Revista Aplauso (2001) / Especial / por Douglas Dickel

ALTA FIDELIDADE

Alta fidelidade. Isso é o que leva as pessoas a criarem lojas de discos. Isso é o que faz essas lojas se manterem. Isso é o que faz do mundo das lojas pequenas um mundo de amigos. Afinal, amigos são pessoas que têm interesses e gostos em comum, e, nas lojas pequenas, donos, vendedores e clientes têm muito em comum: a paixão pela música. Bem como na história pensada por Nick Hornby, que John Cusack transformou em filme, mas é claro que na ficção a coisa está caricaturizada. Muita publicidade não precisa, a propaganda boca-a-boca funciona muito. O horário de funcionamento é flexível. Com você, o mundo maravilhoso das lojas pequenas.

Assim como Rob Fleming montou a loja Championship Vinyl porque acredita que você é o que você ouve, em Porto Alegre há algumas figuras que, com o trabalho, obtiveram realização profissional e pessoal. Um desses caras é Fernando Názer, dono da Magazine Records. “O bacana de ter uma loja assim é que lhe proporciona trabalhar com coisas de que realmente você gosta, você não está vendendo para o cliente uma coisa de que você não gosta, e você vai se sentir bem vendendo o produto”, diz o homem que sempre vai para uma praia na Bahia em fevereiro, onde reunem-se hippies do mundo todo e alguns ainda tomam banho pelado. Eis o exemplo de um vendedor que conhece o produto, não apenas um profissional esperto que entende de vendas. Ivan Laurindo da Silva, proprietário da Stoned Discos, é outro que está feliz trabalhando com música. Ele sempre almejava um trabalho que desse prazer e que tivesse a ver com a vida dele, com a maneira com que foi criado e tudo o que presenciou na vida. “Absorvi a beatlemania, um movimento que não era só a música, tinha aquele modo de viver, aquele estilo todo, aquela transformação que eles deram para nós, que nos pegou muito pelo coração”, lembra Ivan, que tem uma bela homenagem aos Beatles tatuada no braço e vai todos os dias para o trabalho com sua apreciada motocicleta. Ele trabalhou numa outra profissão durante muitos anos, mas assim que pôde pulou para onde queria ficar.

Paixão de vendedor pode ser testemunhada por Vinícius Facin, que trabalha na Toca do Disco desde 1992. Vinícius acredita que pôde unir o útil ao agradável. “Não existe nenhum cara de 17 anos que não tenha prazer ou interesse de lidar com a música, é uma coisa que ninguém negaria”, diz, com um pouco de retórica. Ele começou conhecendo “aquelas coisas bem básicas de gurizada teenager, como Ramones, Led Zeppelin e The Doors” e foi expandindo seus horizontes com o tempo. Donos e vendedores podem passar o dia conhecendo artistas e bandas, e é assim que eles acabam conhecendo os lados B, as bandas análogas. “Por causa do vaivém da história umas bandas são alçadas ao estrelato e outras bem melhores ficam fadadas ao esquecimento”. Só que Vinícius não aprendeu só com os CDs. Muitas coisas que ele aprendeu sobre a história do rock foi por intermédio dos próprios clientes, que guardam muitas histórias. “Tem clientes que são enciclopédias ambulantes, que sabem muito mais do que eu e o Rogério”, completa. Fernando também teve o gosto pela música aprimorado pelo trabalho na loja. Isso fez com que ele começasse a promover shows, trazer artistas para tocar no Garagem Hermética e no interior gaúcho. Ele chegou a criar o selo Agência Cooperativa de Músicos e a comprar o Garagem, já que os ex-donos estavam vendendo e acreditavam que Fernando seria a pessoa ideal para tocar a proposta original do bar. Foi aí que a loja e o bar passaram a representar a música 17 ou 18 horas por dia na vida de Fernando. “Eu trabalho para as pessoas que se dão chance para conhecer o novo”, justifica. O homem-música tira o domingo para, quando não tem show no bar, escutar discos em casa e ler releases das bandas que querem marcar show.

