Vida e Obra de Bernardo Guimarães
  poeta e romancista brasileiro [1825-1884 - biografia]

 
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De volta ao sertão goiano
(ou o "jubileu" em Catalão)


por Armelim Guimarães
(do livro inédito "Bernardo Guimarães, o romancista da Abolição") 

Em 1861, Bernardo Guimarães, essa "estranha figura de bardo, de romancista e boêmio", conforme o qualificou Spencer Vampré (São Paulo e Sua Evolução, 1926, pág. 35), estava de regresso ao sertão goiano, a Catalão, um pitoresco lugarejo, agora já cidade desde agosto de 1859, para cujo terno, sede da Comarca do Rio Paranaíba, acabava de ser reconduzido como Juiz Municipal e Órfãos, e de Juiz de Direito, em substituição ao Dr. Jerônimo José de Campos Curado Fleury e Dr. Virgílio Henrique Costa, respectivamente.

À nova posse ocorreu em 1º de março daquele ano. A nova nomeação ocorrera em 7 de dezembro do ano anterior.

O Cisne, cavalo de BG, não regressou a Catalão. Enganam-se, nesse pormenor, Carlos José dos Santos e Antônio Constantino ao citarem o "saudoso" corcel branco no retorno do poeta àquela boa terra. A poesia Adeus, composta "em memória" a esse tão estimado animal, é de 1858.

Dão-lhe, desta feita, para morar, um casarão baixo e velho, de pau-a-pique, de cinco janelões em um dos lados, três enormes portas na frente.

É uma mansão que ainda existia em 1972, quando a visitei, e pude, emocionado, contemplar aqueles evocativos cômodos, que era cinco mesmo, pois ainda conservavam a divisão original. Já encontrei essa casa com modificações na fachada. Nela também residira, quando criança, o primoroso cantor das "Vozes da América", o grande Fagundes Varela, cuja morte seria relembrada por Bernardo Guimarães num longo poema que incluiria nas "Folhas de Outono".

Esse casarão deixou uma lenda macabra, a qual será contada mais adiante.

Bernardo, sem protesto, mas sempre satisfeito, acomodou-se na velha e espaçosa morada. Mobília nenhuma, a não ser um sebento cavalete de peroba em que se punham arreios e cangalhas. Nos quartos havia mofo e umidade. Quijaras enormes, de vem em quando, cortavam diagonalmente a sala e a cozinha. Para o boêmio, tudo isso era divertido.

Uma grossa complicação estava para acontecer.

Bem dizia o desditoso Álvares de Azevedo, referindo-se a Bernardo, mal disfarçado em Belmiro:

"--  Aquilo é um original muito esquisito. Nunca vai à função que não faça uma dessas falcatruas." ("Rosaura, a Enjeitada". 1º tomo, págs. 82 e 83)

E que falcatrua a desta feita! Chegou a ocasionar a demissão do Presidente da Província.

Não era nada fácil, naquele meado de século, a captura de um assassino nos matos sertanejos do planalto central. O próprio Bernardo Guimarães, em "O Índio Afonso", nos dá a idéia de como era penosa a ação da Justiça e da polícia naquelas plagas ínvias e distantes. 

Já ficou lembrado que o poeta ouro-pretano tinha aqueles perigosos facínoras e jagunços como amigos. Com eles, nas noites de lua, comia pinhão ou milho cozido, sentados todos ao redor da panela onde fervia o feijão para o tutu, servido com torresmo e a boa aguardente da terra; das mãos deles recebia o cuietê do excelente café meloso, adoçado com rapadura.

É só ver como o romancista procurou inocentar o Afonso, "homem de bem, cheio de belas qualidades e sentimentos generosos", assim escreveu ele quando, na realidade, foi um dos mais temidos e frios faquistas naquelas terras de então, pois convém lembrar que Afonso, a figura do romance de Bernardo, na verdade existiu. Dizem-no o jornal "Reforma", do Rio de Janeiro, e o próprio Bernardo, no prólogo dessa obra.

Contavam-se crimes de arrepiar naquela Catalão silenciosa, fundada, já havia mais de um século, pelo lendário explorador espanhol Catalunha (Cataluña), ou Catalão.

O conde de Sarzadas, governador de São Paulo, se verdadeira a informação de alguns cronistas, foram ali assassinado quando regressava da capital goiana.

Cornélio Ramos, em "Catalão de Ontem e de Hoje" (Distribuidora Kalil, Catalão, 1984), longamente nos relata o que se conta na tradicional terra catalana sobre a violência e flagícios ali cometidos por capangas e chefes políticos, que tornavam toda aquela circunvizinhas em zona de crime pior do que o faroeste de Tio Sam. E isto até os meados do século 20.

