Georg Simmel - "A Ponte e a Porta" - Política & Trabalho 12 - set/1996 - PPGS-UFPb

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Política e Trabalho 12 - Setembro / 1996 - pp. 10-14


A PONTE E A PORTA (1)

Georg Simmel


A imagem do exterior nos confronta com a ambigüidade das coisas que tanto podem se interrelacionar por associação-dissociação quanto passar por separadas ou ligadas. As convenções ininterruptas tanto das substâncias como das energias, põem cada objeto em relação com outro, e constituem um cosmos em todos os detalhes. Mas estes mesmos objetos, por outro lado, permanecem votados à impiedosa exterioridade espacial, e como nenhum fragmento de matéria pode ocupar o mesmo lugar que outro, não há real unidade do múltiplo no interior do espaço. E a existência natural, compreendendo também noções que se excluem, parece se subtrair pura e simplesmente à sua aplicação.

Só ao homem é dado, diante da natureza, associar e dissociar, segundo o modo e a intensidade especial em que um supõe saber sobre o outro. Extraindo dois objetos naturais do seu lugar para dizer que estão "separados", nós já os referimos um ao outro na nossa consciência, nós os destacamos juntos do que se intercalava entre eles. E inversamente lembramos daquilo que nós de uma certa maneira começamos por isolar respectivamente; é preciso primeiro que as coisas estejam umas fora das outras para estar em seguida umas com as outras. Seria absurdo, pratica e logicamente voltar a unir o que não estava separado, ver o que, num sentido, não permanece separado. A fórmula segundo a qual se conjugam, nas operações humanas estas duas atividades - seria o estado de união ou de cisão que é percebido como naturalmente dado e o seu contrário a cada vez como tarefa que nos é fixada? - esta fórmula então, articula todo o nosso fazer. Num sentido imediato assim como simbólico, corporal e espiritual, a cada instante somos nós que separamos o que está ligado ou voltamos a unir o que está separado.

Os primeiros homens que traçaram um caminho entre dois lugares, cumpriram uma das maiores tarefas humanas Mesmo que podendo circular de um lugar para outro, ligando-os por assim dizer subjetivamente, ainda foi necessário que gravassem visivelmente o caminho sobre a terra para que esses lugares pudessem ser ligados de novo; o desejo de junção passava então a ser uma tomada de forma das coisas oferecidas a [fim da página 10] essa vontade a cada vez, sem depender cada vez mais da freqüência ou da variedade dos trajetos recomeçados. A construção de estradas é de certa maneira uma prestação especificamente humana; o animal também não deixa de superar distancias, e sempre do modo mais hábil e mais complexo, mas ele não faz ligação entre o começo e o fim do percurso, ele não opera o milagre do caminho: a saber, coagular o movimento por uma estrutura sólida, que parta dele.

É com a construção da ponte que esta prestação atinge o seu ponto máximo. Aqui parecem se opor à vontade humana de juntar espaços não só a resistência passiva da exterioridade espacial mas a resistência ativa de uma configuração particular. Superado o obstáculo, a ponte simboliza a extensão da nossa esfera volitiva no espaço. Para nós, e só para nós, as margens do rio não são apenas exteriores uma à outra, mas "separadas"; e a noção de separação estaria despojada de sentido se não houvéssemos começado por uni-las, nos nossos pensamentos finalizados, nas nossas necessidades, na nossa imaginação. Mas a partir desse momento, a forma natural vem esposar essa noção como por uma intenção positiva, e a separação parecerá desde então intervir entre os elementos tomados em si e por si, a fim de que o espírito, conciliando, unificando, a ultrapasse cada vez mais.