É em cima do conceito de “bandas melhores” que trabalha o Professor Getúlio, ser folclórico que comanda a Boca do Disco. “Eu sou muito de conversar e de sentir qual é o astral do cara, o que ele está procurando, eu sou muito de vender o disco”, explica. Nesse atendimento personalizado, Getúlio sonda o gosto do cliente para indicar as bandas obscuras que influenciaram as famosas. “Se o cara gosta de Doors, tem uma cabeça enorme para as bandas de vanguarda, que são da linha, algumas até melhores”, diz. Segundo ele, o som era muito de ser feito para vender, mas havia os que não faziam para vender, que tocavam porque gostavam. Além disso, muitas bandas se plagiavam nos anos 60. Ivan vai pelo mesmo caminho da sondagem. “Se o cliente não entende, a gente procura conversar um pouquinho com ele, tirar algumas informações dele para ajudá-lo a pesquisar”, diz. As lojas acabam cumprindo uma função de escola para os ouvintes mais interessados. Não foi por isso que Getúlio recebeu o apelido de Professor, mas poderia ter sido, já que muita gente se sente grata por receber os ensinamentos do rapaz. O verdadeiro motivo é que ele chamava todo mundo assim, como gíria, assim como “mestre”. A explicação dele para a gíria acaba entregando a sua importância. “Todo mundo é professor, o pedreiro é professor da obra, o padeiro é professor do pão”. E ele é o professor do som, assim como seus colegas.

O cliente dessas lojas também não é aquele que vai atrás de um CD qualquer. Aparecem desses, mas o que mais tem é o ouvidor exigente, conhecedor. “A gente deixa esse mais à vontade na loja, mostra o que ele pede, indica, não fica em cima”, conta Margarida Prates, criadora da Sala dos Clássicos. Tanto ela como os outros pequenos-lojistas oferecem um atendimento personalizado, conhecem o cliente, o gosto dele, até o humor. Assim eles se sentem em casa, e Margarida fez até uma decoração de casa na sua loja, com direito a tapetes, mesinha e abajur. Fernando expõe na sua loja fotos de artistas como Tom Zé, Jorge Mautner e Egberto Gismonti, as quais ele mesmo tirou quando cobria os shows da região sul para a revista International Magazine, do Rio de Janeiro. “Quando uma pessoa entra na loja e já é sua cliente, você tem que saber o que ela gosta”, diz ele, indo ao encontro do que pensa Margarida. Myrtha Rosa, braço-direito da Sala dos Clássicos, lembra que os clientes são apaixonados, principalmente o colecionador. “Ele quer o CD com aquela orquestra, aquele intérprete, aquele maestro e aquele selo; temos um cliente que tem 22 interpretações diferentes da mesma obra”, conta Myrtha.

As lojas alternativas não sobrevivem com movimento, às vezes fazem apenas três, quatro ou cinco vendas no dia e está ótimo. “Tem aqueles colecionadores que desequilibram, tem um cara que entrou aqui e comprou mil reais um cara só, eles somem, voltam de novo. E tem aquele pinga-pinga”, classifica Getúlio. Já Myrtha conta que seus clientes consideram a Sala dos Clássicos uma loja de pecados, porque eles entram lá e gastam demais. “Tem pessoa que chega e compra 800 reais como se fosse comprar 80 reais”, exemplifica. Sérgio acrescenta que o colecionador é aquele cara que quer uma determinada peça que, se ele enxerga, não quer nem saber preço: ele leva. Segundo o Professor, existem o ouvidor, que compra, ouve e daqui a pouco vende; o colecionador aficionado de uma banda só, que compra até a figurinha; e o colecionador de som, que compra o melhor de cada banda. Sérgio lembra que existe o cliente itinerante, que compra uma vez só. “Ah, e tem o arrodião, que quer comprar mas não pode, não tem condições, quer gravar uma fita”, completa Getúlio.

