Souzinha por Malba Tahan

 
           

 

 

 

 

 

 

 

 

Retirado do livro “Antologia da Matemática – 1o.” de Malba Tahan, publicado em 1967, em grande coleção pela Editora Saraiva (São Paulo)

 

ESTA ANTOLOGIA ESTARIA, CERTAMENTE INCOMPLETA, SE NÃO DEDICASSE UMA PÁGINA AO ESTUDO DA VIDA E DA OBRA DO FAMOSO SOUZINHA, O GENIAL MATEMÁTICO MARANHENSE, RELATA-NOS HUMBERTO DE CAMPOS, TAMBÉM MARANHENSE, ALGUNS EPISÓDIOS DA VIDA AGITADA E PRODIGIOSA DE UM DOS MAIORES GEÔMETRAS DO SÉCULO XIX

 

 

         SOUZINHA, O MATEMÁTICO

 

                                               HUMBERTO DE CAMPOS

 

                                                                                   Mágico poder da inteligência, favorecida por Deus com todas as forças e recursos que sói prodigalizar a seus efeitos!

LEAL, P., 113.

 

         Joaquim Gomes de Souza, representa, realmente, nos anais da inteligência brasileira, o caso mais típico, mais pitoresco, mais interessante, da precocidade, na raça. Nascido em uma propriedade de seu pai, à margem do Itapicuru, no Maranhão, a 15 de fevereiro de 1829, embarcou Gomes de Souza para o Rio de Janeiro, em 1843, com catorze anos, para matricular-se, consoante o desejo paterno, na Escola Militar, onde assentou praça de cadete, nesse mesmo ano, no 1o batalhão de artilharia. Não sendo essa, porém a sua vocação da adolescência, abandonou o jovem maranhense, de pronto, a carreira das aramas, matriculando-se na Faculdade de Medicina. Contava, então, apenas, quinze anos de idade.

         Curioso de conhecimentos, as ciência naturais constituíram para ele, com surpresa do seu próprio espírito, uma espécie de revelação. E saltando, nelas, de galho em galho, como as aves implumes e deslumbradas, não foi sem espanto que se encontrou, de novo, por exigências da Química, a braços com a Matemática, no terceiro ano do curso médico.

 

“CRIANÇA NO ROSTO E GRANDE MESTRE”

        

         Em 1847, com dezoito anos, o seu espírito devassava, como um foco luminoso, os mais longínquos horizontes da Mecânica, da Astronomia, das Matemáticas em geral, e com tal segurança que, sem abandonar a Escola de Medicina, onde tinha o primeiro lugar em todo o corpo discente, requeria com desassombro, exame para todas as matérias do curso de engenharia.

         O seu requerimento foi recebido, como era natural, com a mais acentuada prevenção. Desconfiado de que se tratava de algum maníaco, o Senador Saturnino, que desfrutava, então, a fama de grande matemático, pediu ao seu colega, o Senador Cândido Batista de Oliveira, estudioso da mesma disciplina, que verificasse, em palestra ligeira, a competência do requerente. Procurado por Gomes de Souza, o Senador Batista converso com ele cerca de duas horas, confessando-se maravilhado. E de tal forma que, assim que o jovem matemático se despediu à porta, correu, pressuroso, a procurar o Senador Saturnino, a quem declarou, com espanto nos olhos:

         - Acabo de conversar com o seu recomendado, que é criança no rosto e homem encanecido e grande mestre no que expôs, e no muito que já sabe. Estou envergonhado de mim, pois tive de aprender com ele as novidades da ciência moderna!

 

A VIDA DE CENOBITA

 

         O que era, então, a vida do moço estudante, conta-o um seu companheiro de casa, Antônio Henrique Leal, que lhe relatou uma parte da vida.

         “Quem o observasse, pela porta do seu quarto – escreve o Plutarco maranhense – dessa verdadeira cela de cenobita, que ele só abria quando saía para tomar parte nas refeições cotidianas, havia de ficar surpreso, vendo-o defronte de sua mesa de trabalho, até depois da meia-noite, para na antemanhã voltar a ela”. O repouso do seu corpo era limitado por quatro horas de sono. E era essa fúria, essa fome de tudo saber, de tudo aprender, que levava Antônio Henrique Leal a dizer no seu assombro, que “nenhum avarento, por mais requintado, guardaria tanto o seu ouro como Gomes de Souza zelava o seu tempo”.

