A Jaó do Rosário ou A Outra Face |
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Vive dentro de mim Uma cabocla velha De mau-olhado, Acocorada ao pé do borralho, Olhando pra o fogo. Benze quebranto. Bota feitiço... Ogum. Orixá. Macumba, terreiro. Ogã, pai-de-santo... Vive dentro de mim A lavadeira do Rio Vermelho. Seu cheiro gostoso D’água e sabão. Rodilha de pano. Trouxa de roupa, Pedra de anil. Sua coroa verde de são-caetano. Vive dentro de mim A mulhar cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute bem feito. Panela de barro. Taipa de lenha. Cozinha antiga Toda pretinha. Bem cacheada de picumã. Pedra pontuda. Cumbuco de coco. Pisando alho-sal. Vive dentro de mim A mulher do povo. Bem proletária. Bem linguaruda, Desabusada, sem preconceitos, De casca-grossa, De chinelinha, E filharada. Vive dentro de mim A mulher roceira. – Enxerto da terra, Meio casmurra. Trabalhadeira. Madrugadeira. Analfabeta. De pé no chão. Bem parideira. Bem criadeira. Seus doze filhos, Seus vinte netos. Vive dentro de mim A mulher da vida. Minha irmãzinha... Tão desprezada, Tão murmurada... Fingindo alegre seu triste fardo. Todas as vidas dentro de mim: Na minha vida – A vida mera das obscuras. A J A Ó D O R O S Á R I O ou A O U T R A F A C E por O t a c í l i o M e l g a ç o Ode a CORA CORALINA – Mulher dos becos de Goiás e de estórias mais... Mulher de Todas as Vidas... Das todas Antigüidades: os Cânticos da Terra, o Pouso das Boiadas, o Rio Vermelho, Palácio dos Arcos, Velhos Sobrados, Vintém de Cobre... Mulher que no tarde da Vida recria e poetiza a própria Vida. No Caminho dos Morros, Mulher que fez a escalada da Montanha da Vida removendo pedras e plantando flores. E Ressalva se benfaz: Versejadoira? Non. Poetisa? Non. Rediviva Contadora de Velhas Estórias... “...Tinha uma jaó no Rosário. Aquela jaó... diziam que era do frade Zé Maria que gostava de pássaros e que se foi. Ceres... Rialma... Montes-Belos... Quem sabe lá onde dá sua guarda o soldado da cruz? Só ficou lá no convento, comovente, o triste canto daquela jaó. O sino tange na madrugada enluarada sobre os morros recortados uns longe de alvorada. O relógio dos frades martela horas. Sinos tocam a entrada. Pecadores vão entrando, ajoelhando, vão rezando. Velas acesas. Luzes. Paramentos brancos. Liturgia. Sacerdote no altar. O amito passado na cabeça forma o capuz dominicano. Baixa. E emerge o frade. Introibo ad altare Dei. Quia Tu es Deus. Deus meus, in te confido, non erubescam... ...e começa o canto daquela jaó. A Epístola. São Paulo fala aos coríntios da nova lei: ‘-Se ressuscitaste em Cristo, procuras as coisas do Alto’. ... e continua o canto daquela jaó. O menino de branco mudou a banqueta para a esquerda. Evangelho de São Mateus: ‘-Eis que envio diante de tua face o meu Mensageiro que prepara o teu caminho adiante de Ti’. ‘Creio em Deus Pai...’ ‘Mostrai-nos Senhor a Vossa Misericórdia e dai-nos a Vossa salvação’. Acompanha o Confiteor daquela jaó. No centro do altar o sacerdote prepara-se para o sacrifício: abre os braços em cruz. Baixa a cabeça. Ora em silêncio. '...eu sou jaó...' Calam-se os cânticos. Silenciam as vozes humanas. Ablução. O manustérgio. E o vinho da consagração. '...eu sou jaó...' Compunção. Humildade. Lábios ciciam preces. Pedidos. Súplicas. Graças alcançadas. ...sempre ressoando no santuário - o canto triste daquela jaó. O sacerdote benze o vinho. Parte a hóstia sobre o cálice que se eleva no mistério da transubstanciação. Agora, não mais o trigo. Não mais a vide. Pão de vida. Corpo e sangue de Cristo. Deus vivo sobre o altar. ‘Tomai e comei. Este é o meu corpo’. ‘E este é o meu sangue’. ‘Fazei isto em memória de mim’. ... e canta o Glória, aquela jaó. Comunga o sacerdote. Retine a campainha. A comunhão dos confessados. ...e continua louvando a Deus, aquela jaó. Retorno ao altar. Volta a âmbula ao sacrário. O menino de branco passa a cobertura para a esquerda. Já a pátena sobre o cálice. O Sanguines sobre essa. A coberta do ritual dá ao cálice a forma litúrgica, piramidal. O menino de branco muda o missal do lado do Evangelho. Curtas orações. A bênção. ‘Dominus vobiscum... Finis missa est...’ ‘...eu sou jaó...’ ‘Ave Maria cheia de graça...’ ‘Salve rainha, mãe de misericórdia...’ A Deus cantando, glorificando até o final - aquela jaó...” {'Minas é a Montanha, montanhas, o espaço erguido, a constante emergência, a verticalidade esconsa, o esforço estático; a suspensa região – que se escala. Atrás de muralhas, através de desfiladeiros, - passa um, passa dois, passa quatro, passa três... – por caminhos retorcidos, ela começa, como um desafio de serenidade. (...) Minas (...) belorizontina, do ar, do lar, da saudade, doceira, do queijo, do tutu, do milho e do porco, do angu, do frango com quiabo, Minas magra, capioa, enxuta, groteira, garimpeira, sussurrada, sibilada, Minas plenária, imo e âmago, chapadeira, veredeira, zebuzeira, burreira, bovina, vacum, forjadora, nativa, simplíssima, sabida, sem desordem, sem inveja, sem realce, tempestiva, legalista, legal, governista, revoltosa, vaqueira, geralista, generalista, de não navios, de não ver navios, longe do mar, Minas sem mar, Minas em mim: Minas comigo. Minas.’ João Guimarães Rosa} Em Goiás, tão irmão de Minas... “...caminhos recruzados. Pousos espalhados. Estradas boiadeiras. Aguada... Pastos e gerais. Cerrados. Cerradões. Compáscuos... Cercados. Aramados. Corredores. Cochim. Campos de Vacaria. Dourados. Maracaju. Rio Verde. Criatório. Boiadeiros. Fazendeiros. Comissários. Criadores. Invernistas. Recria. Trem de gado ronceiro... Jogando, gingando Nos cilindros, nos pistões, nas bielas e nos truques. Rangendo, chocalhando, Estrondando nas ferragens. Resfôlego de vapor. Locomotiva crepitando, fagulhando, Apitando, sinalando, esguichando, refervendo. Chiados, rangidos, golfadas, atritos, apitos. Bandeira vermelha que se agita. Bandeira verde da partida. E o resfolegar do trem que vem, do trem que vai... Trem de gado engaiolado, parado Na plataforma, na esplanada. Gente que passa – pára. Pouso de boiadas... – a espaço. Nas dobras, Nas voltas, No retorcido das estradas. A saga bárbara dos boiadeiros. Cheiro de terra. Cheiro de noite. Cheiro de boi. Manelão canta em surdina, Manelão canta baixinho, Manelão canta sozinho...: Eu vi a alma do boi pastando, lambendo, bebendo, nas inverdadas do Céu. Eu vi – de verdade – A alma do boi – boizinho pequenino, Entrando, deitando alegrinho Na lapinha de Belém. (‘Todas as Vidas’, ‘A Jaó do Rosário’ e excertos de ‘Trem de Gado’, ‘Pouso de Boiadas’) Cordisburgo, 14 de setembro, 2001 “Em seu ‘Esboço de uma crítica da economia política’ (in Oeuvres, tomo II, Paris, 1968, pp. 44-141), Karl Marx observa, de fato, que o homem é o único animal em quem os sentidos (a visão, a audição, o olfato etc.) não são apenas resultados da evolução biológica das espécies, mas produtos duma história social e cultural, especialmente duma história das diversas artes nas suas especificidades, cada qual atuando em seu domínio próprio; a pintura cria objetos plásticos, produtos de uma espécie de exploração do domínio visual: universo das formas, volumes, cores, valores, expressão da luz e do movimento; a música cria um mundo organizado de sons, de harmonias, de dissonâncias, de ritmos; as artes da linguagem se aplicam igualmente, cada qual em seu setor, em exprimir, dando-lhes uma forma literária, alguns planos da realidade humana. Marx escreve: ‘A educação dos cinco sentidos é a obra da história universal inteira’. ‘O olho torna-se humano tal como seu objeto se torna objeto social, humano, vindo do homem e terminando no homem’. Em outras palavras, o olho se tornou humano quando se criaram ‘produtos’ para que o parceiro social os tivesse debaixo dos olhos como objetos de visão, o que significa que, ao lado de seu interesse prático, de seu valor