Gilberta Santos Soares - A Subjetividade da Experiência do Abortamento - Política & Trabalho 14 - set/1998 - PPGS-UFPb

Copyright© 1996, 1997, 1998, 1999 PPGS-UFPb. Todos os Direitos Reservados. Nenhuma cópia deste artigo pode ser distribuída eletronicamente, em todo ou em parte, sem a permissão estrita da revista Política & Trabalho. Este modo revolucionário de publicação depende da confiança mútua entre o usuário e o editor. O conteúdo dos artigos publicados é de inteira responsabilidade de seus autores.

Política e Trabalho 14 - Setembro / 1998 - pp. 61-74


A SUBJETIVIDADE DA EXPERIÊNCIA DO ABORTAMENTO

Gilberta Santos Soares (1)


Neste artigo buscamos descortinar alguns aspectos subjetivos do abortamento. Detemo-nos na subjetividade e na elaboração ética de um grupo de mulheres, que compartilharam suas experiências de abortamento na conversação(2).

O abortamento insere-se na dimensão sócio-política, sendo uma experiência que soma fatores subjetivos a objetivos. A clandestinidade, como um fato concreto, interfere diretamente na produção da subjetividade, complexificando a rede de significados que envolve a compreensão do abortamento e da gravidez (in)desejada. Estamos considerando como simbólico, o conjunto de representações sociais - R.S. - (Jodelet, 1991) das mulheres a respeito do abortamento, associadas as da maternidade, considerando a simbolização investida de afetividade (3).

A existência do abortamento pressupõe a impossibilidade de prosseguir a gravidez. Subjetivamente falando, a gravidez (in)desejada é aquela que se produz em condições nas quais há uma dubiedade do desejo de ser mãe. Indesejada desde que, concretamente, não se dá seguimento, nem deságua na vivência da maternidade porque resulta em abortamento. Desejada, desde que acontece num contexto onde a conotação naturalizante-biologicista dos sexos (Bandeira & Siqueira, 1989) destina à reprodução o lugar primordial da afirmação do [fim da página 61] feminino. Este fator simbólico em ação é considerado fundamental na constituição do desejo de ser mãe.

Porém o processo de desejar e não a maternidade provoca sentimentos de dubiedade, e esta faz com que a gravidez se torne ambígua, coexistindo desejo, não desejo ou mesmo outros desejos que se colocam como excludentes à maternidade. Esta abordagem da gravidez (in)desejada pode ser sintetizada na afirmação de que o desejo de engravidar na nossa cultura nem sempre corresponde ao desejo de ter o filho. Olivier refletindo sobre esta ambivalência diz:

"A 'programação' do desejo que organiza uma prática contraceptiva pode ser colocada em questão, quando ocorre um esquecimento, um branco, que engendra, 'apesar de tudo uma gravidez' ." (1985: 98)

A importância atribuída à maternidade pela nossa sociedade na vida das mulheres pode ser um fator determinante na produção do desejo de ser mãe. Como aspectos desta produção, não podemos esquecer da concretude da disponibilidade biológica para a reprodução do corpo da mulher e da presença da figura da mãe - arquétipo no sentido junguiano (Jung, 1964) - em todas as culturas através dos tempos.

Por isso podemos apontar que o engravidamento também é gerado nos recônditos do desejo, o desejo de ser mãe, de constituir uma família, de comprovar o potencial reprodutivo e, em última instância, de confirmação da feminilidade. Longe de se constituir como um fato natural na vida das mulheres, o desejo e o não desejo de ser mãe são produzidos a partir de determinantes culturais.

Supõe-se que os motivos da gravidez (in)desejada não estão relacionados apenas com motivos objetivos, como a falta de condições concretas de regular a própria fertilidade. Também estariam relacionados com outras questões, inscritas na esfera da subjetividade, dos afetos, a respeito dos desejos e da auto afirmação das mulheres, como constata Prado:

"(...) em outras mulheres é o desejo de provar a si próprias que são 'normais', são mulheres, poderiam ter filhos caso o desejassem, apesar de mais velhas, de defeitos físicos que possuem etc. Estas atitudes refletem a valorização social da maternidade. Constatada sua fertilidade, recorrem ao aborto para interromper essa gravidez que nunca foi planejada visando sua reprodução." (1984:23)

As representações do abortamento enraízam-se nas relações de gênero (Heilborn, 1992) e no processo das mulheres de construção da [fim da página 62] representação delas mesmas, sobretudo a partir da ênfase social da reprodução e da maternidade como atributos naturais, e do rompimento com esses padrões. Neste sentido, inserimos o surgimento da gravidez (in)desejada, que tem como desfecho o abortamento, nos conflitos resultantes do processo de transformação do sistema sexo/gênero e no modo como as mulheres representam as exigências culturais em torno do ser mulher.