Não só os turunas e chefões faziam dessas coisas, mas também os índios traziam os moradores da região em constantes sobressaltos. Por aquela ocasião, em outubro de 1862, os caiapós, aliados aos carajás, numa horda de quase mil guerreiros, atacaram, durante várias noites consecutivas, o presídio de Santa Maria, quase nada podendo fazer os poucos milicianos da guarnição.

Quando o vate mineiro retornou para ali, lá havia, na cadeia, onze engaiolados, criminosos bárbaros, autores de muitos homicídios e assaltos violentos.

Pois a notícia de que o delegado Bernardo estava de volta motivou uma festa para a capangada presa. Os capuavas se abraçaram exultantes. A confirmação da boa nova não demorou. Um acorde vigoroso ao violão penetrou pelas fétidas e úmidas enxovias. Quase uma dúzia de medonhas e cicatrizadas caras, barbadas e sujas, se comprimiram, risonhas, contra as grades. Era ele!

O poeta os cumprimentou, alegre e sorridente, como velho amigos. Aliás, três ou quatro deles Bernardo já conhecia. Deu-lhes fumo, goiano legítimo, que nem em Cuba se encontrava igual. Pediu-lhes fogo. As pedras do isqueiro arrancaram relâmpagos que iluminaram as paredes enegrecidas. Mandou servir-lhes um prego [cachaça - nota do editor do site], adocicado com mel. Em seguida, cantou para eles uma canção sentimental, acompanhando-se ao pinho [violão - nota do editor do site]. Na canção seguinte, teve o bardo, para o refrão, o coro de onze encarcerados. E cada preso quis mostrar ao doutor a habilidade no instrumento. Bernardo Guimarães os elogiou e aplaudiu. Ouviu, depois, de cada um, muito atento, as razões do encarceramento. Revoltou-se com os abusos da polícia. Ele haveria de dar um jeito!

E o deu, realmente, e de maneira mais arbitrária, que se pode imaginar.

Antônio Constantino, sempre exagerando as libações atribuídas ao menestrel mineiro, diz de Bernardo:

"Exerceu a magistratura no Brasil central, e errou aceitando o cargo. Não possuía a serenidade do julgador que precisa se conservar acima das paixões e se isentar de sentimentalismos. O gênio do escritor se chocava com o de juiz. Parceiro de farristas, apreciador e cultor dos versos à Bocage, tocador de violão, bebedor inveterado, preferindo ver vazio o cárcere a ter lá dentro criminosos, eis o talhe do homem incompatível com a magistrado." ("O Incrível Bernardo Guimarães").

Era, então, juiz de Direito da comarca o Dr. Virgínio Henrique Costa, "inimigo acérrimo de Bernardo Guimarães e de todos aqueles que lhe prestavam apoio, os quais eram em crescido número e as principais pessoas do lugar". (Ricardo Paranhos, em "Catalão Ilustrado", de Antônio J. Azzi)

Em maio daquele ano de 1861, o Dr. Virgínio obteve licença, por certo tempo, para tratar de interesses seus, e retirou-se para a capital goiana. Conforme determinava a lei, Bernardo Guimarães assumiu a jurisdição do juiz licenciado.

Imediatamente o causídico -- e isso precisamente em 16 de maio de 1661 -- convocou uma sessão de júri, arbitrariamente, "pouco se importando com os prazos processuais." (Basílio de Magalhães)

Essa célebre sessão judiciária ficou conhecida com a irônica designação de jubileu.

"As mais importantes circunstâncias dessa sessão de júri vêm na parte ineditorial de "Atualidade" de 4 de novembro de 1861", ainda é Basílio de Magalhães quem informa.

Era Presidente da Província de Goiás o Dr. José Martins Pereira de Alencastre, pernambucano erudito, estudioso e apaixonado pela história. Reorganizou arquivos, empreendeu notáveis pesquisas, tornado-se o mais completo historiador de Goiás, autor de "Anais da Província", uma soberba contribuição para a cultura do Estado central. Havia tomado posse das rédeas provinciais em 21 de abril de 1861, em substituição ao Dr. Antônio Manuel de Aragão e Mello.