 

PEDRO II INTERESSA-SE PELO JOVEM MATEMÁTICO

 

         Submetido a exame de todas as matérias do curso de Engenharia, o novo Baratier espantou de tal modo os mestres com a vastidão e a segurança dos conhecimentos, que, no segundo dia, informado do caso, o imperador comparecia, em pessoa, para assistir às provas; e com tal interesse e tamanho entusiasmo se retirou Sua Majestade, que voltou nos dias seguintes, até a terminação daquele duelo formidável, em que o Nazareno aparecia, de novo, cândido e imberbe, a assombrar os doutores!

 

PRIMEIRO CONCURSO

 

         Não se contentou Gomes de Souza, entretanto, com o grau de bacharel em ciências matemáticas e físicas, obtido de um fôlego, a 10 de junho de 1848, nem com o de doutor de borla e capelo, conseguindo, com a defesa da tese, três meses depois: abrindo-se, nessa ocasião, uma vaga de catedrático na Academia Militar, que é hoje  a Escola Politécnica, inscreveu-se no concurso, disputando-a a fortes concorrentes encanecidos no estudo da disciplina, ao quais derrotou, conquistando a cadeira.

         Aos dezenove anos, adolescente e franzino, sentava-se, assim, Gomes de Souza, como professor, na mesma sala em que, um ano antes, relutavam em dar-lhe entrada como discípulo!

 

REPOUSO NO MARANHÃO

 

         Necessitando de repouso, seguiu o jovem sábio, por exigência da família, para a fazenda em que nascera, no Maranhão. Ia descansar, fortalecer-se, retemperar o organismo, que o esforço combalira. Levava, porém, alguns caixões de livros. E, ao regressar dali, seis meses depois, trazia acrescentando-lhe a soma de saber, o conhecimento, a fundo, do alemão, do italiano, da Economia Política e do Direito Constitucional e, com os segredos da língua alemã, a revelação da filosofia de Kant, de Hegel, de Krause e de Fichte, sem contar, nesse número, os tesouros de três ou quatro literaturas exóticas.

 

SOUZINHA E CAUCHY

 

         Em 1852, com vinte e três anos, é Gomes de Souza designado, como especialista em ciências sociais, para estudar as reforças reclamadas pelo regímen penitenciário do Brasil. Em 1854 segue para a Europa e, chegando a Paris, corre a assistir uma aula do famoso professor Cauchy, que era, na opinião geral, o maior matemático do tempo. Em meio da sala, apresentada por este uma equação como não integralizável, Gomes de Souza ergue-se, e pede:

-         Dá licença?

E, dirigindo-se à pedra, mostra, por duas vezes, o engano do sábio, que, diz-se, o abraçou, comovido, e se tornou, depois, o maior dos seus amigos[1].

 

DOUTOR EM MEDICINA

 

         Notada a sua presença nos meios científicos, resolveu o môço brasileiro concluir, na França, os seus estudos médicos, dos quais havia feito três anos, no Brasil. Requer à Faculdade de Medicina, de Paris, exame vago de todo o curso. Atendido, submete-se às provas brilhantemente. E, em oito dias, recebe o grau de doutor em Medicina em uma Escola considerada, na época, pela severidade dos mestres, a mais rigorosa da Europa.

 

TRABALHOS DE SOUZINHA

 

         Acolhido no Instituto da França, apresenta aí, aos vinte e seis anos, uma série de memórias, entre as quais uma “Dissertação sobre o modo de indagar novos astros sem auxílio das observações diretas”, e “Métodos gerais da integração da equação diferencial do problema do som”. Aplaudido, atravessa a Mancha, e aparece na Academia Real das CiÊncias de Londres, onde revoluciona círculos científicos com as suas memórias sobre a Propagação dos movimentos nos meios elásticos, compreendo o movimento nos meios cristalóides, e a teoria da luz; sobre a Fisiologia geral das ciÊncias matemáticas e uniformização dos métodos analíticos; além de outras, abrangendo Astronomia, Botânica, História e Filosofia, que constituíram a base de uma obra no sistema do Kosmos, de Humboldt, estudando, para explicação da vida, os fenômenos do Universo.

         Em 1855, está êle na Alemanha, e apresenta aos editores em Leipzig, uma obra imprevista. É a “Anthologie Universelle, choix des meilleurs poesies lyriques de divers nations dans lês langues originales”, na qual figuram, nos próprios idiomas, catorze literaturas.

