Alexander Luria

O AUTOR E SUA HISTÓRIA

Alexander Romanovich Luria nasceu em 1902, em Kazan. Filho de pais socialistas, Luria defrontou-se, aos 15 anos, com a Revolução Soviética e nessa época matriculou-se no Departamento de Ciências Sociais. No entanto, seu interesse voltava-se para a psicologia. Dado seu trabalho de alto nível e erudição em psicologia e pedagogia, Luria foi convidado, em 1924, a se juntar ao corpo de jovens cientistas do recém criado Instituto de Psicologia de Moscou. Lá se associou a Aléxis Leontiev com o objetivo de estudar as bases materiais do fenômeno humano, usando basicamente as concepções pavlovianas. Esse método no entanto, mostrava-se insatisfatório para abordar justamente aqueles aspectos psicológicos caracteristicamente humanos. Surge, então, durante o II Encontro Soviético de Psiconeurologia (1924), uma perspectiva de solução para esse conflito, quando Vigotskii propunha aos psicólogos introduzir um método marxista na ciência psicológica, e não apenas formular coletâneas de citações de Marx e Engels sobre os diversos aspectos da psicologia humana.

A partir de então Luria passa a ser seguidor de Vigotskii; começa a aprofundar seus interesses pelas alterações de comportamento observadas em soldados feridos à bala que necessitavam de novos tratamentos e diagnósticos. Por isso, dedicou-se a especialização neurológica. Do fim dos anos 40até o fim dos anos 50 observa-se uma mudança do centro de seus interesses; volta à psicologia, dedicando-se ao estudo do desenvolvimento psicológico da criança. Ao fim deste período retoma a vertente neuropsicológica, integrando seu conhecimento e experiências sobre funções corticais superiores e psicologia do desenvolvimento com as concepções lingüísticas. Apesar das mudanças de rumo do decorrer de sua obra, é possível constatar um eixo comum que é o da valorização da linguagem como a grande possibilidade de articulação teórica entre os campos da neurologia e da psicologia. Retomando as propostas de Pavlov, psicólogo russo que colocava a linguagem como um sistema privilegiado de "sinais", e Vigotskii, pesquisador das relações entre pensamento e linguagem e consciência e linguagem no desenvolvimento do indivíduo, Luria abriu um novo e fundamental campo de estudos dentro da neurologia, que é a neurolingüística. Luria morreu em Moscou, em 1977, aos 75 anos.

OBRAS

Entre as suas principais obras, destacam-se:

- A Afasia Traumática (Moscou, 1947), em que aparece formulado seu corpo teórico principal, a partir do estudo de um extenso número de lesões cerebrais focais por ferimento de bala em soldados russos na II Guerra Mundial.

- Funções Corticais Superiores no Homem (Moscou, 1962) na qual a teoria e a clínica neuropsicológica de Luria aparecem mais amadurecidas.

- Questões Básicas de Neurolingüistica (Moscou, 1975) na qual aparece a preocupação do autor em articular os conhecimentos de psicologia e neurologia "Funções Corticais Superiores" com as mais recentes concepções da lingüística.

- Linguagem e Desenvolvimento Intelectual na Criança, obra originalmente publicada pela Academia de Ciências Educativas de Moscou e traduzida em 1987.

- Curso de Psicologia Geral, publicado em Moscou e traduzido em 1994.

- Pensamento e linguagem: as últimas conferências de Luria; traduzido em 1987 .

- Desenvolvimento cognitivo: seus fundamentos culturais e sociais; traduzido em 1990.

-Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem, Vigotskii,L. S., Luria, A. L., Leontiev, A. N., traduzido em 1988.

PRINCIPAIS INTERESSES DO AUTOR

Durante muito tempo não se deu importância, em psicologia, ao papel que a linguagem representa na formação dos processos mentais da criança. Os behavioristas, por exemplo, apresentavam resistência ao estudar todas as complexidades da formação dos processos mentais superiores, reduzindo as atividades da criança como sendo uma combinação de hábitos. Outros autores partem para uma visão idealista, segundo a qual consideram o desenvolvimento da atividade nervosa superior da criança como um desenvolvimento gradual de qualidades espirituais inatas, ou seja, como uma simples manifestação de uma atividade espiritual em desenvolvimento constante, que aparece de maneira ínfima nas primeiras etapas do desenvolvimento da criança e que vai, gradualmente, adquirindo importância no processo de maturação.