De Basílio de Magalhães, do seu "Bernardo Guimarães", é que passo a transcrever as principais notas e referências ao jubileu:

"Apenas informado disso, Alencastre exonerou Bernardo Guimarães do cargo de delegado de polícia, "a bem do serviço público", suspendendo-o da função de juiz municipal e cancelando suas atividades como juiz substituto de Direito, mandando-o responsabilizar pelo fato acima exposto. Mal chegou a Catalão, quis o Dr. Virgínio Henrique Costa reintegrar ali o regime legal, flagrantemente violado pelo famoso jubileu -- o que não podia ser agradável aos réus inocentados, nem mesmo à maioria da população liberal e bondosa daquela terra sertaneja, a qual só faltava então pôr num altar o seu ídolo, que era Bernardo Guimarães. Assim, a este (que não obedecera à suspensão imposto pelo Presidente da Província) foi logo apresentada denúncia contra o juiz de Direito, por "improvisada crise de sedição e tirada de presos do poder da Justiça", e, recebida e autuada ela -- é Alencastre que de novo fala -- em menos de 24 horas, "instaura-se o processo, decreta-se a pronúncia e expende-se mandado de prisão contra a primeira autoridade da comarca".

"Acentua Alencastre que Bernardo Guimarães sempre lhe deixava sem reposta os ofícios e o primeiro, sem data, chegado às suas mãos, foi o em que o juiz municipal de Catalão lhe comunicava a pronúncia do Dr. Virgínio Henriques Costa, como incurso nos arts. 111 e 120 do Código Criminal, não dando de tão grave decisão nenhum fundamento jurídico, pois apenas assim concluía: 'Sendo levado a este ato, não só pelo meu de magistrado, como pelos votos de toda a população desta cidade.' Despachado de pronúncia, baseado em tais alegações, creio não ter sido nunca proferido por juiz algum, nem mesmo pelo original Magnaud.

"O jubileu teve, por suas inesperadas conseqüências, intensa repercussão na imprensa do País até na Assembléia Temporária do Império. A "Atualidade" publicou, em 12 de dezembro de 1861, uma nota editorial em defesa do seu ex-redator literário. E na dita folha, em fins de 1861, e começo do ano seguinte, saíram também vários artigos, sob o título de "Correspondências", contra o juiz de Direito e contra o Presidente da Província, nenhum deles trazendo a firma de Bernardo, mas traindo-lhe a autoria. Na Câmara dos Deputados, aqueles acontecimentos só vieram a ser debatidos em 1866, quando se fez ali certo ajuste de contas, entre liberais e conservadores, sobre a política de Goiás.

"Alencastre e o Dr. Virgínio não ficaram quietos. Percebendo que o único recurso, que lhes restava, era porem fora dali o juiz municipal, conseguiram que lhe fosse apresentada uma denúncia anônima contra Bernardo Guimarães, como incurso no Art. 166 do Código Criminal (irregularidade de conduta), nos primeiros dias de 1862.

"Como se vê, instaurou-se o processo para apurar a procedência e veracidade da denúncia covarde. Que ela causou indignação naquela cidade goiana, é o que se infere de um documento na Câmara Temporária do Império pelo deputado alagoano José Ângelo Márcio da Silva ("Anais", tomo III, pág. 33), no qual consta que o delegado de polícia José Pires de Moraes, encarregado do inquérito contra Bernardo Guimarães, em ofício de 17 de março de 1862, dirigido ao Presidente da Província, declarava-se achar-se sem garantias, em Catalão, para levar a cabo a sua árdua incumbência."

E não foi só o delegado Pires de Moraes que se sentiu sem garantias para agir contra o poeta ouro-pretano. Também o juiz de Direito. Consta em Catalão que,  indo Pires de Moraes, Virgínio e mais dois ou três indivíduos à casa de Bernardo Guimarães, encontraram-no fora, junto à porta para rua, senado no patamar de pedras, tocando violão. O Dr. Virgínio carecia ouvi-lo, com testemunhas, a fim de dar satisfação de todo o ocorrido ao governo provincial. Já que Bernardo se negava a comparecer ao Fórum, foi ele próprio interrogar o "réu", julgando-se com direito a isso.

Às três primeiras perguntas formuladas, os homens ficaram sem reposta. Bernardo nem mesmo os cumprimentara, e, como se cego, mudo e surdo fora, continuava tranqüilamente a tocar o seu pinho mágico, dando como repostas apenas uns acordes e variações engenhosíssimas no violão, no que era bastante hábil. Irritado, o Dr. Virgínio formulou, em elevado tom de voz, uma outra pergunta, acompanhada de pesada advertência. A um novo, e agora vigoroso acorde no pinho, apareceu, então, um colossal jagunço à porta, saído do interior da casa, e se pôs ostensivamente ao lado do escritor. Mais outra fala do juiz, mais outro vigoroso acorde, mais outro capanga de carabina às costas e enorme faca na cintura. A cena se repetiu mais vezes, e, como se tudo aquilo fosse coisa combinada e ensaiada, alguns instantes mais Bernardo estava rodeado de uns dez turunas, de terríveis fisionomias, também mudos mas hostis, de pistolas no coldre.