A ponte se torna um valor estético, não somente quando estabelece, nos fatos e para a realização dos seus objetivos práticos uma junção entre termos dissociados, mas também na medida em que a torna imediatamente sensível. Ela oferece ao olhar, ligando as partes da paisagem, o mesmo suporte que oferece ao corpo para satisfazer a realidade da praxis. A simples dinâmica do movimento, em cuja efetividade vem se esgotar a cada vez o "objetivo" da ponte se faz visualmente durável, assim como o quadro imobiliza à sua maneira o processo vital, físico e psíquico pelo qual se cumpre a realidade do homem, e que ele comprime numa única visão - estável pela sua intemporalidade, como não mostra nem pode mostrar a realidade factual - toda a agitação desta realidade que decorre no tempo. A ponte empresta um sentido último, superior a todo o sensível, uma figura particular que não mediatiza nenhuma reflexão abstrata e que recolhe em si a significação prática da ponte, trazida à forma visual, como a obra de arte pode proceder com o seu "objeto". Não obstante, com relação a esta última, a ponte apresenta uma diferença: ela se integra, com toda a sua faculdade de síntese que ultrapassa a natureza, à imagem da própria natureza. Para o olhar, a ponte se encontra numa relação bem mais estreita e bem menos fortuita com as margens por ela ligadas, do que por exemplo, uma casa com o terreno que a comporta e desaparece [fim da página 11] debaixo dela, ao olhar. Em geral, percebe-se uma ponte numa paisagem como um elemento "pitoresco"; com ele, efetivamente, a contingência do dado natural se eleva à unidade, uma unidade totalmente espiritual sem dúvida. Mas essa unidade, pela sua visibilidade imediata no espaço não possui menos valor estético de que a arte oferece a versão pura, quando ela realiza o seu ideal insular, a unidade das realidades simplesmente e naturalmente produzidas pelo espírito.

Enquanto na correlação entre divisão e reunião, a ponte acentua o segundo termo e supera o distanciamento das suas extremidades ao mesmo tempo que o torna perceptível e mensurável, a porta ilustra de maneira mais clara até que ponto separação e reaproximação nada mais são do que dois aspectos do mesmo ato. O primeiro homem que construiu uma cabana, revelou, como o primeiro que traçou um caminho, a capacidade humana específica diante da natureza, promovendo cortes na continuidade infinita do espaço e conferindo-lhe uma unidade particular conforme a um só e único sentido. Uma porção de espaço se encontrava assim ligado a si e cindido de todo o resto do mundo. A porta, criando por assim dizer uma junção entre o espaço do homem e tudo o que se encontra fora dele, abole a separação entre o interior e o exterior. Como ela pode também se abrir, o fechá-la dá a impressão de um fechamento, de um isolamento ainda mais forte, face a todo espaço lá fora, do que a simples parede inarticulada. Esta última é muda enquanto que a porta fala. Para o homem é essencial, ao mais profundo dar-se limites, mas livremente, quer dizer de maneira que possa vir a suprimir tais limites e se colocar fora deles.

O finito onde estamos todos situados de certo modo está ligado ao infinito do ser físico e metafísico. A porta se torna então a imagem do ponto fronteiriço onde o homem, em permanência, se mantém ou pode se manter. A unidade interrompida à qual ligamos um pedaço determinado por nós do espaço infinito, nos liga por sua vez a este último: nela o limite se aproxima do ilimitado, não através da geometria morta de um fechamento estritamente isolante, mas através da possibilidade de uma troca durável - à diferença da ponte que liga o finito ao finito; mas que por sua vez nos conduz, quando a atravessamos, a estas realidades sólidas e nos terá forçosamente concedido, antes que a habituação cotidiana nos retarde as reações, o bizarro sentimento de planar por um instante entre o céu e a terra. Enquanto a ponte, linha estendida entre dois pontos, prescreve uma segurança, uma direção absolutas, a porta é feita de modo que por ela a vida se expande além dos limites do ser-para-si isolado, até na ilimitação de todas as orientações. [fim da página 12]

Se, na ponte, os fatores de dissociação e de religamento se cruzam de tal maneira que o primeiro mais parece coisa da natureza, o segundo parece coisa do homem, um e o outro, com a porta se concentram de modo mais igual enquanto prestação humana. Aí está o sentido mais rico e mais vivo da porta comparada à ponte, sentido que se revela logo pelo fato de que é indiferente atravessar uma ponte numa direção ou na outra, enquanto a porta indica ao contrário uma total diferença de intenção a depender se se entra ou se se sai. Nisso ela se distancia também do sentido da janela, se bem que esta, a título de ligação entre o espaço interior e o mundo exterior, se aparente à porta. O sentimento teleológico, quando se trata da janela, vai quase unicamente do interior ao exterior: ela serve para olhar para fora e não para dentro. Sem dúvida, ela estabelece, em virtude da sua transparência, a ligação entre o interior e o exterior por assim dizer cronicamente e continuamente; mas a direção unilateral que ela imprime a essa ligação e a restrição que a limita como um caminho para o olhar, conferem à janela só uma parte da significação profunda e principal da porta.

