de Araújo. "Foi
acometida de meningite infantil (espasmo), sofria de ataques de epilepsia, e
levava uma vida de jejum, oração e trabalho humilde. Havendo bem
cedo perdido os pais, foi morar ainda menina, na casa do Padre Cícero".[4]
Em uma manhã de março
de 1889, quando o Padre Cícero Romão Batista pôs a hóstia
na sua boca, Maria de Araújo teve um transe tão intenso que sangrou
a língua e a hóstia ficou avermelhada de sangue. Esse fato se
repetiu outras vezes no período de dois anos e a população
local começou a espalhar a notícia de que se tratava do "derramamento
do sangue de Jesus", portanto, de um milagre.
O próprio Padre Cícero
comentou acerca do que ocorreu naquele dia:
"Quando dei à
beata Maria de Araújo a Sagrada Forma, logo que a depositei na boca,
imediatamente transformou-se em porção de sangue, que uma parte
engoliu, servindo-lhe de comunhão, e outra correu pela toalha, caindo
algum no chão; eu não esperava e, vexado para continuar com as
confissões interrompidas que eram muitas ainda, não prestei atenção
e por isso não apreendi o fato na ocasião em que se deu; porém,
depois que depositei a âmbula no sacrário e vou descendo, ela vem
entender-se comigo, cheia de aflição e vexame de morte, trazendo
a toalha dobrada, para que não vissem, e levantava a mão esquerda,
onde nas costas havia caído um pouco e corria um fio pelo braço,
e ela com temor de tocar com a outra mão naquele sangue, como certa de
que era a mesma hóstia, conservava um certo equilíbrio para não
gotejar sangue no chão".[5]
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Dentro
do Museu Vivo, as estátuas em cera do Padre Cícero e da
beata Maria de Araújo.
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Na verdade, a beata pode
ter mordido consciente ou inconscientemente a língua ou a mucosa oral
e provocado o sangramento. Ou, quem sabe, ter tido uma crise convulsiva (bem
provável, uma vez que tinha epilepsia) e mordido a língua? Ou
uma discreta hemorragia digestiva?
É prudente deixar
registrado que em outras cidades nordestinas, envolvendo personagens diferentes
dos do Juazeiro, aconteceram fatos semelhantes onde a hóstia se transformou
em sangue.[6] Graças a Deus, esses outros padres não tornaram-se
também milagreiros e nem objetos de adoração.
Fico meditando... todo o
Novo Testamento insiste em afirmar que Jesus Cristo ofereceu o Seu corpo como
sacrifício e derramou o Seu sangue remissor apenas uma vez e para
sempre (veja Hebreus, capítulos 9 e 10). Essa história de "vários
derramamentos do sangue de Jesus Cristo" através da beata Maria
de Araújo está diametralmente oposta às Escrituras Sagradas.
Ou os devotos do Padre Cícero estão enganados, ou a Bíblia
está errada.
Bem, o fato é que
o reboliço foi tanto que o pequeno povoado transformou-se em lugar de
romaria.
O bispo cearense Dom Joaquim
José Vieira e até o Papa Leão XIII, em Roma, tiveram de
investigar o fenômeno do Juazeiro. O Padrinho chegou a ser recebido pelo
papa no Vaticano. Outros padres foram enviados ao Juazeiro e entregaram a hóstia
a Maria de Araújo e nada de anormal ocorreu. O bispo cearense e o papa
não reconheceram o milagre e o Padre Cícero Romão foi punido
com uma suspensão.
Assim, o Padim Ciço
tornou-se um santo milagreiro. Apesar de proibido de celebrar missas, sua residência
passou a ser freqüentada por romeiros e por várias autoridades.
Aproveitando-se do seu prestígio,
aliou-se aos grandes fazendeiros cearenses e, apoiado por eles, tornou-se prefeito
do Juazeiro em 1911 e, posteriormente, vice-presidente do Ceará.
As Atuações
Ambíguas do Padre Cícero Romão
"Foi a ele que muitas
vezes, Lampião se ajoelhou, aos seus pés contou histórias,
pediu perdão e chorou. Bendito seja o romeiro que na fé e na oração,
exalta o santo padroeiro no samba, no coco, no xote e no baião".
(Trecho da canção "Deus Menino", Chico Silva).
a) Amizade Com o Coronelismo
O Padim Ciço
realizou boas ações para a população menos favorecida.
Organizou mutirões e conseguiu construir pequenos postos de saúde,
escolas e orfanatos, além de reformar e construir algumas igrejas católicas.