As lojas pequenas ainda fazem aquela velha gravação de cassete e hoje fazem também gravações em CD-R. Vinis raros podem ter cópias que saem por um preço bem mais barato do que a raridade impõe. Getúlio tem material de 700 bandas, que grava por encomenda. Cada original custaria uns 25 dólares, mas a fita sai por uns 8 reais e o CD-R custa de 13 a 18. “É uma alternativa, pelos menos o cara não fica sem ouvir o som”. Assim, o que antes era privilégio para apenas alguns que podiam pagar, agora está acessível para muito mais gente. Fernando tem uma coleção de dois mil discos de MPB que eventualmente reproduz em CD-R para algumas pessoas. “Prefiro não vender, prefiro trocar por outro material que eu não tenha e, de preferência, que ele me dê em vinil, porque eu prefiro vinil a CD”, diz. Coletâneas também são uma opção para os mais fuçadores. Outras alternativas nestes tempos de dólar caro são a volta dos LPs e a venda e troca de CDs usados, principal estratégia da Stoned. “Aqui, se ele não tem dinheiro para comprar, ele pode trazer dois discos e trocar por um, pode até incluir um livro sobre bandas, por exemplo, como pagamento”, explica Ivan. A Boca e a Grammy/Classic avaliam os CDs usados para a troca, ao invés do dois-por-um costumeiro. “O mercado está mais para coisas usadas, alternativas mais baratas para o público”, reforça Sérgio Vasconcellos, dono da Grammy. Todas as lojas passaram a trabalhar com CDs usados, que é uma forma de se garantir e de se manter em função da alta do dólar. “Isso provocou a impossibilidade de se trazer coisas boas de fora, por custar muito caro, e a alta natural dos preços dos CDs nacionais, pois as gravadoras fazem o que querem e vendem por quanto querem”, reclama Fernando. O poder aquisitivo hoje é menor, e o CD é um item desnecessário num contexto em que as pessoas precisam se vestir, morar e comer, então a primeira coisa cortada é o “supérfluo”, o CD. “As pessoas têm vontade de comprar, as pessoas vêm na loja, mas às vezes só olham, ficam se torturando”, conta Fernando, que evita entrar em lojas de vinil se não tem dinheiro para comprar. A Toca do Disco voltou a trabalhar com vinil para “dar uma chance para a galera que está descapitalizada”. Assim esses comércios vão sobrevivendo, com tempos ruins, tempos bons, tempos horríveis e tempos maravilhosos.

Um exemplo de cliente “arrodião” é Aldo, outra figura folclórica do mundo das lojas pequenas. Todos os lojistas conhecem ele, que mora na Cidade Baixa. “Traduzir o Aldo em palavras não dá, ele é para ser visto”, elogia Fernando. O tempo que ele tem é dedicado para estar em lojas de discos. Ele quer estar ali, ele quer estar presente, ele sempre tem alguma coisa para comentar. Chegam a pensar que ele trabalha na loja. “O Aldo compra CDs muito baratos agora para pagar em outro mês, não dá cheque, não dá nada, quando chega o dia ele paga”, conta o homem da Magazine. Outro cliente folclórico é o Garotinho, que mora perto da Toca do Disco. Ele passa todos os dias na loja desde 1989, é raro o dia em que ele não entra para comprar ou visitar o amigo Rogério.

O mesmo lojista guarda na memória o fato inusitado de um cliente que entrava sempre na loja e nunca comprava nada. Numa de suas visitas, mexeu por horas num disco dos Yardbirds, que era raro, o próprio vinil já era um desenho com plástico em volta, importado, caríssimo. “O cara não ia comprar, foi pegar da parede e deixou cair o disco no chão, de ponta. Rachou o disco e quando ele foi se virar pisou em cima”, recorda Rogério, que ficou muito triste, mas não fez nada porque o rapaz não tinha dinheiro para indenizar. Há também clientes que insistem em fazer determinadas trocas que a loja não faz e eles vão e insistem, procuram durante anos o mesmo disco. “Tem um cara que é o rei de procurar material de Jovem Guarda sabendo que a gente só pega as coisas mais raras, que têm mais valor, e o cara quer aquelas coisas comuns”, conta Sérgio. Uma vez por mês no mínimo ele aparece na Grammy, e Sérgio tem que explicar para ele que a loja não trabalha com esse estilo de música. “Mas não adianta, mês que vem ele está aqui de novo”.

O cliente mais folclórico, no entanto, é aquele que se torna a banda. Só para ter uma idéia, existem em Porto Alegre o Elvis, o Led, o Bon Jovi, o Judas, o Deep Purple, o Clapton e o Pink Floyd – um gaúcho que é o maior colecionador do mundo. Esse tipo de cliente só compra material da banda pela qual é fanático, não importa o que ela gravou. Vinícius Facin tem a teoria de que a música acalma as bestas, as feras, para explicar o tanto de figura excêntrica que já circulou na loja em que trabalha, e certamente nas concorrentes também. “As pessoas têm na música um porto seguro, um meio de expressão ou de inserção social”, comenta.