O Dr. Virgílio, apalermado, olhou para seus acompanhantes. Nada mais puderam fazer senão retiraram-se acovardados. Mal viraram as costas, Bernardo principiou as suas gostosas e ruidosíssimas gargalhadas, estridentes, insultuosas,  que os quatro ou cinco homens da Justiça ouviam espavorido até longa distância, sem coragem domais leve gesto de protesto.

Estive em Catalão em 1972, e tive confirmação desse curioso episódio, pois os idôneos catalanos guardam carinhosamente, de memória, todos esses fatos ligados ao boêmio ouro-pretano.

O Dr. Virgínio Henriques Costa, apavorado, retirou-se para Santa Cruz, diante "do sério aspecto que contra ele tomaram os sucessos de Catalão". (Basílio de Magalhães)

Ricardo Paranhos, filho do Coronel Antônio da Silva Paranhos, que foram um dos grandes amigos e admiradores de Bernardo Guimarães em terras goianas, no artigo "Catalão", publicado por Antônio Azzi em seu "Catalão Ilustrado", faz grande referência ao episódio do "jubileu", informando que, além do Coronel Paranhos, que fora deputado provincial em várias legislaturas e senador, foram então também amigos de Bernardo, em Catalão, o padre Luís Antônio da Costa e Roque Alves de Azevedo, "moço de grande erudição, adquirida em 19 anos de rigoroso estudo no Caraça", em Minas Gerais.

Isto faz lembrar que Bernardo era ali escudado não só pelos sicários, mas também pelos maiorais da cidade. Ai de que, naquele bom torrão goiano, menosprezasse o Dr. Bernardo!

O escritor mineiro se defendeu da covarde denúncia anônima contra ele, forjada torpemente com o propósito de afastá-lo de Catalão, acusando-o de irregularidade de conduta. Transcreve Ricardo Paranhos ao final dessa defesa de Bernardo Guimarães, arquivada no cartório do 2º ofício de Catalão:

"Resta o último ponto em que o respondente é acusado com incurso no Art. 166 do Código Criminal, por irregularidades de conduta. O denunciante correspondente, seja ele quer for, não contente de esmerilhar a vida pública do juiz e de lança em mão de quanta futilidade que encontrou para vexá-los com acusações infundadas ou irrisórias, ainda vai com mão profana sondar sua vida particular, esquadrilhar qualquer pequena fraqueza, inclinar talvez o seu ouvido aos vis mexericos da maledicência e lançar mão da difamação perante tribunais, para ver se assim consegue de todo esmagá-lo! Mísero expediente e só digno de almas ignóbeis! O respondente não se inculcará por certo como modelo de sobriedade e de regularidade de conduta; solteiro e não tendo chegado ainda ao inverno da vida, ainda não se resignou a viver vida de cenobita, nem renunciou aos prazeres do mundo! Por isso mesmo é de temperamento melancólico, folga de se envolver na alegria dos festins, ama os prazeres da mesa e do vinho, a dança e as mulheres, a música e toda a espécie de regozijos, porque suavizam as amarguras desta vida árida e ingrata. Mas ninguém provará que prorrompesse em excessos escandalosos, nem que corresse após os prazeres e os festins em menoscabo de desempenho consciencioso de seus deveres. Se o respondente é inclinado aos prazeres, é porque é homem e acha-se por isso sujeito a uma das condições da humanidade, que sofre bem poucas exceções. O próprio denunciante, se não é algum anacoreta, o que não é de crer, não estará sujeito a essas fraquezas da humanidade? Alguns documentos, que o respondente tem de oferecer em apoio de suas alegações, serão apresentados oportunamente. Assim tenho respondido. Catalão, 31 de janeiro de 1862. O juiz municipal e de órgãos do Termo de Catalão, Bernardo Joaquim da Silva Guimarães".

Como se vê, Bernardo aqui ainda assina como juiz. Essa defesa do poeta foi reproduzida por Ricardo Paralhos, Basílio de Magalhães, Dilermano Cruz, o Ministro Wagner Estelita Campos e o jornal "Oitenta e Nove", de São José do Paraíso (Minas).

O Presidente da Província central e o juiz de Direito, entretanto, foram impotentes para derrubar o romancista mineiro. Bernardo, boêmio e sereno, se se abalar de suas rede, tendo a seu favor o povo catalano e a imprensa carioca, conseguiu derrotar os dois adversários.

