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FINS DA CONFERÊNCIA
A Conferência destina-se a expor às forças políticas do regime certo
número de problemas da actualidade portuguesa nos domínios político,
social e económico; e, como primeiro acto duma campanha eleitoral, a
fazer solenemente a proclamação do candidato à Presidência da República.
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O REGIME E A IGREJA
Portugal nasceu à sombra da Igreja, e a religião católica foi desde o começo elemento formativo da alma da Nação e traço dominante do carácter do povo português. Nas suas andança pelo mundo - a descobrir, a mercadejar, a propagar a fé - impôs-se sem hesitações a conclusão: português, logo católico. Tiveram o restrito significado de lutas políticas e não de questão religiosa os dissídios dos primeiros séculos entre os Reis e os Bispos e os que mais tarde envolveram os governos e a cúria. Na nossa história nem heresias nem cismas; apenas vagas superficiais que, se atingiam por vezes a disciplina, não chegavam a perturbar a profunda tranquilidade da fé. A adesão da generalidade das consciências aos princípios de uma só religião e aos ditames de uma só moral, digamos, a uniformidade católica do País foi assim, através dos séculos, um dos mais poderosos factores de unidade e coesão da Nação portuguesa. Portanto factor político da maior transcendência; e por esse lado nos interessa.
Em virtude daquela mútua incompreensão a que aludira Garret - nós não compreendemos o frade... - o constitucionalismo recém-nascido destruiu as ordens religiosas, e com esse golpe não só diminuiu o potencial humano de apostolado, mas as riquezas afectas ao serviço religioso e às obras de assistência. Prudentemente, decerto para que nem tudo se perdesse, alguns bens apareceram transferidos para o património do Estado e dos políticos, mas a Igreja sofreu com o empobrecimento - que aliás é o menos - e através das restrições do princípio associativo, o mais duro golpe do século. E pode dizer-se que não mais se refez.
A consequente baixa cultura católica do povo não teve nos nossos dias senão um equivalente na incultura religiosa da massa dos dirigentes. A lei de separação de 1911 é na forma e essência das disposições a tradução de um jacobinismo atrasado de cem anos que desconhecia tanto o fenómeno religioso em si mesmo como a importância do factor católico na consciência nacional. A mesma possibilidade da existência das missões católicas no Ultramar que mais tarde se admitiu, foi pelo seu cunho de transigência e pela inópia de meios a confirmação de que era adversa a finalidade geral. Numa Europa que, àparte a Espanha e porventura a Itália, perdera a unidade da fé, mas em que a liberdade religiosa estava legalmente assegurada, o Estado atribuiu-se em Portugal um fim teológico negativo - desenraizar o catolicismo da alma do povo nalgumas gerações. E lá se foi o resto dos bens.
Neste montão de escombros materiais e morais, a Concordata de 1940 deve ser considerada, no domínio religioso, como a reparação possível das espoliações passadas e a garantia da liberdade necessária à vida e à disciplina da Igreja, ao exercício do culto e à expansão da fé. Mantendo o princípio da Separação como mais consentâneo com a divisão dos espíritos e a tendência dos tempos, ela dá à Igreja a possibilidade de se reconstituir e mesmo de vir a recuperar por tempos o seu ascendente na formação da alma portuguesa. Sob o aspecto político, a Concordata pretende aproveitar o fenómeno religioso como elemento estabilizador da sociedade e reintegrar a Nação na linha histórica da sua unidade moral.
Ora bem. A Igreja não tomará, não pode tomar posição num debate político: mas os católicos não podem manter-se indiferentes às suas consequências. Não vi ainda nada que expressamente se referisse ao problema religioso; mas conhecemos os homens e as suas ideias; sabemos das lligações e compromissos subterrâneos que mais uma vez pretenderiam impôr-se à Nação; vimos escrita a intenção genérica de destruir a obra realizada nos últimos vinte anos. Não era porém necessário anunciar o propósito: nem a questão religiosa seria reposta nos mesmos termos. Tornou-se hoje corrente em muitos países que se deixam dominar pelas chamadas forças libertadoras, acusar Deus de conspirar contra o Estado...
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O REGIME E A SUA EVOLUÇÃO FUTURA
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Temos de reconhecer que não alcançámos ainda soluções satisfatórias
para todos os problemas constitucionais do regime, e só por esse motivo
este deve admitir reformas mais ou menos vastas. Isto é uma questão:
outra é saber se está sujeito a revisões sucessivas o conjunto dos seus
princípios e dos seus caracteres essenciais. Se isso pudesse ser é que o
regime, em vez de saudável tendência para progredir e aperfeiçoar-se,
teria consagrado o princípio da sua mesma instabilidade e desenvolvido
no seu seio o germe da sua própria destruição. Todos porém estarão de
acordo em que este facto criaria à vida política nacional uma série de
crises lamentáveis, sempre que se devesse recorrer ao eleitorado.
Os que, tendo servido nas organizações políticas do passado, têm
persistido em não dar ao País a sua colaboração de homens públicos
através da actual situação política, só pensam no retorno à livre
organização dos partidos; e não há dúvida de que o excessivo recurso ao
eleitorado de tipo individualista lhes permite alimentar esperanças de
regressão. Mas não há também dúvida de que por tal caminho se assistiria
de novo à agitação e fragmentação partidária, à mesma desordem
parlamentar, à mesma instabilidade governativa, à mesma impotência
constitucional ou efectiva do Chefe do Estado. E esta seria ainda a
melhor hipótese.
Não. O regime não tem de destruir-se; tem de completar a sua evolução
e a crise actual patenteia a todos essa necessidade. Não tem de admitir
ou enxertar na sua estrutura os princípios contrários, mas tem de
desenvolver a aplicação dos próprios. E, não devendo ser precipitada,
essa evolução terá de realizar-se sem paragens e sem hesitações. Pelo
menos deverá ser esta a última vez em que é tecnicamente possível um
golpe de Estado constitucional.
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A Oposição vai fazer a sua campanha eleitoral, pregar nos termos mais
pacíficos, já se vê, a sua guerra civil. Suponho que pouco dirá
de questões concretas e instantes da Nação, porque não lho permitem a
heterogeneidade dos seus elementos constitutivos, as divergências
ideológicas e o cuidado de não pôr a descoberto o apoio dos comunistas.
Vai por isso insistir especialmente na campanha da Liberdade,
como único ponto possível de acordo, aliás provisório. Da
Liberdade esperará que desabrochem depois espontaneamente a
ordem, a prosperidade, as soluções práticas dos problemas. Sendo assim,
revelar-se-á que está ultrapassada pelas ideias e realidades do nosso
tempo e pertence ainda - sombras vagas, errantes - a um passado que não
pode ressuscitar.
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(*)Excertos de «O Meu Depoimento» (discurso de
Salazar na sessão inaugural da II Conferência da
União
Nacional, no Porto, em 7 de Janeiro de 1949)