Clientes compram fiado. Rogério Cozzetta, fundador da Toca do Disco, inclusive tem um caderninho no velho estilo armazém. Já aconteceu de um cliente seu não pagar a conta e nunca mais aparecer na loja, chegando ao ponto de atravessar a rua para não passar pela mesma calçada que Rogério. Clientes pechincham. Getúlio é o que mais faz pingue-pongue de valores na hora de o cliente pagar pelo “petróleo”. Às vezes 1 real é motivo de discórdia; com bom humor, é claro. Tem aqueles que demoram para tirar o dinheiro do bolso, tem gente que propõe para trocar por serviços. Tem dono de loja que também atazana do outro lado do balcão. “Eu como cliente sou o cara mais chato, eu reclamo do cliente que chora mas eu sou mais chorão, eu peço desconto sempre, eu peço prazo”, entrega Sérgio. Clientes ajudam. Uma vez Fernando havia recebido muito material de uma vez só e os clientes o ajudaram a guardar e a arrumar a loja.

Como não podia ser diferente, uma boa parte da clientela dessas lojas é de músicos. O músico-cliente mais folclórico é o Plato Divorak, ouvinte e criador de rock psicodélico. “Ele vem, dá umas deliradas, entrevista o pessoal que está aqui, vende o trabalho dele”, conta o dono da Boca, que gravou mais de 100 fitas para o artista. A Stoned recebe visitas freqüentes do Wander Wildner e da Tequila Baby, muito em função da venda do produto deles. Tem gente que começa a freqüentar as lojas porque viu algum músico lá ou soube que isso aconteceu. Marcelo Nova, ex-Camisa De Vênus, é um que ajudou a chamar público para a Grammy. Sá, da Bidê Ou Balde, está sempre na loja do Sérgio. Charles Gavin, baterista dos Titãs, volta e meia aparece na loja do Ivan. “Ele procura coisas na linha de anos 60 e gosta de ficar na dele, olhando, pesquisando”. Quando Edu K, do De Falla, estourou no Brasil com a “Popozuda”, andou fazendo uns bons negócios com Getúlio. Ele comprou “Acid Vision”, duas coletâneas triplas de bandas psicodélicas de garagem do Texas. Apaixonou-se também pelo Music Machine, que é uma das bandas mais pesadas e sujas dos anos 60, assim como Electric Prune. Flávio Basso comprava na Boca bastante material de anos 60 e garagem, mas na última vez ele estava atrás de trabalhos diferentes, LPs de música francesa. Gordo Miranda encomenda discos de bandas psicodélicas e de garagem, e Kid Vinyl pediu quatro álbuns por intermédio de Miranda (os dois trabalham juntos na gravadora Trama). Júlio Reny, André Christóvam, Cazuza, Simoninha, Otto e Ed Motta são outros exemplos de nomes que figuram na memória dos lojistas alternativos de Porto Alegre. A Sala dos Clássicos tem clientes instrumentistas e maestros de todo o Brasil e de outros países, principalmente da América Latina.

Não são poucos os clientes que viram verdadeiros amigos do pessoal das lojas, na maioria das vezes é o próprio som que une. Como o caso de Vinícius: “Tenho grandes amigões que eu conheci por intermédio da loja”. Uma das características principais dessas casas de discos é a fidelidade do cliente. Sérgio tem cliente que o acompanha desde o início, que ele conhece há 16 anos. “Eles tornaram-se amigos pela convivência, você acaba vendo a pessoa uma vez por semana no mínimo, até acaba tendo um envolvimento pessoal”, diz ele. Ivan lembra que esse tipo de loja consegue manter o cliente assíduo, que vai todos os dias à loja. “Ele sabe que a entrada de material interessante loja é diária, que sempre pode encontrar alguma coisa interessante, então ele se torna assíduo, amigo do pessoal da loja”. Margarida e Myrtha oferecem suco e doces para os amigos. “Tem clientes que vêm todos os dias fazer uma visita, a gente se sente acompanhada”, contam elas. Também os vendedores tornam-se grandes amigos dos donos das lojas, pois geralmente convivem mais tempo por dia do que a própria família. “Eu não tenho funcionários, eu tenho amigos”, afirma Fernando. Alguns ex-funcionários estão com ele até hoje no bar.