O enfoque behaviorista reduz a educação e o ensino a uma simples exercitação. Já o idealista acaba por ser um obstáculo para a compreensão científica da mente, visto que relega a um plano secundário as influências educativas por considerarem-na como um meio para acelerar ou retardar a "maturação natural" já predeterminada. A psicologia soviética rejeitou completamente estas concepções ultra-simplificada e acientíficas, dando aos seus estudos um enfoque científico. Uma das principais preocupações da psicologia soviética é estudar a atividade mental da criança como resultado de sua vida em certas condições determinadas. Para a psicologia soviética, a atividade mental humana desenvolve-se em condições de perfeita comunicação com o meio, através do qual a criança adquire experiência com os adultos, mediante a prática conjunta e a linguagem. A linguagem, por sua vez, intervém no processo de desenvolvimento da criança desde os primeiros meses de vida. Ao nomear os objetos e definir, assim, as suas associações e relações, o adulto cria novas formas de reflexão na realidade da criança, bem mais profundas e complexas do que as que ela poderia formar através da experiência individual.

Todo esse processo de transmissão do saber e da formação de conceitos, que é a maneira com que o adulto influi a criança, constitui o processo central do desenvolvimento intelectual infantil. Devido a isso, o estudo dos processos mentais infantis como produto da intercomunicação da criança com o meio e a aquisição de experiências comuns transmitidas pela palavra passaram a ser os princípios mais importantes da psicologia soviética. O intercâmbio verbal entre criança e adultos muda o conteúdo e a forma da atividade consciente da criança. Essa intercomunicação tem um significado decisivo, por que a aquisição de um sistema lingüístico supõe a reorganização de todos os processos mentais da criança. A palavra passa a ser um fator que dá forma à atividade mental, aperfeiçoando o reflexo da realidade e criando novas formas de atenção de memória e de imaginação, de pensamento e de ação. A função básica da palavra é indicar o objeto correspondente no mundo externo, tornando-se, desta forma, essencial na formação dos processos mentais. Assim, as primeiras palavras da mãe ao nomear distintos objeto, têm uma importante influência, pois isola as propriedades essenciais do objeto e inibe as menos essenciais.

Quando, por exemplo, a criança aprende a reconhecer que um "copo" tem o papel funcional "para beber", ela automaticamente desconsidera os outros aspectos desse objeto como forma, tamanho e peso. E quando aprende a fazer relações entre palavras – exemplo: tinta, cores, pincel, tela – a criança enriquece e aprofunda imensamente a sua percepção direta e conforma a sua consciência. Mas a influência da palavra na formação dos processos mentais não termina com essa reorganização da percepção. Quando a criança adquire uma palavra que isola uma coisa particular e serve como sinal de uma ação concreta, ao mesmo tempo que leva a cabo esta instrução verbal do adulto, se subordina também a essa palavra. A palavra do adulto converte-se num regulador de sua conduta. Essa subordinação das reações da criança à palavra de um adulto é o começo de uma longa cadeia de formação de aspectos complexos de sua atividade consciente e voluntária. A fala, que é o meio básico de comunicação converte-se, então, num meio de análise e síntese da realidade e no regulador mais elevado da conduta.

O fato de a palavra fazer parte do conteúdo de quase toda as formas básicas de atividade humana, de intervir na formação da percepção e da memória, no estímulo e na ação, permite uma nova abordagem numa área importante da atividade mental. A percepção e a atenção, a memória e a imaginação, a consciência e a ação deixam de ser considerados propriedades mentais mais simples e começam a ser entendidas como produto de formas sociais complexas dos processos mentais da criança, como complexos "sistemas de funções" que resultam do desenvolvimento da atividade infantil nos processos de intercâmbio, como atos reflexivos complexos em cujo conteúdo se inclui a linguagem e que se efetuam com a íntima participação de dois sistemas de sinais: o primeiro, relativo aos estímulos percebidos diretamente e o segundo, com sistemas de elaboração verbal.

ENVOLVIMENTO COM QUESTÕES EDUCACIONAIS

Em um primeiro momento, os pesquisadores do desenvolvimento infantil acreditavam que um estudo psicológico empírico do desenvolvimento da criança era quase impossível devido ao fato de elas terem um comportamento variável em seus primeiros anos de vida. Posteriormente, comprovou-se que é possível realizar experimentos psicológicos com a criança e, além disso, esta atitude é a única maneira de se chegar a uma compreensão profunda do perfil mais amplo do desenvolvimento infantil. Luria, particularmente, trata de dois problemas referentes ao estudo científico da criança: 1) o desenvolvimento da percepção que a criança tem do mundo exterior e 2) a formação de habilidades culturais.

