FARÓIS

Estudo da Obra de Cruz e Sousa

Se em "Broquéis" predominam absolutamente os sonetos, FARÓIS contém menos sonetos e mais poemas longos. Se no livro anterior já emergia a concepção dramática da vida, em FARÓIS se intensifica esse senso trágico da existência atingindo níveis de morbidez e satanismo. Conscientiza-se o poeta cada vez mais do seu emparedamento. Avoluma-se na sua angústia ante o destino inclemente, como estabelece claramente "Meu Filho", um dos raros poemas referentes a família:

MEU FILHO

Ah! quanto sentimento! ah! quanto sentimento!
Sob a guarda piedosa e muda das Esferas
Dorme, calmo, embalado pela voz do vento,
Frágil e pequenino e tenro como as heras.
Ao mesmo tempo suave e ao mesmo tempo estranho
O aspecto do meu fiIho assim meigo dormindo...
Vem dele tal frescura e tal sonho tamanho
Que eu nem mesmo já sei tudo que vou sentindo.
Minh’alma fica presa e se debate ansiosa,
Em vão soluça e clama, eternamente presa
No segredo fatal dessa flor caprichosa,
Do meu filho, a dormir, na paz da Natureza

.Minh’alma se debate e vai gemendo aflita
No fundo turbilhão de grandes ânsias mudas:
Que esse tão pobre ser, de ternura infinita,
Mais tarde irá tragar os venenos de Judas!

Dar-lhe eu beijos, apenas, dar-lhe, apenas, beijos,
Carinhos dar-lhe sempre, efêmeros, aéreos,
O que vale tudo isso para outros desejos,
O que vale tudo isso para outros mistérios?!
De sua doce mãe que em prantos o abençoa
Com o mais profundo amor, arcangelicamente,
De sua doce mãe, tão límpida, tão boa,
O que vale esse amor, todo esse amor veemente?!
O longo sacrifício extremo que ela faça,
As vigílias sem nome, as orações sem termo,
Quando as garras cruéis e horríveis da Desgraça
De sadio que ele é, fazem-no fraco e enfermo?!
Tudo isso, ah! Tudo isso, ah! quanto vale tudo isso
Se outras preocupações mais fundas me laceram,
Se a graça de seu riso e a graça do seu viço
São as flores mortais que meu tormento geram?!
Por que tantas prisões, por que tantas cadeias
Quando a alma quer voar nos paramos liberta?
Ah! Céus! Quem me revela essas Origens cheias
De tanto desespero e tanta luz incerta!
Quem me revela, pois, todo o tesouro imenso
Desse imenso Aspirar tio entranhado, extremo!
Quem descobre, afinal, as causas do que eu penso,
As causas do que eu sofro, as causas do que eu gemo!
Pois então hei de ter um afeto profundo,
Um grande sentimento, um sentimento insano
E hei de vê-lo rolar, nos turbilhões do mundo,
Para a vala comum do eterno Desengano?!
Pois esse filho meu que ali no berço dorme,
Ele mesmo tão casto e tão sereno e doce
Vem para ser na Vida o vão fantasma enorme
Das dilacerações que eu na minh’alma trouxe?!

Ah! Vida! Vida! Vida! Incendiada tragédia,
Transfigurado Horror, Sonho transfigurado,
Macabras contorções de lúgubre comédia
Que um cérebro de louco houvesse imaginado!
Meu filho que eu adoro e cubro de carinhos,
Que do mundo vilão ternamente defendo,
Há de mais tarde errar por tremedais e espinhos
Sem que o possa acudir no suplicio tremendo.
Que eu vagarei por fim nos mundos invisíveis,
Nas diluentes visões dos largos Infinitos,
Sem nunca mais ouvir os clamores horríveis,
A mágoa dos seus ais e os ecos dos seus gritos.
Vendo-o no berço assim, sinto muda agonia,
Um misto de ansiedade, um misto de tortura.
Subo e pairo dos céus na estrelada harmonia
E desço e entro do Inferno a furna hórrida, escura.
E sinto sede intensa e intensa febre, tanto,
Tanto Azul, tanto abismo atroz que me deslumbra.
Velha saudade ideal, monja de amargo Encanto,
Desce por sobre mim sua estranha penumbra.
Tu não sabes, jamais, tu nada sabes, filho,
Do tormentoso Horror, tu nada sabes, nada...
O teu caminho e claro, é matinal de brilho,
Não conheces a sombra e os golpes da emboscada.
Nesse ambiente de amor onde dormes teu sono
Não sentes nem sequer o mais ligeiro espectro...
Mas, ah! eu vejo bem, sinistra, sobre o trono,
A Dor, a eterna Dor, agitando o seu cetro!



Poemas como "Pandemonium", "A Flor do Diabo", "Tédio", "Caveira", "Música da Morte", "Inexorável", "Olhos de Sonho", constituem alguns exemplos que acentuam os aspectos trágicos, macabros e mesmo satânicos da existência, conduzindo a cenas e descrições dramáticas. O poema final - "Ébrios e cegos", sintetiza em cores negras esse quadro:


"Mas ah! torpe matéria!
Se as atritassem, como pedras brutas,
que chispas de miséria
romperiam de tais almas corruptas!"