O QUE SENTE E FALA A MULHER QUE FEZ ABORTO?

Determinante das condições de realização e importante na configuração da subjetividade de quem aborta, a clandestinidade é um fato marcante que transparece na fala das entrevistadas. A questão sócio-política do aborto vincula-se a subjetividade e é um pano de fundo para a coragem, medos, solidão e ousadia na decisão de cada mulher.

"Eu acho que é uma coisa muito desgastante a história da clandestinidade, foi horrível. Eu acho que quando sair dessa clandestinidade, as seqüelas subjetivas vão ser amenizadas, a gente vai poder construir outra forma de ver. É uma coisa que mexe muito, mas que mexe também por conta dessa coisa escondida, parece que você tá cometendo um crime ou morrendo!"
(S. 33 anos)

A clandestinidade é um aspecto negativo e produz sentimentos difíceis e dolorosos. A proibição não evita o fato em si e o camufla no silêncio, poluindo o sentir, levando-o ao esquecimento. Uma experiência clandestina está socialmente interditada e por isso tem que ficar no espaço do silêncio social. Para algumas mulheres, a experiência ficou envolta em sentimentos de confusão e nebulosidade, as lembranças fogem da memória e o processo esconde-se em nuvens escuras de esquecimento. Considerando que o ser humano apreende o mundo e a si mesmo através da linguagem, a imposição do silêncio sobre determinada vivência pode provocar um dano na apreensão do sujeito sobre sua própria história, como também poderá implicar na paralização do registro da experiência como traumática.

"Pra mim, eu tenho que admitir que é uma coisa meio nebulosa. Eu não me lembro de alguns detalhes... eu não consigo me lembrar de sentimentos fortes que eu realmente senti. Porque será que eu não me lembro? Bom, eu também fiquei reticente assim, eu vou ou não vou, até que ponto é bom voltar a falar nisso...".
(E. 37 anos)

[fim da página 63]

Buscando mergulhar nas representações de um ponto de vista destituído de preconceitos e julgamentos morais ou religiosos, procuramos compreender a ética das mulheres que abortaram. Captar os significados dessa experiência para elas, identificando o que há em comum e respeitando as singularidades da nossa amostra, assim como aquelas próprias de cada processo individual.

De início, é interessante falar do quanto é complexa para as mulheres a decisão pela interrupção voluntária da gravidez. Geralmente significa um conflito imediato frente as condições de clandestinidade e a complexidade ética da decisão de abortar, que se traduz num evento na vida reprodutiva e sexual das mulheres. A dimensão da vida e da morte é expressa no poder de gerar e interromper a vida e nos riscos físicos e morais presentes na interrupção. Além de exigir uma decisão urgente, transita entre o exercício da autonomia e direitos e as proibições da igreja e do estado.

Existe ainda o fato de elucidar o desejo para si mesma como elemento na tomada de decisão. Por tudo isso trata-se de uma situação limite que mexe com as profundezas da interioridade: o desejo e a racionalidade, colocando cada um frente a frente, num contexto de clandestinidade, decisão, urgência e solidão.