Ao mesmo tempo em que esse tratamento de amizade faz parte da filosofia dos lojistas alternativos, tal diferencial acaba sendo também uma estratégia de sobrevivência. “Senão a grande rede já tinha matado todos, porque eles dominam o mercado do disco popular”, diz Ivan. Fernando conta que os vendedores dessas grandes lojas são mal pagos, geralmente não entendem de música e são treinados para vender o CD do momento, que a gravadora pagou para tocar na rádio e pagou a grande distribuidora para abastecer o mercado de todas as outras lojas. “Eu não tenho nada contra a grande rede, acho que tem que ter uma loja dessas em cada parte, em cada lugar, mas eu só acho que tem que ter uma, não todas”, diz Fernando, que também reclama das filiais de megastores. “Elas têm grandes discos, só que por preços muito altos”. A Sala dos Clássicos é bem conceituada por ter coisas mais raras, que os amantes do erudito não encontram nos outros países. Myrtha atribui isso ao fato de as lojas internacionais serem megastores sem atendimento personalizado. Segundo seus clientes, só Viena tem lojas pequenas de música clássica. Esse tipo de loja não trabalha no grande mercado, trabalha por fora, na periferia, são lojas onde as pessoas vão procurar materiais alternativos, que estão fora de catálogo, ou discos usados por menos da metade do preço.

Os donos ao mesmo tempo sempre foram clientes, caçadores de itens raros. “O cara que gosta é como rato, não pode ver um buraco que ele entra, que nem bêbado, não pode ver uma porta aberta que ele entra”, define Getúlio, defensor de que o lojista precisa vasculhar tudo, estar sempre atualizado e freqüentar todas as lojas. O professor colecionar bandas diferentes e quando gosta de uma compro tudo dela, mas normalmente as bandas que ele curte tem poucos álbuns. Rogério juntou grande parte do seu acervo de discos de vinil comprando na Boca do Disco, que inclusive já foi confundida uma centena de vezes com a Toca do Disco desde a criação dela, por causa da semelhança do nome. Rogério sempre foi um rato de sebo de discos, montou uma coleção grande e na hora em que fez a loja já tinha todos os conhecimentos de negociar disco, de tanto negociar com os outros donos. Quando era adolescente, ele fuçava em lojas de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro; procurava no jornal, nos classificados, e ia atrás. “Às vezes eu pegava ônibus e ia para Canoas, São Leopoldo, Cachoeirinha, Sapucaia, caminhar nas ruas e ver se eu achava as lojas de discos, ver se eu achava as raridades”, conta Rogério. Sérgio colecionava piratas e compactos de Beatles e Stones, mas parou desde que começou a trabalhar atrás do balcão. “Senão você acaba não vendendo, quer ficar para si e não faz nem uma coisa nem outra. Então fecha a loja e vai ganhar dinheiro de outro jeito para sustentar seu hobby”, opina. Ivan tem saudades da época em que a Stoned era 90% vinil, há uns dez anos. “O LP tinha mais magia, ele era melhor de trabalhar, antigamente você via um LP único na parede”, comenta.

Apesar de às vezes o espaço ficar apertado, abrir filial é algo completamente descartado por esses amantes de discos. Para Margarida, a Sala dos Clássicos teria que ser três vezes maior para estar todo o material exposto. A Toca do Disco era a metade do tamanho, mas incorporou a sala ao lado, que era da Toca do Vídeo. Rogério quer sempre trabalhar com uma clientela pequena, mas que seja um pessoal “da casa”. “Eu conheço 80% dos meus clientes, eu passo na rua e cumprimento, é uma coisa diferenciada”, reforça. Ivan está lutando com a falta de espaço e faz questão de conseguir um espaço maior. “Dá impressão que é mais legal, permanece todo mundo junto, senão nós temos que nos dividir e pode não acontecer como deveria ser, na filosofia da loja”, diz ele, que trabalha com um filho, um cunhado e um sobrinho: tudo em família.