Segunda Sousa Ataíde, "ambos tinham o rabo preso", e o boêmio conhecia certas faltas deles, que, "levadas a público pelos jornais do Rio, a coisa ia escandalizando a Corte, com sérios prejuízos para eles". À vista dos artigos estampados na "Atualidade", o governo imperial exonerou o Presidente da Província e o juiz de Direito, ficando este, por isso, impossibilitado de ser nomeado desembargador.

Relatório


No "Relatório" que no dia 25 de maio de 1862 passou ao seu sucessor Dr. Caetano Alves de Sousa Filgueira, José Martins Pereira de Alencastre faz um longo balanço da grave situação de criminalidade  em que se encontra a província de Catalão, ressaltando os esforços para colocar os malfeitores da cadeia.

Às tantas, Alencastre diz o seguinte:

"Tinha sido nomeado juiz municipal e delgado de polícia do Catalão Bernardo Joaquim da Silva Guimarães, que, infelizmente, tornou-se fatal à administração da justiça do Termo, por ter-se identificado com os protetores do crime, e de um modo triste de dizer-se, por motivos que deviam atuar contra sua independência de juiz.

"De posse da administração, foram meus primeiros cuidados providenciar no sentido de garantir a segurança individual e tornar efetiva a prisão dos criminosos. Todas as ordens, quer diretamente expedidas por esta Presidência, quer dadas pelo digno magistrado que dirige a polícia da Província, multiplicavam-se perante a indiferença criminosa do juiz municipal e delegado de polícia de Catalão, que entendeu não dever secundar as vistas da Presidência, e, ao contrário, pôr-lhe toda sorte de óbices. Não executava as ordens que recebia dos seus superiores, nem respondia ao menos aos ofícios que lhe eram dirigidos.

"Vindo à capital, com licença, o juiz de direito da comarca, assumiu a jurisdição o bacharel Bernardo Guimarães, seu primeiro substituto. Se até então esse juiz municipal podia ser censurado pela irregularidade de sua conduta, por haver inconvenientemente, em grau de recurso, revogado pronúncias, por ter reformado indevidamente inventários, por não ter cumprido uma só ordem da polícia e da Presidência, de então por diante, sem vislumbre de independência, sem talvez compreender a responsabilidade de certos atos, arrastado pelos seus intitulados amigos, foi dando o exemplo de uma série não interrompidas de escândalos, senão mesmo de crimes.

"Assumindo a jurisdição de direito em 16 de maio, fez convocar imediatamente uma sessão de júri, que teve lugar em meados de junho; aí foram inocentados 11 réus, alguns dos quais processados por crimes graves e provados somo sejam por exemplo, os criminosos de morte Antônio Nunes Borges e Severino José Martins. O promotor, por ele nomeado interinamente, estava relacionado com alguns dos réus, e era amigo íntimo de um deles.

"Não direi a V.Exª as versões que correram a respeito de todos os incidentes dessa célebre sessão judiciária, que, com razão, foi qualificada de jubileu. O que está provado é que os réus absolvidos eram incontinenti soltos, e as sessões por tal modo presididas, que as questões, apresentadas ao tribunal, eram escritas, não pelo juiz, mas pelo punho do escrivão.

"V. Exª bem pode compreender a fatal influência que deviam exercer no espírito do povo essas cenas tão de público representadas por aquele mesmo que, na prática severa da justiça e na execução fiel das leis, podia conquistar títulos à consideração pública e recomendar-se como juiz.

"Foi então que entendi de indeclinável dever tomar providências mais sérias, a fim de pôr um paradeiro a tendências tão subversivas. Fiz seguir para a comarca do rio Parnaíba o juiz de direito, que ainda se achava com licença na capital, e pouco depois marchou para Catalão uma força comandada por oficial de confiança, a quem nomeei delegado de polícia, por haver demitido dessas funções, a bem do serviço público, o bacharel Bernardo Guimarães.

"A imparcialidade e moderação, com que procedeu o Capital Joaquim Rufino de Ramos, é reconhecida pelos próprios, que não deviam estar satisfeitos com a justiça do meu preceder."

Politiqueiro

Acentua o presidente Alencastre nesse documento que, com o jubileu, Bernardo deu provas de "ignorâncias absoluta dos mais triviais princípios de direito e prática do processo", demonstrando, contudo, "que é capaz de fazer pelos seus amigos os maiores e mais comprometedores sacrifícios".

Bernardo Guimarães não ignorava coisa alguma da praxe forense. Alencastre e Virgínio é que estavam gregos em matéria de boêmia "filosóficos".