"(...) as condições em que a gente faz (...) porque se diz que a gente tá correndo risco de vida, tem o medo da morte. Nessa hora a gente tá lutando pela própria vida. Acho que tem uma coragem enorme ai de enfrentar todas essas coisas".
(V., 37 anos)

"(...) tanto o aborto como a maternidade, as duas coisas me fez sentir uma mulher muito poderosa. Eu tenho o poder de fazer, de existir, enfim o poder que isso me dá enquanto mulher."
(A., 43 anos)

O fato de lutar pela própria vida pressupõe que há uma ameaça contra a mesma. No abortamento esta refere-se aos fatores de risco presentes na interrupção, próprios da situação de clandestinidade. Neste sentido, é importante registrar como a intervenção clínica pode representar uma ameaça para a integridade física, pela precariedade das condições e pelos procedimentos inseguros em que o aborto é realizado. A marginalidade impregnada no ato de abortar remete aos riscos morais que se traduzem na eminência da recriminação, condenação ou punição pelas instituições reguladoras da sociedade.

A regulamentação do aborto pelos diversos poderes: igreja, estado, ciência (medicina e psicologia) sobrecarrega a vivência de [fim da página 64] normas, rótulos e punições, produzindo e impondo uma ética universal, antagônica à realidade das mulheres. A moral cristã traz a concepção restrita do aborto como uma forma de "tirar a vida".

Do ponto de vista da ética das mulheres, é uma experiência que envolve uma decisão individual ou de dois, que na grande maioria das vezes está nas mãos da mulher, desde que essas mãos possam estar falando de todo seu corpo. É um acontecimento pessoal que se inscreve na corporeidade (4) das mulheres e por isso deriva uma subjetivação em si particular, onde os processos corporais são fundamentais na estruturação emocional e representacional do engravidar e abortar e na construção da ética de quem o vivencia. Na fala das mulheres, ecoa a luta pela vida.

Falar de aborto é falar de uma questão extremamente íntima, pessoal e subjetiva, "Afirmamos que el aborto se inscribe en una compleja trama de factores personales, biológicos e socioculturales que lo hacen un evento único, distinto para cada mujer, portanto no generalizable" (Cardich, 1993: 18). Esta afirmação é pertinente com os discursos das entrevistadas, mesmo para mulher que tenha vivido mais de uma experiência, estas são diferentes e dependem do momento de vida e das circunstâncias em que acontecem. Por isso a complexidade também reside no processo de individuação do qual fala cada subjetividade:

"Aborto é muita coisa pra mim, é muita coisa dependendo da situação em que se faz. E essa muita coisa que eu tô dizendo vai depender muito do momento em que eu estou vivendo. ... Em nenhum eu estava vivendo a mesma história, sempre tem coisas diferentes, sempre tem momentos diferentes."
(V., 37 anos)

SEGREDOS NA FAMÍLIA: SEXO E ABORTO

A família como protagonista importante na história da constituição do sujeito, não poderia estar ausente como uma referência na subjetividade de quem aborta. Contudo essa centralidade dá-se muito mais por medo e pressão do que pelo apoio que possa se receber, principalmente dos pais. Em alguns casos pode-se contar com a mãe, uma irmã ou um parente mais distante, em outros o silêncio com a família é total. Contrariamente ao apoio que se precisa, da família esconde-se e existe medo que a mesma possa descobrir. O fato de não contar à família relaciona-se à recriminação do aborto, à clandestinidade do [fim da página 65] tema, à religiosidade dos pais que dificulta o enfrentá-la quando se toma essa decisão.

"E pesou toda essa questão da família também. Meu pai, acho, que iam morrer de desgosto se soubesse que ... eu tava grávida. Porque eu já sai de casa há um tempo, mas assim, eles nunca admitiram que eu posso tá tendo relações e tal."
(V., 22 anos)

A maior dificuldade, sem dúvida, é o pai, pois este é o símbolo da autoridade. A barreira de comunicação com o pai é muito maior do que com a mãe. Mesmo quando a mãe não concorda, ela pode aceitar e apoiar a decisão da filha, em nome de uma cumplicidade construída na semelhança.

No caso das mulheres entrevistadas, um fato interessante é que a dificuldade de enfrentar a família não diz respeito apenas ao aborto, assumir a gravidez também pode ser muito difícil. Isto porque estar grávida significa estar vivendo a sexualidade, estar livre, ser sexualmente ativa, e esta vivência também é clandestina quando acontece fora de um casamento ou de uma união estável, com características de casamento.