Por falar em família, Ivan sente-se privilegiado e satisfeito por seus filhos tocarem. Getúlio se contenta em tocar pedrinha na água... Mas assim como Rob Fleming de “Alta Fidelidade” era frustrado por não seguir discotecando no seu Grouxo Club, os lojistas também tinham um sonho que não aconteceu. Vinícius gostaria de ser músico, mas diz que não tem vocação. “Minha frustração me impele a ficar perguntando para os músicos como é que se toca. Como eu acho que não nasci para engendrar a arte, eu tenho que prestigiar a arte dos outros”, consola-se. Fernando também tentou. Começou tocando punk rock na época em que os Replicantes estavam começando, depois passou a tocar jazz e ler partitura, sempre com o baixo. Mas ele passou no concurso do Banco do Brasil e por causa do tempo teve que trocar a música pelos jornais de cultura. Mais tarde, pediu demissão do banco, mas não queria mais tocar. “O que eu gosto na vida é a música, e a maneira que eu achei de voltar para ela foi a loja, que então veio através de uma frustração”, conta. Fernando tem seu Grouxo, o Garagem Hermética, mas prefere não discotecar. “Se os caras não levam DJ para tocar na festa, a gente toca os CDs que foram dados por bandas gaúchas que tocam no bar, porque é uma coisa em que eu acredito”, diz. Como é ele quem opera o som, pois os outros estão cuidando da porta ou da copa, acaba sobrando para Fernando o papel de DJ nessas ocasiões.

Voltando ao quesito clientela, na Stoned predomina a juventude, que compra mais em quantidade enquanto os mais maduros compram em valores mais altos, CDs mais caros. “É uns 60% gurizada, que é mais rock’n’roll, o próprio país é um país jovem”, arrisca Ivan. O que mais vende na loja dele é o CD usado, com garantia de bom estado. A Boca do Disco vende muito as mais de 100 bandas diferentes de punk e hardcore de todos os lugares do mundo. “Tem a gurizada que curte os anos 60, a gurizada que curte os hard rock dos anos 80, quase uma centena de bandas também”, comenta Getúlio sobre seus compradores. Na Grammy compram os audiófilos dos 16 aos 25 anos que consomem muito punk, heavy metal, LP por ser barato ou CDs usados. A loja não trabalha mais com importados novos e encomendas por considerá-los economicamente inviáveis. Música negra norte-americana, englobando blues, soul, rock e jazz, é a especialidade da Toca do Disco, que também sempre trabalhou com demos de bandas gaúchas. Quanto ao sexo dos clientes, Vinícius fica triste ao constatar que a maioria esmagadora é masculina, a razão não se sabe ao certo.

Já o público da Magazine Records é um pouco mais velho. “São pessoas entre 32 e 40 anos, que viveram o movimento independente paulista dos anos 80”, especifica Fernando, que vende CDs de artistas independentes de MPB, música popular gaúcha, rock dos anos 60 e 70 e material alternativo dos anos 90. Ele também comenta sobre as faixas etárias: “Enquanto os jovens compram um ou dois CDs, pirateiam outros 15 e baixam outros 165 MP3s e compram mais três piratas no camelô da frente, os mais velhos não fazem esse tipo de coisa, primeiro porque não têm tempo de ficar na frente do computador, segundo eles jamais vão comprar um CD pirata por causa de 10 pilas de diferença e terceiro porque eles enxergam aquele tipo de coisa e querem comprar, porque não tem em qualquer loja”. Na Boca do Disco o que há são raridades e medalhões, dos anos 50 até o heavy metal e hardcore. A concentração é nas bandas de vanguarda, aquelas que a maioria do pessoa ainda não conhece, de vários lugares do mundo, principalmente da Europa, de 1964 a 1974. É o som que rodava no programa Rock And Roll Gold Mine, que Getúlio apresentava na rádio Unisinos 103.3 e no momento deu uma parada. Agora ele roda uma faixa toda manhã na rádio Ipanema 94.9, por volta das 10h, horário do locutor Vitor Hugo. Isso sempre seguindo a tradição de parceria com as rádios, que começou há 15 anos com o programa Fly By Night na Felusp e seguiu com A Hora Do Veneno na Ipanema. A Sala dos Clássicos tem parceria com programas de música erudita nas rádio da UFRGS e na Cultura FM. A Stoned também entra no esquema de cooperação e empresta CDs, LPs e livros para o programa do Mutuca, que é aos sábados, também na Ipanema.