O escritor mineiro, ao contrário do que disse seu acusador, deu provas de que bem conhecia leis e processamento jurídico, fazendo o juiz de direito efetivo e o Presidente da Província goiana dançarem na corda bamba. Alencastre e Virgínio Costa foram cutucar onça com vara curta!

No seu "Relatório", que acabo de transcrever [nota do editor do site: parte do documento foi suprimida], José Martins Pereira de Alencastre, como se vê, procurou inocentar o juiz de direito Virgínio Henriques Costa. Diz do "pasmo" que o acometeu ao receber de Bernardo Guimarães um ofício -- o único que o escritor julgou dever lhe mandar -- em que condenava ao bacharel Virgínio Henriques Costa por sedição e retirada de preso do poder da Justiça!

A verdade era que Catalão estava vivendo dias de horrores com o partidarismo político. O bacharel Virgínio Costa, que Alencastre tentou apresentar como magistrado íntegro, correto cumpridor de seus deveres profissionais, era, na realidade, um politiqueiro mancomunado com prosélitos de uma facção que impunha prevalecer a força e o absolutismo de mandachuvas que se enriqueciam e se empoleiravam em cargos elevados da administração pública. Alencastre, no seu manipulado "Relatório, falsifica os fatos, com criminoso embuste e adocicados salvatérios. Pensavam as autoridades goianas que poderiam pisar no poeta boêmio de Minas, e fazê-lo calar em proveito deles.

Quando estive no Fórum de Catalão, fui ali informado que um juiz, ou promotor, que por lá passara, grande cultor das letras e de tradições, e admirador entusiasta de Bernardo Guimarães, retirou do arquivo forense, levando consigo, o livro que historiava o Jubileu e a defesa de Bernardo, lavrada de próprio punho.

Consta que o aedo ouro-pretano, nesse júri sem-par, a cada réu que inocentava declarava-lhe a liberdade em estrofes curtas e engenhosíssimas, rimadas e de genial inspiração, ditas de improviso, com tal graça e espontaneidade que arrancavam aplausos de toda a assistência.

Esses improvisos gaiatos e divertidos em versos eram próprios do talento e criatividade dos poetas de então. Conta J.C. no "Correio da Manhã" de 28-11-1952:

"De 1852 a 1854, Bernardo Guimarães foi juiz municipal da cidade de Catalão, em Goiás. Espírito boêmio, tocador de violão e cantor de modinhas, o autor de "A Escrava Isaura" nunca levou muito a sério as suas funções. Certa vez, esta de papo pro ar a tocar violão, quando surge em sua casa um sujeito trazendo um requerimento para ser despachado com urgência. Bernardo Guimarães não se aperta: ao som do instrumento, improvisa o despacho em versos.

No requerimento da professora municipal Ana Maldonado, solicitando licença de três meses para tratamento de saúde, despachou o poeta:

Se Dona Ana Maldonado
For uma bela mulher,
Tenha o dobro do ordenado
E o tempo que requer.

Mas se for velha e metida,
O que se chama um canhão,
Seja logo demitida,
Sem maior contemplação."

Aureliano Lessa

Na primeira vez que Bernardo Guimarães estivera em Catalão, recebera ali a amarga notícia do desaparecimento de Álvares de Azevedo. Pois agora, ali mesmo, por um incompreendido capricho da Parca, foi que lhe comunicaram a morte de Aureliano José Lessa. O solo goiano recebeu, então, mais duas gotas de lágrimas, nascidas da alma, brotadas no coração de um verdadeiro amigo e admirador. Que fatalidade!, diria o poeta.

Aureliano, o brilhante vate diamantinense, desaparecia aos 33 anos de idade, em Conceição do Serro, em 21 de fevereiro de 1861. Filho de Pedro José Lessa e de Carlota Genuína, nascera em 1828. Salvaram-se alguns de seus versos, que foram enfeixados em um volume publicado no Rio de Janeiro, em 1873, com o título de "Poesias Póstumas", com prefácio de Bernardo Guimarães. Bernardo dedicou, à sua memória, um poema que foi incluído nas "Novas Poesias". Em 1873, nos versos em resposta a Pedro Fernandes -- que lhe dedicara um poetam inserto que foi nas "Novas Poesias" -- Bernardo ainda se lembraria de Aureliano Lessa. [ver aqui a integra da poesa]

Pedro Fernandes Pereira Correa (1837-1878), que dedicou um poema a Bernardo Guimarães, de que foi um dos maiores amigos, era também poeta, e também bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo, diplomado em 1864.