Por outro lado, ele era
amigo do peito de vários latifundiários da região, conhecidos
como "os coronéis". Esses senhores ilustres eram opressores
dos pobres, marginalizavam os sertanejos, excluindo-os do direito à saúde,
aos alimentos e até à vida. Pasme, o Padim Ciço
pertencia a essa espécie de liga de coronéis do Ceará e
a defendia . O Padim chegou a estimular seus devotos a serem mão-de-obra
barata na construção de açudes e na colheita de algodão
nas terras da família Acioly, a mais poderosa do Ceará.[7]
O "coronelismo"
era a política exercida pelos latifundiários com prestígio
político local, que tinham notável poder, mandavam na região
e nos seus eleitores, que eram tratados como gado. Suas zonas eleitorais eram
conhecidas como "currais eleitorais" e ai do eleitor que ousasse votar
contra o candidato do "coronel".
Quando Hermes da Fonseca,
então presidente da República, enviou interventores ao Ceará
e depôs as oligarquias repressoras lideradas por esses coronéis,
o Padre Cícero ficou irado.
Rapidamente o clero católico
promoveu e assinou o chamado "pacto dos coronéis" com dezessete
dos principais chefes políticos da região do Cariri, objetivando
assegurar a permanência da família Acioly no governo cearense.
E mais: esses fazendeiros armaram centenas de sertanejos e os enviaram à
capital, porém foram detidos pelas forças federais. Esse episódio
ficou conhecido na história como a "Revolta do Juazeiro".
O Padim Ciço
só aquietou-se quando a velha oligarquia da família Acioly foi
restabelecida ao poder. O Padre Cícero Romão foi, sem dúvida,
um exemplo de fidelidade às oligarquias poderosas do Ceará.
b) Negociata com Lampião
Enquanto o Padim Ciço
destacava-se no Ceará com sua influência político-religiosa,
o cangaceiro Lampião e seu bando amedrontavam os poderosos dos sertões
nordestinos.
O sertanejo pernambucano
Virgulino Ferreira da Silva (1897-1938), vulgo Lampião, era também
um personagem controvertido. Para muitos, era visto como um bandido que incendiava
vilarejos, torturava, estuprava e matava pessoas. Para outros, era um justiceiro
que tirava dos ricos para doar aos flagelados da seca. Em 1931, o jornal The
New York Times chegou a chamá-lo de Robin Hood do sertão.
O "Rei do Cangaço"
era devoto do Padre Cícero, do Juazeiro, e às vezes usava uma
foto desse sacerdote no seu peito. A religiosidade de Lampião era alicerçada
nas orações de corpo-fechado, nos santos da Igreja Católica
e no Padre Cícero. No livro, Lampião, o Rei dos Cangaceiros,
Chandler relata "que a vida da mulher de um policial de Jatobá,
em Pernambuco, foi salva quando um velho pegou um retrato do padre do Juazeiro
e o colocou entre a faca soerguida de Lampião e o seio da mulher. Lampião
levava sempre consigo seus livrinhos de orações, guardava santinhos
em sua carteira de dinheiro, e pregava retratos do Padre Cícero em sua
roupa".[8] Isso mostra o respeito e a devoção que Lampião
nutria por esse padre.
Em companhia do seu bando,
Lampião costumava recitar algumas orações para, supostamente,
fechar o corpo. O escritor Piragibe de Lucena, no seu livro Lampião,
Lendas e Fatos, descreve algumas dessas orações. Leia um pequeno
trecho de uma delas e analise a importância do Padre Cícero na
vida desse cangaceiro:
"Justo juiz de Nazaré,
filho da Virgem Maria, que em Belém fostes nascido entre as idolatrias.
Eu vos peço senhor, pelo vosso sexto dia, e pelo amor do meu padrinho
Pe. Cícero que meu corpo não seja preso, nem ferido, nem morto,
nem nas mãos da justiça em volta.
Pax tecum, pax tecum, pax
tecum. Cristo assim disse: aos seus inimigos, se vierem para prender-me terão
olhos, não me verão, terão ouvidos, não me ouvirão.
Com as armas de São Jorge, serei armado. Com a espada de Abraão,
serei coberto. Com o leite da Virgem Maria, serei borrifado.
Na arca de Noé, serei
arrecadado. Com a chave de São Pedro serei fechado, onde não me
possam vê, nem ferir, nem matar, nem sangue do meu corpo tirar. [...]"[9]
|
O
Padre Cícero articulou para que o cangaceiro Lampião recebesse
a patente de capitão dos Batalhões Patrióticos.