"Eu não faria, se eu pudesse naquela época ter essas condições, eu não teria feito. Eu dizia: 'Faço mais pela minha mãe do que por mim'. Porque eu tinha estrutura pra segurar toda a situação, mas eu sabia que ela não tinha pela própria história de família, de vida. Ela sozinha pra criar os filhos e todo mundo em cima dela, será que ela tá criando os filhos bem?"
(F., 32 anos)

Aparece não só a preocupação de desapontar, mas uma certa cumplicidade com a história de vida da mãe, que responsabilizou-se pela família, diante da ausência do pai. A cumplicidade no sentido de proteger a mãe de cobranças quanto a vivência de sua própria sexualidade. A repressão sexual está muito presente na vida das mães e, também, das filhas. As iniciativas de rompimento da moral vigente, sobretudo das últimas, enfrentam preconceitos, esbarrando, muitas vezes, na imposição dos modelos de comportamento e na contradição interna de cada mulher.

CULPA E CASTIGO - AS MARCAS DA RELIGIÃO

A religiosidade também é uma referência significativa na construção da subjetividade relativa ao aborto. Mesmo que não se tenha uma prática religiosa ou quando não se considera como pertencente a [fim da página 66] uma religião, essa referência é herdada dos pais, da educação familiar e está profundamente impregnada em cada pessoa. Os dogmas religiosos vão de encontro a prática do aborto, trazendo uma série de sentimentos negativos para aquelas que o vivenciaram, como a culpa, o pecado e o castigo.

"Eu tenho formação Católica Apostólica Romana e embora não seja praticante, não acredite, não siga os dogmas da igreja, eu fui educada nisso. Embora eu diga pra mim mesma, que não é a minha culpa, minha tão grande culpa, lá no fundinho, ela aparece, lá longinho ela aparece, da consciência coletiva, do meu arsenal que não é só individual, mas é coletivo."
(A., 26 anos)

Na nossa amostra, os valores religiosos estão muitos escondidos e emergem do fundo da consciência diante das contingências da vida, surpreendendo as próprias mulheres. A forma de reagir ao aborto, de abordá-lo nos discursos são um termômetro dos resíduos de culpa, como parte de uma memória constituída no valor religioso. A noção de pecado traz colada a idéia do castigo, que se apresenta na própria esfera reprodutiva, como o medo da esterilidade, ou de que os futuros filhos possam nascer com deficiências físicas ou mentais. Estas circunstâncias são favoráveis ao surgimento do arrependimento.

"Só agora que a gente tem sete anos de relação, ai eu tive um problema ginecológico, suspeita de não poder ter mais filho. Ai foi quando eu vim afetar psicologicamente... E se a gente não tivesse feito o aborto, tava com o neném."
(R., 30 anos)

Porém, como abortar não se restringe a uma definição, a dogmas e conceitos que tentam regulamentar a partir de uma única visão, as mulheres asseguram sua decisão e o aborto aparece como uma transgressão aos saberes instituídos: igreja, família, ciência.

"Eu coloco na minha cabeça: O que é pecado? Quem diz que aquilo é pecado? Por que diz? Tem na bíblia? Quem foi que escreveu, tá entendendo? Acho que tem que tentar respeitar a pessoa."
(R., 37 anos)

QUEBRANDO O SILÊNCIO - EXPRESSÃO DE AUTONOMIA

Querer ou não a gravidez pode mudar significativamente os sentimentos relativos ao aborto, podendo ser algo vivido com [fim da página 67] sofrimento, dor, dúvidas ou com alívio e determinação. É comum que os sentimentos se misturem nas falas, mostrando sua pluralidade e a polifonia a qual todo discurso está subordinado. As representações sociais são produtos da dialogia social.

"Os abortos aconteceram em vários momentos da minha vida, então cada um tem uma história. O primeiro aborto que eu fiz foi pra dar fim a algo indesejado, sei lá um momento de irresponsabilidade minha talvez, mas eu senti um alívio. Já o segundo foi uma coisa muito sofrida que era uma coisa que eu queria mesmo, na conjuntura não era possível."
(S., 31 anos)

A unidade discursiva faz supor um momento transicional nas mentalidades do grupo pesquisado. Valores tradicionais presentes no sistema de relação sexo/gênero, preceitos religiosos se emparelham com noções de autonomia, direito e transgressão, mostrando uma imbricação nas representações sociais sobre o aborto. Um evento que é visto de vários pontos de vista as vezes aparentemente contraditórios, paradoxais ou complementares.

