Registros de um século


Lançamentos de Cora Coralina revelam a força criativa de uma escritora que escrevia seu tempo


CLÁUDIA NINA


No momento em que a casa-museu da escritora Cora Coralina, na cidade de Goiás Velho, é mais uma vez inundada pelas águas do Rio Vermelho, uma outra força aparece no cenário da destruição: a força criativa desta poeta, contista e cronista, cujos textos continuam surgindo no "limbo dos inéditos", revelando a prodigiosa capacidade de criação da autora de Vintém de cobre e de uma série de outras obras em diversos gêneros literários.
Na leva dessa "enxurrada", dois novos lançamentos chegam ao mercado. O primeiro deles, Villa boa de Goiaz traz uma seleção de textos que os familiares conservaram inéditos até agora e que foram escolhidos pela filha de Cora, Vicência Bretas Tahan, para compor o volume. O livro fala da paixão pela terra, das ruas, dos sobrados, dos sinos e, claro, da velha casa da ponte, que aparece em inúmeros textos da autora como uma espécie de imagem-refrão de toda sua obra.
À casa, ela dedica uma série de escritos reunidos em Villa boa de Goiaz, como "O cântico da volta", em que diz: "Velha casa de Goiás. Acolhedora e amiga, recende a coisas antigas de gente boa. Vem de dentro um cheiro familiar de jasmins, resedá e calda grossa - doce de figo ou caju. Um tacho de cobre aerado referve numa trempe de pedra. Uma braçada de lenha e gravetos acende o fogo ancestral".
Cheiros - O mais interessante é que a palavra "casa" ganha na escrita de Cora um sentido amplo. Muito mais do que falar da sua própria, aquela que enchente de rio nenhum do mundo vai conseguir por ao chão, casa rude, que "ressalta a força muscular e bruta do escravo, tangido pelo relho do feitor", suas imagens evocam o aconchego das casas antigas de nossos avós, pequenos portos perdidos na memória.
A cidade, patrimônio cultural da humanidade, é a grande personagem deste livro, que é acima de tudo um belo registro histórico do cotidiano das pessoas no início do século 20 e uma deliciosa viagem no tempo. Com palavras simples, ela consegue transpor o leitor para o início do século - estão lá os cheiros, as cores e o tecido das coisas boas da vida tranqüila e saborosa dos vilarejos, que perpassam toda a trajetória de Cora.
Infantil - Prato azul-pombinho é um poema já publicado em Poemas dos becos de Goiás e estórias mais, mas que ganhou uma cara toda nova nesta edição infantil com lindas ilustrações de Angela Lago. A história fala do último prato de porcelana chinesa - "remanescente, sobrevivente" - de um antigo aparelho de 92 peças da bisavó de Cora, que costumava contar à menina uma lenda que surgiu na imaginação a partir dos desenhos no fundo do prato, uma história dentro da história: a lenda da princesinha Lui, que tinha fugido do palácio um dia com um "plebeu do seu agrado", tal como a própria Cora, que, apaixonada, fugiu de sua cidade aos 21 anos junto com um certo doutor Cantídio, seu "príncipe encantado", 22 anos mais velho.
Na cena romântica da porcelana, com direito a quiosques, pombinhos voando e mandarins, o relato ganha asas aos ouvidos atentos da bisneta num eterno contar e recontar. Isso até que um dia o prato quebrou-se misteriosamente e, por indução e conclusão, o "conselho de família" condenou a menina, principal suspeita, a trazer no pescoço, como punição, um caco do prato quebrado, costumes daqueles tempos.
O livro, cujos desenhos traduzem com requinte a delicadeza do poema e a alma da história, traz Cora, também autora de Os meninos verdes (ilustrações de Cláudia Scatamacchia) e A moeda de ouro que um pato engoliu (ilustrações de Alcy) mais pertinho do universo infantil. O imaginário criativo e sertanejo desta mulher "turbulenta, cultivadamente rude", segundo definição própria, encontra a sensibilidade dos pequenos leitores do século 21. Um encontro histórico que merece ser celebrado.

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