Cruz e Sousa não pouca tintas ou palavras para carregar sua cosmovisão de negro pessimismo, para caracterizar a degradação da matéria e da carne, para indicar os descaminhos dos instintos carnais e materiais, para evidenciar a deprimência da glória vã, do orgulho humano, do legado corporal. Nada mais vigoroso, nessa investigação implacável, do que o tom amargamente realista de "A ironia dos vermes".

A IRONIA DOS VERMES

Eu imagino que és uma princesa
Morta na flor da castidade branca...
Que teu cortejo sepulcral arranca
Por tanta pompa espasmos de surpresa.
Que tu vais por um coche conduzida,
Por esquadrões flamívomos guardada,
Como carnal e virgem madrugada,
Bela das belas, sem mais sol, sem vida.
Que da Corte os luzidos Dignitários
Com seus aspectos marciais, bizarros,
Seguem-te após nos fagulhantes, carros
E a excelsa cauda dos cortejos vários.
Que a tropa toda forma nos caminhos
Por onde irás passar indiferente;
Que há no semblante vão de toda a gente
Curiosidades que parecem vinhos.
Que os potentes canhões roucos atroam
O espaço claro de uma tarde suave,
E que tu vais, Lírio dos lírios e ave
Do Amor, por entre os sons que te coroam.
Que nas flores, nas sedas, nos veludos,
E nos cristais do féretro radiante
Nos damascos do Oriente, na faiscante
Onda de tudo há longos prantos mudos.
Que do silêncio azul da imensidade,
Do perdão infinito dos Espaços
Tudo te dá os beijos e os abraços
Do seu adeus a tua Majestade.
Que de todas as coisas como Verbo
De saudades sem termo e de amargura,
Sai um adeus a tua formosura,
Num desolado sentimento acerbo
Que o teu corpo de luz, teu corpo amado,
Envolto em finas e cheirosas vestes,
Sob o carinho das Mansões celestes
Ficará pela Morte encarcerado.
Que o teu séquito é tal, tal a coorte,
Tal o sol dos brasões, por toda a parte,
Que em vez da horrenda Morte suplantar-te
Crê-se que és tu que suplantaste a Morte.
Mas dos faustos mortais a regia trompa,
Os grandes ouropéis, a real Quermesse,
Ah! tudo, tudo proclamar parece
Que hás de afinal apodrecer com pompa.
Como que foram feitos de luxúria
E gozo ideal teus funerais luxuosos
Para que os vermes, pouco escrupulosos,
Não te devorem com plebéia fúria.
Para que eles ao menos vendo as belas
Magnificências do teu corpo exausto
Mordam-te com cuidados e cautelas
Para o teu corpo apodrecer com fausto.
Para que possa apodrecer nas frias
Geleiras sepulcrais d'esquecimentos,
Nos mais augustos apodrecimentos,
Entre constelações e pedrarias.
Mas ah! quanta ironia atroz, funérea,
Imaginária e cândida Princesa:
És igual a uma simples camponesa
Nos apodrecimentos da Matéria!



Mas, mesmo dentro dessa cosmovisão pessimista, persiste a sensualidade, o envolvimento dos sentidos na ânsia de viver. "Violões que Choram' é um dos poemas de maior musicalidade que a arte poética já produziu. Trata-se de verdadeira sinfonia de fertilíssima imaginação, com variações quase infinitas. Entretanto, da harmoniosa musicalidade de suas aliterações e modulações vocálicas, emerge uma trágica sensualidade, que se denuncia nas "harmonias que pungem, que laceram", no sons do violões" que "vão dilacerando e deliciando", no "concerto de lágrimas sonoras", despertando os "anelos sexuais de monjas belas / ciliciadas carnes tentadoras" e "fazendo ressoar "toda a mórbida música plebéia / de requebros de faunos e ondas lascivas". A velada sensualidade da monja desdobra-se em outros poemas, sobretudo em "Monja Negra", com suas "volúpias, seduções, encantos feiticeiros".
Mas esse envolvimento sensual faz-se sobretudo ressaltar nos sete sonetos que decantam as partes do corpo: cabelos, olhos, boca, seios, mãos, pés e corpo, numa seleção capaz de sintetizar as sensações mais impositivas no ser humano.

CABELOS

Cabelos! Quantas sensações ao vê-los!
Cabelos negros, do esplendor sombrio,
Por onde corre o fluido vago e frio
Dos brumosos e longos pesadelos...


Sonhos, mistérios, ansiedades, zelos,
Tudo que lembra as convulsões de um rio
Passa na noite cálida, no estio
Da noite tropical dos teus cabelos.


Passa através dos teus cabelos quentes,
Pela chama dos beijos inclementes,
Das dolências fatais, da nostalgia...


Auréola negra, majestosa, ondeada,
Alma da treva, densa e perfumada,
Lânguida Noite da melancolia!