"De certa forma lhe dá um certo prazer a gravidez porque voce descobre que é fértil. Ai voce se sente aquela coisa meio feminina, meio cultural como se a mulher, só é mulher se for mãe. Aquela coisa que voce cresce ouvindo ai fica por ai. Aí o abortamento pra mim foi essa coisa de botar pra fora algo, botei pra fora também e acabei externando um sentimento.
(...) Não eram questões financeiras que me impediam de ter, o que pesava era o meu momento, os meus objetivos de vida. Aquilo ia mudar todo o meu percurso, eu ia ter que renunciar uma série de coisas que eu tava querendo."
(C., 32 anos)

O discurso acima fala de "botar pra fora", algo mais que o aborto (5). Talvez botar pra fora os modelos tradicionais de comportamento, expelir um paradigma conservador de vida. Interromper a gravidez, cortar. A significação de cortar, por sua vez, é muito ampla e dá sentido a vivência de abortar: "separar, suprimir, perder, eliminar, atravessar, cavar, aparar, divisão" são expressões também usadas pelas mulheres ao longo dos discursos.

[fim da página 68]

Como se o (in) desejo (6) da gravidez oportunizasse o se colocar em questão como mulher: Que mulher eu quero ser ? Que caminho quero seguir? Nesta perspectiva o aborto ocupa um lugar de busca, de desconstrução do feminino, de quebra da circularidade da reprodução obrigatória passada da avó para mãe, para filha. Um evento no processo de construção do ser mulher, a partir de outros parâmetros que, gradativamente, passam a fazer parte do sistema de relação sexo/gênero. Fala da experiência de constituir-se fora da dualidade homem-opressor/mulher-oprimida.

Estas significações do aborto podem estar anunciando a ruptura com os modelos passados pelo pai e pela mãe. A gravidez e a iminência da maternidade fazem emergir referências, imagens do que é ser homem e mulher, remexendo na vivência particular de cada uma. Quando aborta, expulsa os modelos, a história de vida de relações familiares. Poderíamos falar simbolicamente, da morte da mãe e do pai interiorizados como referencial de comportamento.

"Então o medo de reproduzir aquela mesma família, então pra mim chegar a ter desejo (...). O terceiro não era conscientemente o desejo (...). Não era meu namorado, era o meu amigo que eu dividia casa com ele, mas justamente ele que eu escolhi para ser o pai de meu filho porque era o homem que não representava aquele que não prestava, não era a coisa do pai (...). Então vem essa história que pra mim chegar ao desejo, eu tive que desconstruir essas coisas que eu tinha escutado."
(V., 37 anos)

A interrupção da gravidez inesperada representa a busca de suas próprias escolhas e traduz uma consciência de que nem sempre se escolhe, são opções de outros, são demandas sociais que camuflam o desejo e levam automaticamente para a maternidade. A negação da imposição constitui-se um ato de transgressão e, quiçá, prepara para a emergência de um desejo mais autêntico.

No tocante a transgressão, o aborto desafia a obrigatoriedade biológica da reprodução e da maternidade como um instinto e insere-se no âmbito da definição de um projeto de vida. O aborto é para muitas mulheres uma opção, sinônimo de autonomia e autodeterminação.

"Eu acho que a gente tomar as decisões numa hora dessa que não é uma hora fácil, eu acho que isso diz respeito a autonomia, como se eu tivesse adquirido mais autonomia sobre mim mesma, sobre meu corpo."
(V., 37 anos)

[fim da página 69]

O sentimento de independência e a coragem estão associados a decisão do aborto. No caso das mulheres entrevistadas, ao refletirem a respeito das consequências do abortamento nas suas vidas, assinalam a experiência do amadurecimento e crescimento pessoal que vem junto com o processo de decisão. Neste sentido, o amadurecimento é descrito como o aumento da responsabilidade consigo mesma, com a prevenção da gravidez, da necessidade de conhecimento e cuidado com o corpo, da exigência na relação e de uma flexibilização dos valores. A polarização do ser contra ou a favor aparece nesse momento. O ser contra é relativizado a partir da experiência concreta vivida ou dividida com alguém muito próxima.