Em seu livro "Páginas de Críticas e Outros Escritos" (Editora Itatiaia, Belo Horizonte, 1956, pág. 313), Eduardo Frieiro faz um estudo sobre esse notável mineiro de Montes Claros, vigoroso talento de opulenta cultura.

O panegírico de Aureliano Lessa, feito por Bernardo Guimarães para prefaciar as "Poesias Póstumas" desse seu grande companheiro da Paulicéia, está reproduzido na revista "Acaiaca", nº 31, de outubro de 1951, página 26 e 53.

Agora, do triunvirato da Paulicéia, só restava Bernardo Guimarães. E da malograda publicação das "Três Liras", obra projetava pelo três poetas máximos de São Paulo de então, mais uma vez se lembraria o vate-riquense com grande pesar. Agora só restava a sua lira, já carunchada pela saudade e pelo remorso de tanto protelarem os três a sonhada publicação.

O hóspe
de 

Um episódio interessante se registra desta feita:

Estava-se no liminar de 1863. Alguém bate à porta do velho solar do boêmio de Ouro Preto, em Catalão. Bernardo deixa o pinho, que dedilhava varrendo as mágoas, e vai abrir a porta. O visitante é o general José Vieira Couto de Magalhães, outro mineiro, este de Diamantina.

Couto de Magalhães por ali passava a caminho da capital goiana, onde, então, assumiria a presidência daquela província central, em substituição a João Bonifácio Gomes de Siqueira. Profundo admirador que era do poeta comprovinciano, pretendeu hospedar-se em casa do boêmio -- coisa de todo impossível, pois o escritor, que dormia numa velha rede, não dispunha de outra mobília além de um tamborete e uma pequena mesa. Não havia cama na casa, não podendo oferecer ao digno e ilustre Presidente a menor e mais modesta acomodação.

O hóspede, que chegava de estafante viagem, pediu logo água para saciar sua grande sede. Contam biógrafos e cronistas que Bernardo, depois de muito demorar-se no interior da casa, serviu a água ao eminente visitante num velhíssimo bule sem bico nem asa, enferrujada e já de cor indefinida, com o crifício, do qual saíra o bico, tapado com uma bolota de cera, amassada a dedos.

"Nessa emergência -- informa Felício Buarque no "Almanaque Alves" de 1917 -- o Dr. Couto de Magalhães resolveu hospedar-se em casa do Coronel Paranhos, que, desde muito,  se havia preparado para esse fim". Esse episódio teve a confirmação do provecto general.

O Coronel Paranhos, mais uma vez, procurou convencer ao romancista mineiro da inconveniência de seu viver naqueles sertões, nos quais estava sacrificando a sua pena, a sua harpa, o seu futuro.

Aceitando a opinião do amigo, despediu-se Bernardo Guimarães, mais uma vez, daquela aprazível e gostosa terra. E o fez com sacrifício, com a alma pesarosa por deixar aqueles rincões em que tantas amizade conquistara.

Andarilho como sempre foi, nas tardes frescas subia ao pico do elevado outeiro existente junto à cidade -- o Pão de Açúcar catalano -- o Morro da Saudade, coisa rata no imenso planalto central, e de lá, a cavaleiro daquela hospitaleira urbe, contemplava a paisagem sertaneja que o rodeava, composta das planícies infindas que se estendiam horizonte afora, crivada de arbustos e de buritizais sem fim. Lá permanecia até surgir a lua. Será que naquela acrópole tão pitorescas já existia, in illo tempora, a ermida de São João Batista? Uma última vez agora ali foi, de lá regressando, de madrugada com os olhos empapados de lágrimas. Era um adeus a Catalão. Mas jamais Bernardo se esqueceria daquele povo bom e humilde, da solidão e do encanto paisagístico do planalto central!

Casarão

Decidira Bernardo Guimarães voltar para a Corte. O Coronel Paranhos tinha razão.

Mas o catalanos, ainda hoje, guardam, com carinho, em suas tradições, o vulto de Bernardo Guimarães, que nunca lhes ficou esquecido. Ali chegando eu em julho de 1972 para conhecer esse torrão histórico tão ligado à biografia de meu avô, senhores gentis, aos quais me dirigi desejoso de informações, amavelmente contaram-me alguns fatos ali ocorridos com Bernardo, e apressaram-se em mostrar-me a casa em que ele residiu, já com modificações na fachada, na esquina de ruas centrais, uma das quais tem o seu nome.

Conta Cornélio Ramos em seu livro "Catalão de Ontem e de Hoje", págs. 53/54 -- e o faz baseado nas memórias deixadas por Ricardo Paranhos -- que a casa em que residiu Bernardo Guimarães em Catalão, e em que, dez anos antes dele, morara o grande poeta Fagundes Varela quando ainda menino, passou por alguns anos tida como casa da maldição. Um castigo, manifestado por trágicas urucubacas, envolveu-a sinistramente durante algum tempo.