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Por volta de 1926, Padre
Ciço já era mais político do que religioso, sendo
anti-comunista de carteirinha. Aproveitando a fidelidade do bandoleiro à
sua pessoa, o pároco juntou-se com seus amigos fazendeiros e doaram armas
e munição para o cangaceiro e seu bando atacarem "o revoltoso"
Luiz Carlos Prestes e sua famosa "Coluna". Padim Ciço
também articulou para que o agrônomo Pedro de Albuquerque Uchôa,
que era inspetor agrícola do Ministério da Agricultura, entregasse
a Lampião a patente de Capitão das Forças Patrióticas.[10],[11]
Lampião não atacou a "Coluna Prestes", preferiu manter
suas erranças pela caatinga. Dizem que essa foi a única vez que
Lampião desobedeceu ao "santo" Padre do Juazeiro. Uma coisa
é certa: Lampião ostentou com muito orgulho o título de
Capitão enquanto viveu.
O curioso é que (dizem
que a pedido do próprio Padim Ciço) Lampião nunca
atacou os coiteiros ricos, os fazendeiros safados e os políticos corruptos
do Ceará. Isso é que é amizade fiel!
Apesar da amizade do Padim
Ciço com o coronelismo cearense e suas negociatas com Lampião
estarem registradas em vários livros, biografias, documentários,
teses e filmes, existem alguns devotos do Padrinho que negam que isso tenha
acontecido. Movidos mais pela emoção do que pela razão,
declaram que essas atuações ambíguas do Padre Cícero
não passam de calúnias.
Convenhamos: sob o ponto
de vista mundano, isso é que é saber viver! O Padim Ciço
vivia de mãos dadas com Satanás e pretendia morrer nos braços
de Jesus! Como se diz por estas bandas sertanejas: Eita Cabra esperto!
Padim
Padre Ciço: Um Ídolo do Lar
"[...] não
vos desvieis de seguir o Senhor, mas servi ao Senhor de todo o vosso coração.
Não vos desvieis; pois seguiríeis coisas vãs, que nada
aproveitam e tampouco vos podem livrar, porque vaidade são" (1 Samuel
12.20-21).
Ser contra a idolatria é
uma unanimidade não apenas entre as igrejas cristãs genuínas,
mas também ao longo de toda a Bíblia Sagrada. Todas as denominações
tradicionalmente evangélicas são contra a idolatria. O judaísmo
também não suporta a idolatria. Já o catolicismo prega
a não-adoração a ídolos e imagens, mas na prática
o que se vê é um descompasso entre o que se faz e o que se fala.
Infelizmente, não é preciso ir ao Juazeiro do Norte para se constatar
que a igreja do papado é verdadeiramente idólatra.
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Fiéis
cantam e choram ao redor de uma das camas usadas pelo Padim Ciço.
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O Padim Ciço,
do Juazeiro do Norte, é um ídolo nos lares de milhões de
católicos. Em algumas casas, ele está presente no móvel
da sala-de-estar, na penteadeira do quarto, na parede do corredor e em cima
do refrigerador da cozinha. Para sermos mais honestos, o Padim Ciço,
o "Santo Antônio", o "São Jorge", a "Ave
Maria" e o Frei Damião são parte do imenso esquadrão
de supostas divindades católicas presentes em milhões de residências
brasileiras.
"Ídolos do lar"
são coisas antigas e são mencionados logo no primeiro livro da
Bíblia (Gênesis 31.19 e 30). Eles eram de vários tamanhos
e alguns deles, quando colocados deitados na cama e cobertos por um manto, passavam
por uma pessoa dormindo (1 Samuel 19.13). A esses ídolos, chamados em
hebraico de terafins, confiava-se a guarda das casas e dos bens.
Acreditar que um "ídolo
do lar" possa proteger sua família é muita presunção.
Veja a história do rei Saul:
Feitiçaria e idolatria
foram as gotas dágua para que Deus rejeitasse o rei Saul. O profeta
Samuel sentenciou ao monarca: "Porque a rebelião é como
o pecado de feitiçaria, e a obstinação é como a
idolatria e culto a ídolos do lar. Visto que rejeitaste a palavra do
SENHOR, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei"
(1 Samuel 15.23). Na Edição Revista e Corrigida, lê-se
o nome "porfia", no lugar de "obstinação".
Na Bíblia de Jerusalém (católica), "presunção"
substitui "obstinação". Parafraseando esse texto, diria:
a obstinação, a porfia, o orgulho, a presunção,
a teima, a cabeça-dura é como a idolatria e o culto a ídolos
do lar. A idolatria está incluída entre as obras da carne e não
no fruto do Espírito (Gálatas 5.20).