"O aborto me proporcionou me enxergar mais na minha totalidade de mulher. O que significa realmente voce nesse processo de não ter um filho, nesse processo de entrar no mercado de trabalho aonde o homem sempre tem prioridade... Realmente é um processo que a gente vivencia essa questão da solidão muito de perto, dentro da gente mesmo... e você começa enxergar a sua individualidade enquanto mulher."
(J., 23 anos)

O fato de ser uma decisão tão individual, vivenciada muitas vezes de modo extremamente solitário, parece possibilitar um contato íntimo e profundo com a condição de mulher. É como se alertasse para a sua inserção social, para os relacionamentos. As experiências reprodutivas estão tão coladas a construção das identidades femininas que determinadas vivências, como o aborto e a maternidade, repercutem na representação que a mulher tem de si mesma.

A solidão é um sentimento comum entre as mulheres que fizeram aborto que, nas mais diversas situações, se sentiram sozinhas, mesmo quando estavam acompanhadas do companheiro, amigas ou amigos. A solidão aparece como um processo que tem dois aspectos: um que é o mergulho em si mesma e na sua identidade de mulher e o outro que é o contato com suas próprias fragilidades, com o desamparo que sentem frente a situação. Um mergulho que acolhe a fragilidade e a dor e que ao permitir contactar com essas vivências, amadurece.

Não poder compartilhar a experiência, vivendo-a no silêncio e na clandestinidade é estar só. Só por ser uma experiência intransferível, a qual não se pode passar o corpo para que a outra/outro aborte e por fugirem as palavras que pudessem transmitir a complexidade do que se [fim da página 70] vive; sós na tomada de uma decisão extremamente individual, e por tudo isso o processo é vivido, também, de forma dolorosa.

A dor emocional fala da tensão, do medo, da fragilidade. Nestes casos a experiência é definida como algo ruim e traumático, a interrupção é representada como uma agressão. Podem estar presentes a culpa e o sentimento de erro, falha e irresponsabilidade.

O valor de irresponsabilidade surge quando as mulheres localizam o evento do aborto na sua realidade de vida. Quando se dão conta das suas condições econômicas, do acesso a informações e atendimento à saúde que dispõem aparece a auto-cobrança. Surge um certo sentimento de irresponsabilidade por não ter evitado, uma vez que se julgam em condições de fazê-lo. O fato de pertencerem a classe média, as coloca numa condição em que se cobram uma atitude responsável. Estão se referindo as condições objetivas, tais como escolaridade, poder aquisitivo, informações, acesso aos métodos, conhecimento do corpo, pois que as condições subjetivas nem sempre dizem a mesma coisa:

"Adorei ser mãe, adorei ficar grávida, foi tudo ótimo, foi tudo dificílimo ao mesmo tempo. Só que agora me desestruturou, menino já crescendo, você já tá conseguindo fazer as suas coisas, você não tá mais a fim de ser mãe, nem de parir, nem de mais nada quando acontece isso Ai eu não me perdoei, certo? Como é que eu feminista, militante, sabida, letrada, que lê, que sabe como o corpo funciona, que tá atenta, que já passou duas vezes por esse sofrimento, como é que isso foi acontecer?"
(A., 42 anos)

O sentimento de irresponsabilidade parece não se restringir ao fato de não ter podido controlar a fertilidade, fala também da dificuldade de optar por um projeto de vida mais amplo que a maternidade. As opções pelo trabalho, pela carreira profissional, pelo lazer, pelo seu próprio mundo de relações, pela estruturação emocional e crescimento individual, nada parece ser motivo suficiente para tomar a decisão de não ser mãe mais uma vez.

Por isso, algumas mulheres se sentiram "egoístas" diante da decisão pela interrupção da gravidez e da opção por outro projeto de vida, mesmo quando já se era mãe. É a dificuldade de sobrepor um projeto de trabalho, de qualificação profissional, uma viagem à maternidade. Para o grupo de mulheres pesquisadas, isto foi possível, mesmo com a irresponsabilidade, o egoísmo e a culpa. O sentimento de "egoísmo" ficou mais evidenciado quando existiam condições econômicas [fim da página 71] propícias para ter um filho, pois pareceu inconcebível optar pela interrupção quando "se podia criar" (7).