OLHOS



A Grécia d’Arte, a estranha claridade
D’aquela Grécia de beleza e graça,
Passa, cantando, vai cantando e passa
Dos teus olhos na eterna castidade.

Toda a serena e altiva heroicidade
Que foi dos gregos a imortal couraça,
Aquele encanto e resplendor de raça
Constelada de antiga majestade,


Da Atenas flórea toda o viço louro,
E as rosas e os mirtais e as pompas d’ouro,
Odisséias e deuses e galeras...

Na sonolência de uma lua aziaga,
Tudo em saudade nos teus olhos vaga,
Canta melancolias de outras eras!...



BOCA



Boca viçosa, de perfume a lírio,
Da límpida frescura da nevada,
Boca de pompa grega, purpureada,
Da majestade de um damasco assírio.


Boca para deleites e delírio
Da volúpia carnal e alucinada,
Boca de Arcanjo, tentadora e arqueada,
Tentando Arcanjos na amplidão do Empírio,


Boca de Ofélia morta sobre o lago,
Dentre a auréola de luz do sonho vago
E os faunos leves do luar inquietos...


Estranha boca virginal, cheirosa,
Boca de mirra e incensos, milagrosa
Nos filtros e nos tóxicos secretos...



SEIOS

Magnólias tropicais, frutos cheirosos
Das árvores do Mal fascinadoras,
Das negras mancenilhas tentadoras,
Dos vagos narcotismos venenosos.


Oásis brancos e miraculosos
Das frementes volúpias pecadoras
Nas paragens fatais, aterradoras
Do Tédio, nos desertos tenebrosos...


Seios de aroma embriagador e langue,
Da aurora de ouro do esplendor do sangue,
A alma de sensações tantalizando.


Ó seios virginais, tálamos vivos
Onde do amor nos êxtases lascivos
Velhos faunos febris dormem sonhando...



MÃOS



Ó Mãos ebúrneas, Mãos de claros veios,
Esquisitas tulipas delicadas,
Lânguidas Mãos sutis e abandonadas,
Finas e brancas, no esplendor dos seios.


Mãos etéricas, diáfanas, de enleios,
De eflúvios e de graças perfumadas,
Relíquias imortais de eras sagradas
De amigos templos de relíquias cheios.


Mãos onde vagam todos os segredos,
Onde dos ciúmes tenebrosos, tredos,
Circula o sangue apaixonado e forte.


Mãos que eu amei, no féretro medonho
Frias, já murchas, na fluidez do Sonho,
Nos mistérios simbólicos da Morte!


PÉS



Lívidos, frios, de sinistro aspecto,
Como os pés de Jesus, rotos em chaga,
Inteiriçados, dentre a auréola vaga
Do mistério sagrado de um afeto.


Pés que o fluido magnético, secreto
Da morte maculou de estranha e maga
Sensação esquisita que propaga
Um frio n’alma, doloroso e inquieto...

Pés que bocas febris e apaixonadas
Purificaram, quentes, inflamadas,
Com o beijo dos adeuses soluçantes.


Pés que já no caixão, enrijecidos,
Aterradoramente indefinidos
Geram fascinações dilacerantes!

 

CORPO



Pompas e pompas, pompas soberanas
Majestade serene da escultura
A chama da suprema formosura,
A opulência das púrpuras romanas.


As formas imortais, claras e ufanas,
Da graça grega, da beleza pura,
Resplendem na arcangélica brancura
Desse teu corpo de emoções profanas.


Cantam as infinitas nostalgias,
Os mistérios do Amor, melancolias,
Todo o perfume de eras apagadas...


E as águias da paixão, brancas, radiantes,
Voam, revoam, de asas palpitantes,
No esplendor do teu corpo arrebatadas!


Formalmente, FARÓIS engloba poemas mais longos, com versos de medidas regulares, mas diferentes, inclusive versos curtos ( redondilhas maiores ) e variada estrofação. Evidendia-se sempre o esmero no uso do vocabulário erudito e seleto. o destaque de palavras, em maiúsculas, para indicar sua elevação a categoria absoluta, dentro da estilística simbolista, continua freqüente. Não obstante a deprimência de tom e a acentuação do senso trágico, sempre relacionados com a matéria, persiste a tendência em abstratizar, em diluir a realidade na aspiração ansiosa pelo vago, fluido e indefinido, como talvez melhor exemplificam as "tristezas incertas / esparsas, indefinidas" de Tristeza do Infinito.


"Anda em mim, soturnamente,
uma tristeza ociosa,
sem objetivo, latente,
vaga, indeciso, medrosa"

A presença do sonho continua sempre como opção compensadora do sufocante mundo material, mesmo que essa aspiração libertadora nunca seja de todo satisfeita. E em oposição aos aprisionantes laços materiais, abre-se um vago mundo superior, nas regiões siderais, no espaço, no céu, nas estrelas, nas constelações, nos astros, particularmente na branca lua.
Enfim, FARÓIS é conjunto de poemas que confirma a decisiva op;cão simbolista de Cruz e Sousa, não obstante encerre cosmovisão extremamente trágica e deprimente

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