BG em São
Paulo (2)
(as belas moiçolas da
cidade)
por Armelim Guimarães
(do livro inédito "Bernardo Guimarães, o romancista da
Abolição")
1851. Bernardo Guimarães está cursando o 5º ano da Faculdade São Francisco,
em São Paulo. É o último ano do curso de Direito. Em relação ao ano
anterior, ele tem de enfrentar duas novas cadeiras: Economia Política e
Processo Civil, Comercial e Criminal. Direito Administrativo só seria
introduzido no curso em 1854.
Os professores de Economia Política foram Carlos Carneiro
de Campos (3º Visconde de Caravelas) e João da Silva Carrão. O Processo
Civil, Comercial e Criminal teve igualmente dois professores, esses já velhos
conhecidos de Bernardo. Foram Joaquim Inácio Ramalho e José Inácio Silveira
da Motta.
E foi esse, talvez, o ano de maiores namoricos do poeta
mineiro. Na Paulicéia, diferentemente ao que afirmava Álvares de Azevedo (também
estudante nas Arcadas e amigo de BG), nas
cartas à sua mãe, havia moças lindas a valer, de estonteantes formosuras. Moças
como Laura Milliet...Oh, a Laura! Depois vinha a filha do coronel Neném, da rua
Santa Ifigênia, em casa da qual os devotos doidivanas ia rezar o terço, todas
as noites... E a casa das três meninas, que reclamava um romance à Schuberty?
Uma dessas era a Belisária, pela qual até o mesmo pirrônico Maneco
chegou a suspirar longamente em uma carta para o Rio. E as Xavieres? E a
graciosa filha do Pacheco? E a Olímpia, exaltada pelo Francisco Otaviano? E a
Beatriz, loiríssima de olhos verdes, que sacudiu o coração de Aureliano
Lessa? E a Chiquinha Galvão?
Fora dos salões aristocráticos, a estudantada freqüentava os bailes
sifilíticos, realizados em galpões ou ao livre, pelos lados do Campo Redondo,
na Avenida da Luz ou nos Quatros Cantos. Essas danças aqueciam-se com cachaça,
e as damas eram todas rameiras ou quase... A denominação de sifilíticos vinha
de "serem bailes aos quais, como o nome indica, só concorriam pessoas de
condição suspeita ou gente quase toda muito baixa". Assim explica
Ferreira de Resende nas "Minhas Recordações", na pág. 293.
Os moços da São Francisco também gostavam de serenatas. As gostosas serestas,
nas horas mortas da noite enluarada, sob as janelas denunciada por Cupido!
Dedilhando os violões, embrulhados nos ponchos, lá iam os rapazes desse bando
notívago, de rua em rua, sob as gelosias, para acordarem corações com
modinhas e valsas que eles mesmos compunham. O próprio Bernardo
Guimarães, no prólogo que fez para o livro de Aureliano Lessa, declina os
nomes de alguns desses companheiros de serenatas:
"Aureliano, Álvares de Azevedo, José Bonifácio, Cardoso de Menezes,
Silveira de Sousa, Paulo do Vale, Ferreira Torres, Lopes de Araújo, o
português Agostinho Gonçalves e vários outros mancebos, entre os quais se
contava também o autor destas linhas, eram como um bando de canários, que
perturbavam com os seus constantes gorjeios os severos estudos dos alunos de
Têmis; eram uma verdadeira Arcádia no meio da Academia. No meio dessa plêiade
de cantores, o gaturamo de Diamantina não pode ser ficar mudo".
O diamantinense era Aureliano José Lessa. Paulo do Vale já era formado fazia
então três anos. João Cardoso de Meneses e Sousa, já também formado em 48,
foi fino poeta e, mais tarde, agraciado com o título de Barão de Paranapiacaba.
João Silveira de Sousa, diplomado em 1849, seria ministro de Estrangeiros, no
Gabinete Zacarias. Agostinho Gonçalves de Almeida, também festejado poeta,
morava no palácio do Bispo Dom Manuel Joaquim de Andrade.
Dos seresteiros que compunham o bando de canários citado por Bernardo,
Sousa Ataíde lembra ainda outros "gaturamos", como Joaquim da Silva
Cruz, flautista "de primeira"; Antônio Gonçalves Gomide, conhecido
por Tuna, exímio violinista; Joaquim Mendes Malheiros, que, além de pintor,
era um virtuose do violão; José Tomás da Silva Quintanilha, artista do
violino; Antônio Carlos Ribeiro de Andrade, que possuía uma "esplêndida
voz de barítono", acrescenta Almeida Nogueira. Estes, os que ainda estavam
presentes às serenatas de 1851.
Bernardo Guimarães, além do violão, era inimitável flautista. Orfeu querido
das moças, vibrava de emoção nas noitadas de serestas lovelaceanas. No livro
"Rosaura, a Enjetada", além de declarar-se "insigne
violonista", confessava "cantar com algum gosto de perfeição".