 

SOUZINHA RESOLVE CASAR

 

         Em contacto com os poetas, Gomes de Souza lembrou-se das mulheres e viu que era tempo de casar-se. Médico, reconheceu a exigência da natureza, e deliberou procurar uma noiva. E aplicou, para isso, a sua teoria, que ensinava a descobrir novos astros “sem auxílio das observações diretas”. Casto como Newton, e, como Newton, matemático, fez os seus cálculos[2]. O essencial, era encontra uma mulher virtuosa. Qual a sociedade mais virtuosa do mundo? A inglesa. E a Inglaterra, qual a família de costumes mais rígidos, mas graves, mais severos? A do Rev. Hamber, pastor anglicano, de Londres. Embarcou para Londres, e, procurando o sacerdote, expôs o seu caso. Queria uma esposa na sua família. O pastor ofereceu-lhe  a sua própria filha. E oito dias depois, realizando o casamento, embarcou Gomes de Souza, para o Brasil, deixando a moça em companhia dos pais, prometendo ir busca-la assim que tomasse posse da cadeira de deputado geral, para a qual acabava de ser indicado, inesperadamente, pela província do Maranhão.

 

SOUZINHA DEPUTADO

 

         Tornando à Inglaterra, toma, em Londres, a esposa, e corre ao Maranhão, a ver a família e a consultar as necessidades do eleitorado. Sobe o Mearim; vai a Caxias; visita Carolina, nas frotneiras de Goiás, desce pelo Itapecuru. Ao chegar em São Luís, perde a esposa, de febres, e embarca, ele próprio, com febres, para o Rio de Janeiro. Na Câmara, discursava, versando com excepcional competência as matérias mais áridas e complexas. Questões bancárias, assuntos militares, problemas de Direito, de ensino, de Engenharia, de Medicina... tudo isso abordado com sucesso, e brilho, pelo seu espírito de vinte faces. Um dia, no ardor de uma discussão veemente, um deputado volta-se para Gomes de Souza que o aparteia, e agride:

-         O assunto em discussão não é da especialidade de V. Exa.!

E Souza, ao pé da letra:

- É por isso mesmo que eu discuto com V. Exa. Se se tratasse de assunto da minha especialidade, eu não admitiria V. Exa à discussão.

 

SEGUNDO CASAMENTO

 

         Em 1862, surpreendido por uma hemoptise, corre ao Maranhão. Piora, e volta ao Rio, fixando residência no morro de Santa Teresa. Sozinho, sem família, é tratado carinhosamente por uma vizinha, D. Paulina Guerra. Comovido pela dedicação da enfermeira, ofereceu-lhe o seu nome, casa-se, de novo, e embarca para a Inglaterra. E aí se extingue, em Londres, a 1o de junho de 1863, esse homem formidável, que foi matemático, médico, astrônomo, geólogo, financista, engenheiro, historiador, jurista, crítico literário, um completo erudito, em suma, em uma vida de tritna e quatro anos, três meses e quinze dias![3]

 

Do livro Carvalhos e Roseiras

 

 

 

        

 

 



[1] (nota de Malba Tahan) Entra, nesta parte final, um pouco da fantasia de Humberto de Campos. O matemático Cauchy, além de invejoso, era egoísta e rancoroso. Dois outros geômetras notáveis foram vítimas de Cauchy: Abel e Galois. Cauchy fez tudo que pôde para impedir que Abel e Galois se tornassem conhecidos.

[2] (nota de Malba Tahan) Newton morreu solteiro e não era dado às aventuras amorosas.

[3] (nota de Malba Tahan) Observa Antonio Henrique Leal, historiador e sociólogo maranhense (1828-1885), ao traçar a biografia do grande matemático: “Gomes de Souza não era, de mais a mais, homem para a tribuna; tinha débil compleição e órgão vocal ainda mais fraco, e, se conseguia ser ouvido do auditório, devia-o à nitidez de sua pronúncia, à distinta prolação das sílabas, que saíam-lhe dos lábios perfeitas; ao silêncio que reinava no parlamento logo que começava a orar esse notável parlamentar; e ao supremo esforço que empregava, alteando a voz acima do seu diapasão natural. Esse labor tão desconforme às suas forças havia sem dúvida de minguá-las em poucos anos; foi o que sucedeu. Assim, com trinta e cinco anos, finou-se quem encheria o mundo com o seu nome, se perseverasse na carreira tão bem entreada e houvesse ao menos terminado e dado à luz os trabalhos que havia concebido e rascunhado” (Cf. LEAL, P., 145).