Rob Fleming (Rob Gordon, no filme) tocou um CD da The Beta Band e apostou com seus colegas que alguém se interessaria por ele e o compraria. Dito e feito. Na vida real isso acontece muito, inclusive às vezes como estratégia de despachar um item encalhado, que Sérgio e seu sócio Luís Carlos Fonseca, da Classic, chamam de caramuru. “A gente até brinca: vamos no bazar comprar uns foguetes para soltar, saiu um caramuru daqui”, brinca Sérgio. Sua loja tem um disco que está lá há mais de seis anos, uma gravação ao vivo dos Blues Brothers não autorizada, aqueles antigos bootlegs, que eram liberados na Itália até 1995. Vinícius assume a estratégia, mas Rogério não se preocupa e espera que alguém algum dia entre e compre o encalhe. Às vezes os lojistas põem para tocar um disco que não está à venda, e aí pode haver confusão. Luís estava ouvindo um CD-R que ganhou de presente. Era de um guitarrista holandês que tocava no Focus, uma banda progressiva dos anos 70. Um cliente ouviu, gostou da música, perguntou o que estava rodando, quanto custava e disse que queria levar. “Às vezes o cara nem pergunta o que é e diz ‘Eu vou levar o que está tocando, também’, o cara não pergunta nem o preço”, conta Sérgio. Um compacto dos Beatles com “Long Tall Sally” e “I Call Your Name”, que está na loja para decoração, já recebeu um lance de 100 reais e Sérgio não quis vender, por causa do valor sentimental. Getúlio também já esteve ouvindo um CD seu que não queria vender mas acabou vendendo. “Eu só tinha aquele, mas eu disse que custava 60 reais, o cara martelou, me ofereceu 100 e eu cedi. Depois graças a Deus consegui outro”, conta o Professor.

Quando um disco fica muito tempo numa loja, uma acaba trocando com a outra. A melhor parceria é da Magazine com a Toca do Disco, é só pegar e levar, ninguém anota. “Sonny & Brownie”, da dupla de folk blues norte-americana Sonny Terry & Brownie McGhee, é um disco que sempre fisgou o ouvido e o bolso dos clientes da Toca, desde a época do duplex com a locadora de vídeo. “Pessoas que não conheciam blues ou não gostavam faziam a volta na locadora, entravam aqui e perguntavam que disco era, e eu sempre acabava vendendo”, conta Rogério. Ultimamente ele tem ouvido e vendido muito o “Racional”, do Tim Maia. Fernando já vendeu dois álbuns do Itamar Assumpção de uma vez só nessa pescaria natural. Certa vez Getúlio estava ouvindo Livin Blues, uma banda holandesa de blues misturado com rock pesado, entrou um cliente na loja para comprar Rita Lee e levou o Livin Blues junto. “De cada 100 clientes, 70 levam este. Para o cara não gostar, só se tiver uma cabeça mais virada para o som levezinho e comercial”, alfineta o dono da Boca. Até os Beatles já surpreenderam e fisgaram peixes. Foi na Stoned, onde todos os dias algum álbum da banda entra no CD player. Um cliente que esteve na Feira de CDs e não comprou nada passou na Stoned e perguntou o que estava tocando. Era o “Rubber Soul”, e ele levou. Assim como Marie De La Salle fez uma pequena apresentação com violão na Championship Vinyl, Mutuca já tocou na Stoned, Plato Divorak na Boca, e Flávio Guimarães deu workshop na Toca e autógrafos na Grammy/Classic. Os Toy Dolls estiveram na Boca Disco em 1995. “Isso aqui virou Woodstock, parou o trânsito na rua, botaram dois seguranças e os punks entravam aqui, pura tatuagem, roupa rasgada, uns fedendo, todo mundo chapado, até CD caminhou da parede, mas foi bacana”, relembra Getúlio. Mais uma semelhança com “Alta Fidelidade” é a mania de estar toda hora querendo reorganizar os discos, que Rogério tem e assume. “Isso eu faço na minha casa e faço na loja, eu fico sempre mudando critérios. E faço que nem o Rob Fleming, jogo tudo no chão e digo que vou arrumar tudo”, comenta. Ele também passa pela situação em que tem que dispensar um cliente. O homem da Toca tem a sua maneira de deixar claro que certo tipo de música ele não tem na sua loja e nem faz questão de ter, mesmo que aquilo o levasse a vender mais, a ter mais dinheiro.


Boca do Disco
R. Mal. Floriano, 439
3228-7053
17 anos


Grammy
R. dos Andradas, 1444, sala 31 (Galeria Chaves)
3227-5911
15 anos (há 7 junto com a Classic)


Magazine Records
R. dos Andradas, 1444, loja 9 (Galeria Chaves)
3212-1248
9 anos


Sala dos Clássicos
R. dos Andradas, 1444, sala 26 (Galeria Chaves)
3286-2990
4 anos


Stoned Discos
R. Mal. Floriano, 371
3225-5136
10 anos


Toca do Disco
R. Garibaldi
12 anos