GRANDES MESTRES DA POESIA
CRUZ E SOUSA
Virgílio Várzea
Era um crioulo de compleição magra e estatura meã.
Não obstante tinha o rosto cheio e oval de traços delicados e
de conjunto atraente, simpático. Nos seus olhos, grandes e bonitos, havia
um forte brilho intelectual e uma vaga expressão de tristeza e humildade,
ganha atavicamente na expatriação, no cativeiro quase seculares
da sua raça, nesse tempo ainda geralmente jazendo no escravagismo e no
opressão em todo o Brasil, à exceção desse humaníssimo
Ceará, a "terra da luz", onde os primeiros movimentos abolicionistas
triunfavam já com persistência e ardor, alastrando-se pouco a pouco
para o extremo-norte e para o sul, com uma bênção e um bem
incompatível.
Nascido sob os tetos aristocráticos e opulentos, severos tetos aristocráticos
e opulentos, severos e disciplinares do lar de um notável soldado do
Império, o marechal Guilherme Xavier de Sousa, de quem tomara o nome
de família, recebera primorosa educação, boa instrução
primária e fizera com brilho o curso de humanidades no .Ateneu Provincial,
onde o insigne naturalista Fritz Müller, sábio de reputação
universal, colaborador e amigo íntimo de Darwin e Haeckel, regendo ali
as cadeiras de matemática e ciências naturais, encantado pelas
suas qualidades, aplicação e talento, lhe chamava afetuosa e carinhosamente
o seu "discípulo amado". No Ateneu fora também dos primeiros
alunos na atua de francês, do professor João José de Rosas
Ribeiro de Almeida (pai de Oscar Rosas), e nas de latim, inglês e grego,
a cargo do velho e conhecido orientalista padre Mendes de Almeida, reitor dessa
instituição de ensino.
Apaixonado pelas belas letras, verdadeiro temperamento de artista, talvez com
laivos étnicos e sangue ariano, Cruz e Sousa, já aos oito anos
fazia versos à maneira de Bocage. Desses versos, em geral vasados nos
moldes clássicos e românticos, alguns eram passíveis; mas
ele, agora, os detestava e quando acaso alguém 1hos recordava, recolhia-se
todo de vergonha e era o primeiro a apontar-lhes as tolices e ridículos
a grandes gargalhadas. Apesar de ter nascido livre - o marechal Guilherme era
contra a escravidão, e antes de partir para o Paraguai, alforriara todos
os escravos que herdara dos pais; apesar de ter sido criado por esse marechal
como se fora seu filho e de haver gozado todas as regalias dispensadas a tão
alto personagem - Cruz era o extremo modesto e tímido, decerto devido
a sua cor e raça que, após a morte do marechal e da sua honrosíssima
esposa D. CIarinda, o haviam reduzido a um verdadeiro pária no meio de
uma sociedade estreita, preconceituosa, mesquinha e cheia de preconceitos os
mais ridículos e absurdos. Foi assim que o conhecemos quando, depois
dos nossos estudos no Colégio Naval e de ano e meio passado a bordo de
navios mercantes brasileiros e espanhóis em constantes viagens às
Antilhas, ao Prata e às ilhas dos arquipélagos portugueses da
África. recolhemos à província aí por 1881, ligando-nos
então na longa, doce e harmônica camaradagem que terminou - material,
mas' não espiritualmente - com a sua morte, nesta capital, em 1897.
Desde 1881 que Cruz e Sonsa, assimilando a corrente moderna de reforma científica
e literária que da incomparável capital francesa irradiava por
todo o mundo, entrara a construir-se um bom artista da prosa e do verso, sobretudo
deste; colocando a arte suprema da Escrita acima de todas as coisas na vida,
não obstante as desventuras e ódios que lhe pudesse acarretar.
Por isso ninguém o igualava no assalto às reputações
literárias "d'A Velha Escola", não só d'ali como
talvez de todo o Brasil e do mundo, pois o fazia com um entrein e obcessão
nunca vistos, porque, dizia "era preciso varrer da superfície do
planeta todos os fósseis das letras". A palavra afiada, inquieta
e siflante era como um florete faiscante a todo o instante e parnasiano, e só
mais tarde, aqui no Rio, se tornou simbolista, para acabar misto de Verlaine
e Quental, como se vê, principalmente, no seu ultimo livro Faróis.
Entretanto. já ao tempo dessa narração, era um quaker,
um intransigente, nada admitindo que não fosse a doutrina esposada.
Nascera para o Sectarismo, para o Facção e para a Seita, como
se viu mais tarde em todo o exagero, só movendo-se com alacridade e possança
naquela colerie exclusivista da província e, depois, nessa outra da Decadência
que cimentou para sempre o seu nome, propagado até hoje com delírio
pelos fiéis discípulos sobreviventes, Caros D ias Fernandes, Félix
Pacheco, Nestor Vítor e Tiburcio de Freitas, que, apenas Cruz desapareceu
no sepulcro se passou a Santa Catarina, naturalmente para ter a honra e glória
cultural de viver na terra onde veio à luz o Mestre Supremo, o Grande
Poeta Negro.
De um talhe espiégle e elegante, muito preocupado com a sua pessoa, Cruz,
como os pais - o velho preto Guilherme, mestre pedreiro e a preta Carolina,
de uma atividade incessante e prodigiosa - não precisassem do seu auxílio
para viver, gastava tudo o que ganhava nas lições particulares
que tinha, em trajes variados, finos e bem feitos, pelo que andava sempre muito
asseado e bem vestido, despertando ainda, por esse lado, maiores odiosidades
e invejas.
Tinha uns dentes belíssimos e alvos, fazendo, quando sorria, uma pequenina
meia lua de opalas na sua boca negro-escarlate onde bailava uma ironia casquilhante
e perene. Sempre inspirado e feliz, caricaturista endiabrado e perfeito no verso
pilhérico e trocista, trazia "À Velha Escola" acossada,
flagelada e coberta de imenso ridículo.
Ele e o Vítor Vasques eram quem fazia a "Tribuna" do princípio
ao fim porque o.s outros pouco escreviam, não só por não
terem quase tempo disponível como pelos apertados empregos que tinham
(...).