GRANDES MESTRES DA POESIA
CRUZ E SOUSA
CRUZ E SOUSA: NOVO MODO DE FAZER POESIA COM "BROQUÉIS"
Por Maria Antonieta Pereira
"Broqueis", de Cruz e Sousa, publicado em 1893, é
o ponto mais alto da poesia simbolista brasileira, sendo responsável,
à época de sua aparição, pelo questionamento do
modelo parnasiano dominante entre nós. Dessa forma, embora contenha elementos
do parnasianismo, essa obra também funciona como precursora da estrondosa
crítica que os modernistas fariam, no século seguinte, à
poesia parnasiana.
Noutras palavras, ao desenvolver uma proposta estética fora dos moldes
parnasianos, "Broqueis" também inventou um novo modo de se
perceber o mundo e de se fazer poesia. Exatamente porque introduziram no Brasil
um novo paradigma estético, as experimentações sonoro-visuais
e o caráter reflexivo dessa obra prepararam o caminho para a radical
ruptura modernista de alguns anos depois.
Se considerarmos que o ritmo é o cerne da poesia e da música,
e que, para se obter ritmo, é preciso que se explore a repetição
de sons, perceberemos o caráter inovador de "Broqueis", quando
tal obra cria uma nova forma rítmica, relacionando as palavras entre
si como se fossem sons musicais. Além de apresentar os recursos das aliterações
(repetições de sons idênticos ou semelhantes no início
das palavras) e das assonâncias (repetição de som vocálico
idêntico ou semelhante), a obra também justapõe tais elementos
em uma seqüência frasal que privilegia o uso de substantivos e adjetivos
soltos, sem formas verbais ou conectivos que subordinem as palavras ou as idéias
umas às outras.
Segundo Ivan Teixeira, com esses recursos, Cruz e Sousa inventou o chamado "verso
harmônico" muito antes de essa forma ser teorizada pelo modernista
Mário de Andrade, no Prefácio Interessantíssimo. Assim,
o poeta explora a justaposição de frases nominais cuja interpretação
o leitor deve buscar, conectando palavras soltas, colocadas em série,
uma após a outra, como no poema a seguir:
ANTÍFONA
Ó formas alvas, brancas, formas claras
De luares, de neves, de neblinas!...
Ó formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...
Formas do Amor, constelarmente puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas...
indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da cor do perfume...
Horas do ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do sol que a dor da luz resume...
Como se pode observar em "Antífona", Cruz e
Sousa constrói três estrofes usando principalmente substantivos
e adjetivos, numa estrutura em que as formas alvas do primeiro verso são
desdobradas sucessivamente em formas claras, formas vagas, formas do amor.
Além disso, tais formas são classificadas como de luares..., de
virgens... e também como incensos, brilhos errantes, indefiníveis
músicas, harmonias da cor do perfume, réquiem do sol. Embora tenhamos
resumido os trechos citados das três estrofes, pode-se verificar que eles
constituem uma repetição da idéia inicial, que é
formas alvas. Essa constitui uma das chaves de leitura de "Broqueis":
Cruz e Sousa parte de uma idéia básica e vai construindo suas
muitas facetas, de tal forma que o poema parece estar dizendo sempre a mesma
coisa, quando de fato, ele está abordando as muitas possibilidades de
leitura de um determinado objeto, especialmente quando se trata de um conceito,
ou de um elemento abstrato como formas alvas. portanto, nesta obra, a repetição
não se apresenta apenas como um fenômeno sonoro, mas atinge também
os campos imagético, cromático, visual e ideológico.
POEMAS ENCONTRADOS EM GRUPOS TEMÁTICOS
Conforme Ivan Teixeira, nos 54 poemas de "Broquéis",
dos quais 47 são sonetos, podem ser encontrados sete temas básicos:
1 - Esboços de atmosfera vaga - neste grupo, estariam os poemas claramente
simbolistas de "Broqueis", onde se encontra uma relação
do poeta com o cosmo, seja por meio da louvação da luz dos astros
e da musicalidade dos espaço sideral, seja pela presença da vaguidade,
da abstração e da volatilidade dos elementos nas palavras de "Siderações",
"Em Sonhos". "Monja", "Lua", "Primeira Comunhão",
"Velhas Tristezas", "Vesperal", "Cristais", "Sinfonias
do Ocaso", "Música Misteriosa", "Ângelus",
"Sonata", "Incensos", "Luz Dolorosa".
2 - Metalinguagem - abordagem da criação literária, desenvolvendo
as teorias do poeta maldito e da incapacidade da palavra para expressar o mundo.
Poemas "Antífona", "Siderações", "Clamando...",
"Sonho Branco", "Torre de Ouro", "Sonhador", "Foederis
Arca", "Post Mortem", "Supremo Desejo", "Tortura
Eterna".
3 - Erotismo senusal - neste grupo estão os poemas mais próximos
da agressividade erótica e do satanismo herdados de Baudelaire. Por meio
desses recursos, é louvada a sexualidade excessiva e marginal em "Lésbia",
"Múmia", "Lubricidade", "Braços",
"Encarnação", "Tulipa Real", "Dança
do Ventre", "Dilacerações", "Sentimentos Carnais",
""Serpente de Cabelos.
4 - Erotismo espiritual - apresentação de uma perspectiva platônica,
abstrata e luminosa do amor, em "Canção da Formosura",
"Beleza Morta", "Deusa Serena", "Flor do Mar",
"Alda", "Lembranças Apagadas".
5 - Retratos extravagantes - abordagem de estados psíquicos e físicos
marcados pela anormalidade e pela extravagância, nos poemas "Satã",
"Afra", "Judia", "Tuberculosa", "Regenerada",
"Rebelado", "Majestade Caída".
6 - Visões Místicas - presença de uma visão religiosa,
mística e misteriosa do mundo, em "Cristo de bronze", "Regina
Coeli", "Noiva da Agonia", "Visão da Morte",
"Aparição".
7 - Alegorias pessimistas - representação do mundo como espaço
da dor e do sofrimento, numa enunciação reflexiva que conquistou
o público da época e está presente em "A Dor"
e "Acrobata da Dor".
Como pode ser verificado, alguns poemas encontram-se em mais de um grupo temático,
o que também mostra como os assuntos se repetem e se contaminam. Essa
redundância temática e formal constitui a principal contribuição
de "Broqueis" no sentido de abalar o edifício parnasiano (num
momento em que ele se encontrava ainda muito sólido), pela assunção
deliberada de uma nova forma de repetição como elemento de criação
estética.
Unindo idéias abstratas e variadas percepções sensoriais,
Cruz e Sousa elaborou uma obra que se destaca por mostrar a forte articulação
entre elementos aparentemente díspares como parnasianismo e simbolismo,
misticismo religioso e satanismo baudelairiano, imagens rutilantes e luzes noturnas,
espectros virginais e retratos extravagantes.
Com essa poética, a literatura brasileira pode experimentar novos tons
e novas formas, que não só reaticularam uma refinada tradição
clássica mas também abriram caminho para a revolução
modernista. "Broqueis" está justamente nessa encruzilhada,
nesse entre-lugar belo, produtivo e crítico da arte nacional.