No Velho Testamento, o primeiro
e o segundo mandamentos são um "não" à
idolatria (Êxodo 20.3-6). E mais: o idólatra deveria ser morto
(Deuteronômio 17.1-7). Já no Novo Testamento, a punição
é a morte eterna: "Quanto, porém, [...] aos idólatras
[...] a parte que lhes cabe será no lago que arde com fogo e enxofre,
a saber, a segunda morte" (Apocalipse 21.8). Entre aqueles que ficarão
fora da Cidade Celestial estão os idólatras (Apocalipse 22.15).
Sem dúvida, ao nos
despedirmos do Juazeiro do Norte, vendo a cidade se distanciando pelo retrovisor,
pudemos entender que a idolatria é uma cegueira espiritual, mas sobretudo
uma tentação bastante sedutora. A Bíblia nos alerta a resistir
ao Diabo, mas também a fugir dessa tentação: "Portanto,
meus amados, fugi da idolatria" (1 Coríntios 10.14).
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Padre
Cícero Romão Batista (1844-1934). Um dos ídolos dos
lares católicos nordestinos.
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Concluímos nossa
visita ao Cariri cearense com os olhos marejados e uma mistura de sentimentos
paradoxais: tristeza e alegria. A insatisfação é a imagem
dos milhões de católicos que ainda precisam ser alcançados
pela única Verdade, Jesus Cristo. A satisfação é
que vimos templos de algumas denominações evangélicas nessa
cidade. Esses irmãos em Cristo são como sal em uma terra espiritualmente
insossa: levam a única Luz do mundo a um povo submerso nas trevas espirituais.
Irmãos, assimilemos
o mesmo consolo e a mesma recomendação contida no final da Primeira
Epístola de João: "Também sabemos que o Filho de
Deus é vindo e nos tem dado entendimento para reconhecermos o verdadeiro;
e estamos no verdadeiro, em seu Filho, Jesus Cristo. Este é o verdadeiro
Deus e a vida eterna. Filhinhos, guardai-vos dos ídolos" (1 João
5.20-21). (Dr.
Samuel Fernandes Magalhães Costa - http://www.chamada.com.br)
* Ashgabat é
a capital do Turcomenistão, uma ex-república soviética
governada desde 1992 por um herdeiro direto do comunismo o ditador Saparmurad
Niazov. Para onde quer que olhem, os turcomenos deparam-se com uma imagem de
Niazov: pode ser numa das estátuas, nos painéis ou nos rótulos
de garrafas.
Bibliografia
- Filho, Mario Bem,
Formação Religiosa de Juazeiro do Norte. Editora ABC,
Fortaleza, CE, 2002, página 38.
- Fita de Vídeo:
Padre Cícero "O Cearense do Século". Documentário
das Romarias, com imagens do Padre Cícero Vivo. Bulhões Produções.
Juazeiro do Norte, CE.
- Filho, Mario Bem,
Formação Religiosa de Juazeiro do Norte. Página
211.
- Id.
- Walker, Daniel, Padre
Cícero na Berlinda. Edições IPESC. Fundação
Universidade Regional do Cariri URCA. Juazeiro do Norte, CE, 1995, páginas
12-13.
- Silva, Antenor de
Andrade, Padre Cícero Mais Documentos Para Sua História.
Escolas Profissionais Salesianas, Salvador, Bahia, 1989, página 234.
- Cine História.
Título do Filme: Baile Perfumado (Brasil, 1996). Direção:
Paulo Caldas e Lírio Ferreira. Amigo do padre Cícero, o fotógrafo
Benjamim Abrahão, parte para o sertão nordestino, para filmar
Lampião e seu bando nos anos 30. http://www.historianet.com.br/main/mostraconteudos.asp?conteudo=208
- Chandler, Billy Jaynes,
Lampião, O Rei dos Cangaceiros. Editora Paz e Terra S.A., São
Paulo, SP, 4a edição, 2003, página 271.
- CAOS Revista Eletrônica
de Ciências Sociais. CAOS número zero. Dezembro de 1999. O Cangaço
e a Religiosidade de Lampião, por Max Silva DOliveira. Citação
do livro Lampião Lendas e Fatos. Piragibe de Lucena, p. 46.
http://chip.cchla.ufpb.br/~caos/00-doliveira.html
- Chandler, Billy Jaynes,
Lampião, O Rei dos Cangaceiros. Páginas 93-94.
- Souza, Anildomá
Willians de, Lampião, O Comandante das Caatingas. Impressão:
Gráfica Aquarela, Serra Talhada, PE, 2001/2002, página 44.
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