Entre as mulheres com filhos, justificativas como "adorar ser mãe" , "é ou vai ser uma boa mãe", ou "que adora os filhos" (8), vêm a priori nos relatos sobre o aborto, como uma necessidade de afirmar-se, antes de tudo, como mãe. Como se o ato de abortar pudesse significar a negação do desejo de ser mãe ou a incompetência para exercer tal função.

Não é à toa que a divisão e a ambigüidade estão tão presentes na vivência do abortamento e porque não dizer na própria situação de engravidamento (in)desejado. Sentimentos de indefinição, dúvida, contradição retratam a ambiguidade que muitas vezes envolve o processo de ser e/ou não ser mãe e traduzem a subjetividade que acompanha o antes, durante e depois do abortamento.

"Isso gera uma divisão, uma confusão na gente, é uma loucura! Uma verdadeira ... como é que a gente chamaria essa doidice dessa hora? porque dá uma loucura: quer! não quer! é uma divisão e você sair inteira de um negócio desse, acho que fortalece a gente."
(V., 37 anos)

Para algumas mulheres, a interrupção admite a conotação de "uma menstruação que veio". Acentua-se o aborto como uma menstruação quando a interrupção dá-se no início da gravidez, quando não há tempo para criar expectativas, representar o filho, sentir as mudanças no corpo. Essa representação da "menstruação que veio" está presente entre trabalhadoras rurais da região do brejo paraibano que na sua grande maioria utilizam métodos de interrupção naturais, como chás e beberagens, sem procedimentos invasivos. Este tipo de aborto foi citado pelas entrevistadas como comum as suas mães e avós. Nestas situações não se vivencia o sentimento de perda, não se está perdendo nada, desde que a menstruação é um processo natural, um ciclo que se espera a cada mês.

"Aos 24 , eu já achava que sabia alguma coisa e eu interrompi essa gravidez porque eu quis, pra mim foi só uma menstruação que veio. Eu não tive sentimento de perda."
(Z., 34 anos)

O fator tempo é importante para quem está vivenciando uma gravidez (in)desejada. O imediatismo e a urgência da decisão são [fim da página 72] elementos na caracterização da experiência. Existe uma pressão do tempo para a tomada de decisão, um empurrão para esta, que também é considerada como um impedimento para o amadurecimento da decisão.

"A decisão é muito difícil, acho que você é levada pela questão do tempo regressivo que vai... não tem o que pensar, não tem o que o que esperar porque se esperar mais uma semana, eu não sei o que eu sou capaz de decidir."
(A., 42 anos)

Fazer o aborto rapidamente, sem sentir o desejo de ser mãe. Existe uma tendência à racionalização dos sentimentos quando diante do imprevisto da gravidez inesperada. A racionalidade é uma forma de observar a realidade, refletir, decidir unicamente através da razão. Os porquês da interrupção podem estar muito claro para cada mulher, mas as emoções do processo de decisão borbulham numa profusão de indagações, como um caleidoscópio que reflete nuances variadas. Racionalizar é o poder de decidir apesar de, considerando que exista até mesmo um desejo de ser mãe, mas não é o momento para vivenciá-lo, pois que não cabe nas circunstâncias de vida daquele momento.

Falamos de mulheres que não deixam a vida passar pela janela como Carolina (9). São mulheres que saíram da casa dos pais, se separaram dos maridos, casaram novamente, lutaram por espaço próprio, por profissionalização, pela livre vivência da sexualidade e buscaram traçar seus próprios designos, sem que por isso deixassem de ter suas contradições e ambigüidades. São simplesmente mulheres que nos seus percursos de vida se depararam com uma gravidez (in)desejada que as levou a decisão pelo abortamento, desconstruindo assim os valores tradicionais que orientam a noção de feminilidade/ser mulher.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BADINTER, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

BANDEIRA, L., SIQUEIRA, D. (1989). Relações de gênero nas Ciências Sociais - Um percurso em (de) construção. João Pessoa: DCS/NDHIR. Mimeo. CARDICH, Rosario. (1993). Visiones del aborto - Nexos entre sexualidad, anticoncepcion y aborto. Lima: Movimiento Manuela Ramos/ The Population Council.