Nesse romance, que equivale às memórias do autor na fase acadêmica, o vate
mineiro nos dá conta do quanto Azevedo era despeitado com o Belmiro (Bernardo),
por não conhecer música, nem saber tocar "o clássico violão".
Escreveu Basílio de Magalhães na biografia de Bernardo:
"Naquela época, achava-se influenciada sobremaneira pela leitura de Byron,
Lamartine, Musset e Espronceda a juventude acadêmica, que preferia à aridez
das Pandectas ao ranço das teorias de Lobão e dos textos de Código
Filipino o namorar as lindas filhas da Paulicéia, o entoar-lhe de lamuriosas
serenatas por noites enluaradas, e pedir ao álcool mais fogo para o estro ou
lenitivo a mágoas de amor, reais umas e imaginárias outras. Mas a Bernardo
Guimarães é que devia competir o papel proeminente em semelhantes pândegas.
Fisicamente mais robusto que os seus dois inseparáveis amigos (Álvares
de Azevedo e Aureliano Lessa)
mais resistente do que eles ao tóxico etílico, ainda sobre eles levava a
vantagem de ser exímio tocador de flauta e violão e primoroso cantador, tanto
de trovas fesceninas ou burlescas quanto de lundus chorosos, peculiares daquela
época ultra-romântica, em que iam ser decoradas por toda parte as poesias
lamuriosas de Casimiro de Abreu.
"Não sei como escapou aos críticos do escritor mineiro a fiel descrição
das estudantadas, de que foi ele magna pars, e que se encontra no primeiro
volume de "Rosaura, a Enjeitada". Auto-retratou-se aí, focalizando
também, em traços indeléveis, o conspecto físico-psíquico de Álvares de
Azevedo e Aureliano Lessa". (págs. 22 e 27).
Porém custaria ainda muito ao violão a sua entrada nos altos salões.
Faltava-lhe a realeza. Conquanto sempre apreciado, era ainda um instrumento
plebeu, sem o sangue azul do violino e do piano.
Brício de Abreu acha que o pinho só se libertou, entrando aristocraticamente
no rol dos instrumentos nobres, com Catulo da Paixão Cearense, que o levou ao
Instituto Nacional de Música, indo parar até no palácio presidencial de
Hermes da Fonseca, pelas mãos gentis de Nair de Teffé (A história do pinho
contada através da vida de um seresteiro, em "Diário de Noite", de
30-8-1957). Mas nada importava a condição social do violão, pois Bernardo
Guimarães, também ele, não era dos salões majestáticos e solenes.
Mas nem só com serenatas e libações se divertiam os moços da Academia. Não
poucas vezes, as artísticas serestas serviam apenas de pretextos ou
simulações... Elas davam azo a sensacionais visitas aos ricos galinheiros e
pocilgas alheias, então comuns nos arrabaldes da cidade.
Quase sempre, essas aventuras de rapinagem se combinavam nas repúblicas, através
da fumaça dos cigarros, com o incentivo dos copos e das risadas estridentes e
gaiatas que valiam por aplausos. Era quando se comentavam gozados incidentes nas
"caçadas" anteriores.
Pois não foram poucos os pândegos rapazes da Paulicéia que compartilhavam as
divertidas pilhagens, e que, depois, se notabilizariam na magistratura, na
política e nas letras. José Basson de Miranda Osório, depois deputado e chefe
de polícia na Corte; José Calmon Valle Nogueira, no Porto e em Montevidéu;
Afonso Celso de Assis Figueiredo, Alfredo Pujol, o consagrado historiador Rocha
Pombo.
Houve até um "Hino à Laverna", cuja autoria acredita-se ser do
boêmio Bernardo Guimarães. Era uma canção, com alegre melodia, que os
rapazes entoavam, já na cidade, de volta aos aviários e dos piggeries, às
horas mortas da noite. Compunha-se de quadrinhas heptassílabas, das quais as
quatro primeiras assim eram:
Boas damas e varões,
Criai de tudo e bastante:
Frangos, perus e leitões
Para a mesa do estudante.
E, meu nobre conselheiro,
Agi em paz e com graça:
Deixar aberto o viveiro
E ponde aos cães a mordaça!
Da pocilga monacal
(É dever de piedade!)
Que venha com o animal
O perdão do bom do frade!
Parabéns, meu coronel!
No quintal houve proscrito?
Pois ele honra seu farnel,
Seja o pato ou o cabrito
Às vezes se compraziam os doidivanas com furtos nas próprias repúblicas, de
colegas que recebiam de suas famílias caixetas de goiabada, e pessegada,
queijos e cabazes de apetitosos guloseimas.
|
|
Carlos Carneiro de
Campos (3º Visconde
de Caravelas), professor
de Economia Política
de BG na Faculdade
de Direito
Poeta Álvares de
Azevedo, um dos
inseparáveis amigos
de BG nas Arcadas
José Bonifácio
(o moço) foi outro
amigo de BG na
escola de Direito
|