Sonetos de David Mourão-Ferreira

 

 

Ternura

 

Desvio dos teus ombros o lençol,

Que é feito de ternura amarrotada,

Da frescura que vem depois do sol,

Quando depois do sol não vem mais nada...

 

Olho a roupa no chão: que tempestade!

Há restos de ternura pelo meio,

como vultos perdidos na cidade

onde uma tempestade sovreveio...

 

Começas a vestir-te lentamente,

E é ternura também que vou vestindo,

para enfrentar lá fora aquela gente

que da nossa ternura ainda sorrindo...

 

Mas ninguém sonha a pressa com que nós

a despimos assim que estamos sós!

 

Um outro...do mesmo

 

Paraíso

Deixa ficar comigo a madrugada,

Para que a luz do sol me não constranja.

Numa taça de sombra estilhaçada,

Deita sumo de lua e de laranja.

 

Arranja uma pianola, um disco, um posto,

Onde eu oiça o estertor de uma gaivota...

Crepite, em derredor, o mar de Agosto...

E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

 

Depois podes partir. Só te aconselho

Que acendas, para tudo ser perfeito,

À cabeceira a luz do teu joelho,

Entre os lençóis o lume do teu peito...

 

Podes partir. De nada mais preciso

Para a minha ilusão do Paraíso.

 

Do mesmo David Mourão-Ferreira

 

 


Ladaínha horizontal

 

Como se fossem jangadas

desmanteladas,

vogam no mar da memória

as camas da minha vida...

Tanta cama! Tanta história

Tanta cama numa vida!

 

Grabatos, leitos, divãs,

a tarimba do quartel;

e no frio das manhãs

lívidas camas de hotel...

Ei-las vogandoas jangadas

desmanteladas,

todas cobertas de escamas

e do sal do mar da vida...

Tanta cama! Tantas camas

Tanta cama numa vida!

 

Já os lençóis amarrados

Tocam no centro da Terra

(que o reino dos desesperados

fica no centro da Terra)

e os cobertores empilhados

são monte que não se alcança!

Só as tábuas das jangadas

desmanteladas,

boiam no mar da lembrança

e no remorso da vida...

Homem sou. Já fui criança.

Tanta cama numa vida!

 

Nem vão ao fundo as de ferro

Nem ao céu as de dossel...

Lembro-vos camas de ferro

De internato e de bordel,

Gaiolas da adolescência,

Ginásio do amor venal!

Barras fixas. Imprudência.

Sem rede o salto mortal

Pra fora da adolescência.

E confundem-se as jangadas

desmanteladas,

no mar da reminiscência.

Onde estás oh minha vida?

Sono. Volúpia. Doença.

Tanta cama numa vida!

 

E recordo-vos, tão vagas,

Vós que viestes depois,

Ó camas transfiguradas

Das furtivas ligações!

Camas dos fins de semana

Beliches da beira-mar...

Oh! Que arrojadas gincanas

Sobre os altos espaldares!

E as camas das noites brancas,

tão brancas, tão tumulares!

Cigarros! Beijos! Uísque.

Ó fragílimas jangadas

Desmanteladas...!

E nelas há quem se arrisque

Sobre os pélagos da vida!

Tão brancas, tão tumulares!

Cigarros! Beijos! Uísque.

Tanta cama numa vida!

 

E o amor? Tálamo, templo,

Conjugação conjugal...

O amor: tálamo, templo

- ilha num mar tropical.

Mas ao redor, insistentes,

Bramam as ondas do mar,

Do mar da memória ardente

eternamente a bramar...

Já no frio dos lençóis

há prelúdios da mortalha;

e nas camas sugestões

fúnebres, torvas, pesadas...

- Sede, por fim, ó jangadas

desmanteladas,

a ponte do esquecimento

prá outra margem da Vida!

Sede flecha, monumento,

Ponte aérea sobre o Tempo,

redentora madrugada!

Se o não fordes, sereis nada,

jangadas

desmanteladas,

todas roídas de escamas,

da margem de cá da Vida...

Pobres camas! Tristes camas!

Tanta cama numa vida!

 

 


Canção Primaveril 

Anda no ar a excitação
de seios subito exibidos
à torva luz de um alçapão,
por onde os corpos rolarão,
mordidos!

Ou é um deus, oi foi a Morte
que nos vestiu este torpor;
e a Primavera é um chicote,
abrindo as veias e o decote
ao meu amor!

Esqueço que os dedos têm ossos:
é só de sangue esta caricia;
apenas nervos os pescoços...
Mas nos teus olhos, nos meus olhos,
a luz da morte brilha.



Grito 

Cedros, abetos,
pinheiros novos.
O que há no tecto
do céu deserto,
além do grito?
Tudo que e' nosso.

São os teus olhos
desmesurados,
lagos enormes,
mas concentrados
nos meus sentidos.
Tudo o que é nosso
é excessivo.

E a minha boca,
de tão rasgada,
corre-te o corpo
de pólo a pólo,
desfaz-te o colo
de espádua a espádua,
são os teus olhos,
depois o grito.

Cedros, abetos,
pinheiros novos.
É o regresso.
É no silêncio
de outro extremo
desta cidade
a tua casa.
É no teu quarto
de novo o grito.

E mais nocturna
do que nunca
a envergadura
das nossas asas.
Punhal de vento,
rosa de espuma:
morre o desejo,
nasce a ternura.
Mas que silêncio
na tua casa.



O Silêncio 

Dos corpos esgotados que silêncio
tão apaziguador se levantava!

(Tinha uma rosa triste nos cabelos,
uma sombra na túnica de luz...)

Para o fundo das almas caminhava,
devagar, o sonâmbulo silêncio.

(Que apertados anéis nos braços nus!)

Mas o silêncio vinha desprendê-los.



Inscrição Estival 

Ó grande plenitude!

E a tudo
a tudo alheio,
saboreio.

Absorto
sorvo
este cacho de uvas
tão maduras...

Este cacho de curvas que é o teu corpo.



Os Teus Olhos 

Os teus olhos
exigindo
ser bebidos

Os teus ombros
reclamando
nenhum manto

Os teus seios
pressupondo
tantos pomos

O teu ventre
recolhendo
o relâmpago



É Quando Estás de Joelhos... 

É quando estás de joelhos
que és toda bicho da Terra
toda fulgente de pêlos
toda brotada de trevas
toda pesada nos beiços
de um barro que nunca seca
nem no cântico dos seios
nem no soluço das pernas
toda raízes nos dedos
nas unhas toda silvestre
nos olhos toda nascente
no ventre toda floresta
em tudo toda segredo
se de joelhos me entregas
sempre que estás de joelhos
todos os frutos da Terra.



Momento 

Chegado o momento
em que tudo é tudo
dos teus pés ao ventre
das ancas à nuca
ouve-se a torrente
de um rio confuso
Levanta-se o vento
Comparece a lua
Entre linguas e dentes
este sol nocturno
Nos teus quatro membros
de curvos arbustos
lavra um só incêndio
que se torna muitos
Cadente silêncio
sob o que murmuras
Por fora por dentro
do bosque do púbis
crepitam-me os dedos
tocando alaúde
nas cordas dos nervos
a que te reduzes
Assim o momento
em que tudo é tudo
Mais concretamente
água fogo música.

 

"Essa página é dedicada a um grande amigo que me presenteou
com o conhecimento de tão belos Poemas."

 





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