É certo que a situação particular pode também acentuar um aspecto da sua função, mais que outro. Nas catedrais romanas ou góticas a abertura das paredes se estreita progressivamente no sentido da porta estritamente dita e quando se a atinge entre meias colunas e imagens cada vez mais próximas uma da outra, o sentido atribuído a esse gênero de portas é visivelmente que elas conduzem para o interior e não para o exterior, sendo este segundo caso um uma questão de necessidade. Uma tal estrutura conduz o chegado pelo caminho certo, como uma segurança,, como uma doce pressão vinda de si mesmo. (Esta significação prolonga, e eu a menciono por analogia, a sucessão dos pilares entre a entrada e o altar-mor. Pela sua proximidade que forma perspectiva, esses pilares mostram a via, nos guiam sem tolerar qualquer hesitação - e não seria assim se nós percebêssemos realmente a sua disposição paralela; pois o fim não apresentaria nenhuma diferença com o começo e nada marcaria onde devemos começar e terminar. Mas tão maravilhosamente quanto se usa aqui da perspectiva para a progressão ao interior da igreja, ela se presta também ao encaminhamento inverso e deixa então a sucessão de pilares nos conduzir, por uma retração idêntica, do altar-mor à entrada. Só a forma exteriormente cônica da porta faz da entrada, por oposição à saída, o sentido daquela sem o menor equívoco. Mas se trata justamente de uma situação única no seu gênero, que simboliza o fato de que com a igreja o movimento da vida, orientado em partes iguais do interior para o exterior ou do exterior para o interior, se termina e se vê substituído enquanto [fim da página 13] única orientação. Quando à vida no plano terrestre, que joga a cada instante uma ponte entre as coisas despojadas de lugar, ela se encontra tanto no interior como no exterior da porta em cada um desses instantes, porta por onde ela sai do seu ser-para-si a fim de entrar no mundo, na mesma medida em que ela sai do mundo para entrar de novo no seu ser-para-si.

As formas que regem a dinâmica da nossa vida são de certo modo trazidas pela ponte e pela porta à duração sólida de uma criação visível. Elas não são simplesmente elementos adequados para assumir a pura teleologia funcional dos nossos movimentos mas a imobilizam na sua forma em obras plásticas convincentes. A considerar os acentos opostos que dominam no efeito dado, a ponte vai mostrar como o homem unifica a cisão do ser puramente natural, e a porta, ao contrário, como deste ser natural ele cinde a uniformidade contínua. É na significação estética geral obtida por esta visualização de um elemento metafísico e por esta estabilização de um elementos funcional que repousa o valor especial, para as artes plásticas, da ponte e da porta. Se sem dúvida se pode atribuir ao valor artístico da sua simples forma a freqüência com a qual a pintura se serve de um e de outro, se produz igualmente aí esse encontro misterioso pelo qual a importância e a perfeição puramente artísticas de uma figura se apresentam sempre ao mesmo tempo, como expressão exaustiva de um sentido não visível em si, psíquico ou metafísico: o interesse estritamente pictórico, ligando-se somente à forma ou à côr, do rosto humano, por exemplo, é então satisfeito ao ponto máximo quando a representação deste compreende o maior grau de animação e de caracterização espiritual.

Porque o homem é o ser de ligação que deve sempre separar, e que não pode religar sem ter antes separado - precisamos primeiro conceber em espírito como uma separação a existência indiferente de duas margens, para ligá-las por meio de uma ponte. E o homem é de tal maneira um ser-fronteira, que não tem fronteira. O fechamento da sua vida doméstica por meio da porta significa que ele destaca um pedaço da unidade ininterrupta do ser natural. Mas assim como a limitação informe toma figura, o nosso estado limitado encontra sentido e dignidade com o que materializa a mobilidade da porta: quer dizer com a possibilidade de quebrar esse limite a qualquer instante, para ganhar a liberdade.

Nota

1) Traduzido pela professora Simone Carneiro Maldonado (DCS-UFPb).


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Universidade Federal da Paraíba  |  Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb


Este site foi modificado pela última vez em 18 de Outubro de 1999, por Carla Mary S. Oliveira.


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