HEILBORN, M. L. (1992). Fazendo gênero ? A antropologia da mulher no Brasil. In: COSTA, A., BRUSCHINI, M.C. (orgs.). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos/ Fundação Carlos Chagas.

JODELET, D. (1991). Representações sociais: um domínio em expansão. (Tradução livre) São Paulo: PUC.

JUNG, C.G. (1964). Chegando ao inconsciente. In: O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

KITZINGER, J. (1994). The methodology of focus groups: the importance of interaction between research participants. In: Sociology of health & illness. London: England Editorial Board.

LETELIER, C.L.V. (1996). Notas metodológicas: entre os grupos de conversação (groups discusion) e as intervenções focalizadas (focus groups). Política e Trabalho (12).

LIMA, J.C., MEDEIROS, P.T.C. (1991). A classe média na Paraíba: perfil e representações. Cadernos de textos (15). João Pessoa: MCS/UFPb.

NOVAES, S. (1997). Ética e corporalidade. (mimeo.) São Paulo: Deptº de Enfermagem/ USP.

OLIVIER, C. (1986). Os filhos de Jocasta - A marca da mãe. Porto Alegre: L&PM.

PRADO, Danda. (1984). O que é aborto. São Paulo: Brasiliense.

RESUMO

A SUBJETIVIDADE DA EXPERIÊNCIA DO ABORTAMENTO

O artigo reflete a subjetividade e elaboração ética de mulheres de classe média que compartilharam suas experiências de abortamento em grupos de conversação. Trabalha a idéia de que fatores objetivos e subjetivos estão presentes na produção de uma gravidez (in)desejada que tem como desfecho o aborto, e que esta dá-se no contexto das relações de gênero, sobretudo a partir da ênfase social da maternidade como atributo natural.

ABSTRACT

THE SUBJECTIVITY OF ABORTION EXPERIENCE

This article reflects the subjectivity and ethical elaboration of middle classe women who shared their experiences on abortion in conversation groups. It exploits the idea that objective and subjective factors are present in the production of an (un)wanted pregnancy leading to abortion, which happens in the context of gender relations, mainly if the social importance of motherhood as a natural attribution is considered as a starting point.

NOTAS

1) Mestranda do Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (Campus I - João Pessoa).

2)Este trabalho resulta de entrevistas realizadas com vinte e nove mulheres que se dispuseram a participar de quatro grupos de conversação realizados na pesquisa de dissertação, desenvolvida no mestrado de sociologia com o apoio do CNPq. A amostra grupal foi composta por mulheres em idade reprodutiva entre 22 e 47 anos, vivendo em João Pessoa, de classe média, definida a partir de condições econômicas (renda individual e familiar) e de perfil sócio-cultural (Lima & Medeiros, 1990). Com nível de escolaridade predominantemente universitário e investimento na qualificação instrucional. Todas desenvolviam trabalho extra doméstico. Tendo como um dos critérios para a escolha o da existência e não existência de filhos no momento da seleção.

3) Investida no sentido que o processo de simbolização contém conteúdos afetivos e emocionais, assim como cognitivos.

4) Para Novaes (1997), corporeidade é diferente do corpo-matéria, objeto da medicina tradicional, é a experiência subjetiva deste, é a expressão do viver através do corpo.

5) Na linguagem científica, aborto é o produto da cavidade uterina expelido no momento do abortamento. A conotação popular designa o ato em si de aborto.

6) (In) desejo no sentido de (in) desejada descrita acima.

7) Entenda-se poder criar como ter condições econômicas para o sustento da criança.

8)Palavras das entrevistadas.

9) "Carolina", composição de Chico Buarque de Holanda.


Índice Principal  |  Normas Para Publicação
Número 12 - setembro de 1996  |  Número 13 - setembro de 1997  |   Número 14 - setembro de 1998  |  Número 15 - setembro de 1999
Universidade Federal da Paraíba  |  Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb


Este site foi modificado pela última vez em 18 de Outubro de 1999, por Carla Mary S. Oliveira.

This page hosted by

Get Your Own Free Home Page