Logo depois que o boêmio mineiro se retirou daquela agradável localidade goiana, a proprietária da mansão, uma senhora muito idosa, passou a morar nela. Muito devota de Nosso Senhor dos Passos, tinha essa imagem em uma oratório, uma grande escultura, aos pés da qual mantinha acessa, noite e dia, uma candeia  de azeite.

Como não tinha herdeiros, decidiu deixar em testamento a casa à invocação de que era devota, cabendo à Paróquia manter e acatar esta última disposição.

Morrendo a anciã, um chefão político do lugar, impedindo que o vigário incluísse esse imóvel nos bens paroquiais, desejou ficar com a velha casa. Mandou imediatamente buscar a Paracatu um conhecido rábula, apelidado de "Pássaro Preto", encarregando-o de anular o testamento deixado pela devota anciã.

Logo ao chegar à cobiçada morada, foi o tal solicitador fulminado por um mal súbito, morrendo ainda de botas e esporas. Mas o mandachuva valentão se apossou da casa assim mesmo, passando a alugá-la. E, segundo narra o mencionado cronista de Catalão, os inquilinos da residência sinistra, que se foram sucedendo, sofreram as danosas penas da maldição: o alferes do destacamento policial, acometido por apoplexia; um tal Francisco Faustino, que teve o coração varado por um espeto cravado traiçoeiramente por um escravo; um fazendeiro, morto por um bicho-do-pé gangrenado; um rico comerciante, que perdeu, de um só golpe, todos os seus bens numa diabólica falência; um outro comerciante, que também ficou sem nada.

Um outro desafiante da maldição comprou a casa sinistra, e imediatamente enlouqueceu. E o tal turuna de faca e garrucha, que se apropiara indevidamente da casa, foi derrotado nas eleições e também perdeu tudo o que tinha, inclusive o crédito e o prestígio, findando os seus dias em completa miséria.

"Conta-se que, quando a procissão do Senhor dos Passos passava em frente à citada casa -- assim prossegue Cornélio Ramos -- o andor pesava tanto, a ponto de ser necessária a ajuda de mais pessoas a sustê-lo, para a imagem não cair."

Diz Ricardo Paranhos que, ainda muitos outros fatos estranhos aconteceram, mas o que mais impressionava o povo, depois deste longo encadeamento de fatos horrorosos, foi o aparecimento de uma bola de foto verde que deslizava sobre a cumeeira da casa nas noites de maior escuridão. Ricardo Paranhos garante que, apesar de criança, na época, presenciou esse fenômeno inúmeras vezes, achando até engraçado o tal assombramento."

A casa, quando Ricardo Paranhos escreveu essas suas memórias (1920), pertencia ao farmacêutico Cristiano Vitor Rodrigues, que a reformou. "Seu vem viver -- dizia Paranhos -- prova que o caiporismo da casa então desapareceu completamente e ainda lhe deu sorte, pois ainda foi premiado com cem contos de réis na loteria federal".  E concluiu Cornélio Ramos: "Esta fantástica história envolve a casa nº 1.182 da Avenida Vinte de Agosto, esquina com a rua Bernardo Guimarães, que pertence, presentemente, ao Sr. Wilson Barbosa Lima" (O livro de Cornélio Ramos é de 1984).  

Toda essa corumbada, em parte lendária ou não, fica à margem da biografia de Bernardo Guimarães apenas como uma digressão curiosa e divertida.

Contou-me o farmacêutico Claudionor Cunha, residente na vizinha cidade de Araguari, já no Triângulo Mineiro, que ouvira de velhos moradores de Catalão a referência a uma senhora já idosa que era quem zelava da casa de Bernardo Guimarães, quem lhe fazia as compras e lhe preparava as refeições. O poeta lhe confiava mensalmente todo o ordenado de juiz e de delegado de polícia, e era ela quem o aplicava como lhe parecia, para a manutenção da casa. Por ser ranzinza e neurastênica, muito implicante e resmungona, Bernardo lhe pusera o apelido de Jequitiranabóia.

Confirmando essas informações, Cornélio Ramos, no seu citado livro, na pág. 48, acrescenta que a Jequitiranabóia era mulata e... lá vem maledicências!

Linguam autem nullus hominum domare potest...

            



O poeta Fagundes Varela
(1841-1875)
, acima,  morou
 em Catalão na  casa que
 viria a ser dez anos depois
 residência de BG