de uso, esses “produtos” comportam uma dimensão estética, ou, como diz Karl, ‘são bonitos de olhar’. E acrescenta: ‘Assim, os sentidos se tornaram teóricos em sua ação imediata’. Fórmula admirável por sua modernidade. Se a aplicarmos ao domínio da pintura, diremos que o olho do pintor, associado à sua mão, edifica uma arquitetura de formas, uma linguagem de geometria figurada e colorida que, mesmo sendo inteiramente diferente da linguagem da ciência matemática, não deixa de ser, a seu modo e no seu registro, uma exploração do campo visual, de suas possibilidades, de suas regras de compatibilidade e de experimentação na ordem ótica. Do mesmo modo que o sentido musical do homem, para retomar a fórmula de Marx, só é despertado pela música, o sentido plástico se desenvolve e se transforma na e através da prática pictórica. A riqueza da visão e as formas particulares de que essa riqueza se reveste no quadro duma civilização caminham lado a lado como desenvolvimento que as artes figuradas conheceram e dependem da via na qual se envolveram. ‘É apenas graças ao florescimento da riqueza do ser humano’, escreve ainda, ‘que se forma e se desenvolve a riqueza da sensibilidade subjetiva do homem: um ouvido musical, olhos para a beleza das formas, em suma, sentidos capazes de prazer humano’. ‘Pois, não só os cinco sentidos, mas também os sentidos ditos espirituais, os sentidos práticos (a vontade, o amor etc.), numa palavra, o sentido humano dos sentidos, a humanidade dos sentidos, formam-se apenas graças à existência de seu objeto [Marx quer dizer de um objeto produzido pelo e para o homem], graças à natureza humana’. A natureza tornada humana é esse mundo de obras, particularmente obras de arte que constituem, em cada momento da história, o quadro no qual se desdobram os diversos tipos de humanizadas atividades... Tudo o que, em citações acima, Karl nos propõe e não só: das relações da mão e do trabalho, que a mão cria o trabalho, mas que o trabalho também cria a mão, sendo a mão, ao mesmo tempo, ‘o órgão e o produto do trabalho’, ele diz da arte e de suas obras e aqui, resplandessencialmente, redigo de - que Deus a tenha em glória - CORA CORALINA. Menina pobrezinha, enfeitada de colares, grinaldas, pulseiras, boninas dos monturos. De sabença que não há espasmo de criança que resista à velha pajelança. A bença... Bença, Mestra. Mestra que ‘está no Céu. Tem nas mãos um grande livro de ouro e ensina a soletrar aos anjos...’ O.M.” (in Belfagor/J.P.V.) Rio de Janeiro, 14 de julho, 1979 “Não tendo o seu endereço, lanço estas palavras ao vento, na esperança de que ele as deposite em suas mãos. Admiro e amo você como a alguém que vive em estado de graça com a poesia. (...) Seu verso é água corrente, seu lirismo tem a força e a delicadeza das coisas naturais. Ah, você me dá saudades de Minas, Tão irmã do seu Goiás! Dá alegria na gente saber que existe bem no coração do Brasil um ser chamado Cora Coralina. Todo o carinho, toda a admiração do seu Carlos Drummond de Andrade” Este sítio eletrônico, à dureza desses morros, revestidos, enflorados, lascados a machado, lanhados, lacerados. Queimados pelo fogo. Pastados. Calcinados e Renascidos. À sua vida, Dona Benvinda, seus sentidos, sua estética, todas as vibrações de sua sensibilidade de mulher, que têm, aqui, suas raízes... *CORA CORALINA, *CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, e *HENRIQUETA LISBOA fazem parte do 'CICLO MINEIRIANO' por *O.M. |
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Dos Becos de Vila Rica: | |||||||||||||||||||||||||||||
Buriti dos Gerais | |||||||||||||||||||||||||||||
a Guimarães Rosa | |||||||||||||||||||||||||||||
a Carlos Drummond | |||||||||||||||||||||||||||||
a Darcy Ribeiro | |||||||||||||||||||||||||||||
Do Velho Mandarim: | |||||||||||||||||||||||||||||
Otacílio Melgaço | |||||||||||||||||||||||||||||
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