1) O desenvolvimento da percepção infantil em relação ao mundo exterior. A percepção do mundo exterior ocorre de maneira diferenciada entre adultos e crianças. Os adultos reagem e se adaptam aos estímulos externos, procurando adequar-se de maneira eficaz a esses estímulos. Para isso, o indivíduo deve perceber as várias situações do mundo exterior da maneira mais clara e diferenciada possível, escolhendo da totalidade do complexo sistema de formas que agem sobre ele, as mais essenciais. Já as crianças, durante os primeiros meses de vida, não percebem formas distintas, e por isso, são incapazes de adaptar seu comportamento a elas. Estudos mostram que nas primeiras semanas de vida a criança passa por um estado de semi-sonolência e de isolamento em relação ao mundo que a cerca. Por exemplo, só a partir da terceira semana de vida a criança começa a fixar seu olhar em objetos brilhantes. A partir da quarta e quinta semanas os olhos começam a seguir um objeto que se move, ou seja, a criança até os três ou quatro meses não percebe o mundo exterior sob qualquer forma de estímulo (cego mental). Uma das primeiras percepções da criança referem-se a cor e a manchas coloridas descontínuas e posteriormente as formas (círculos, triângulos, esquadros). À medida que o tempo passa a criança começa a perceber vultos e formas, e essa capacidade torna-se uma das mais importantes adaptações para o organismo se desenvolver. A seguir, estão descritos alguns experimentos realizados em laboratório, que ilustram o grau em que a percepção infantil se estrutura (Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem, Vigotskii, L. S.). A fim de encontrar alguma medida objetiva para determinar se uma criança percebia uma figura como uma forma descontínua ou como um desordenado caos de linhas e pontos, agimos partindo do pressuposto que quando desenvolvida, a mente percebe a figura e a forma como um todo que resiste à ruptura.Se este fosse o caso e nós construíssemos uma figura a partir de elementos individuais separáveis, uma criança que não percebesse a figura como um todo responderia a ela como uma coleção desorganizada de elementos individuais, enquanto uma criança com uma percepção estruturada, relativamente desenvolvida, retratá-la-ia como um todo, uma figura indissociável. Nós tínhamos dois grupos de blocos. Com um deles construímos um quadrado e com o outro os blocos foram arranjados ao acaso (fig.1 - anexo). Obviamente, uma pessoa de percepção desenvolvida e diferenciada veria essas duas figuras como duas estruturas basicamente diferentes: uma não teria qualquer ordem, e o observador poderia remover uma, duas e até mesmo três peças sem qualquer dano, enquanto a outra seria um todo completo em si mesmo, no qual os elementos teriam sido arranjados para formar uma única estrutura que, em certo sentido, resistiria a qualquer tentativa de quebrá-la. Colocamo-nos as seguintes indagações: será que a criança percebe um quadrado desse tipo como uma estrutura integral, ou ele é ainda para ela apenas um grupo de peças dispostas ao acaso?

Seríamos capazes de observar em uma criança a mesma resistência que encontramos no adulto, em romper uma representação integral? No decorrer do jogo, prometemos a uma criança que lhe daríamos um doce se fosse capaz de encontrar, entre os blocos que lhe foram apresentados, um em especial, ao qual havíamos colocado uma peça de papel vermelho na base. Dispusemos os blocos de tal maneira que, juntos, formavam uma estrutura específica, sendo que um dos blocos era "extra". A figura 2(anexo) mostra esse arranjo. Em seguida começamos o jogo.

É evidente que se os blocos, dispostos na forma de quadrado, não fossem percebidos pela criança como uma estrutura regular, a escolha do bloco com a marca escondida seria feita de forma completamente casual, e cada bloco teria a mesma probabilidade de ser o escolhido. Mas se a criança percebesse todos os 16 blocos como um quadrado e o 17º como extra, então a estabilidade relativa do quadrado, em si mesma, faria com que a criança tendesse a apanhar o que permanecia sozinho, apartado. Esta seria uma demonstração de que percebia estes elementos como uma estrutura com sua própria consistência intrínseca, existindo como uma entidade descontínua, separada. Nossos experimentos revelaram que as crianças de diferentes grupos de idade respondiam de formas opostas a essa tarefa. Quase todas as crianças de um ano e meio a dois anos apanhavam os blocos de forma indiscriminada, rompendo o quadrado ao escolhe-los. Crianças de dois anos e meio a três anos ou mais, por outro lado, sem exceção, apanhavam o bloco extra. Essas crianças, evidentemente, achavam muito difícil quebrar a configuração.

Independente do número de vezes em que realizamos o experimento, colocando o bloco extra em diferentes posições, obtivemos sempre o mesmo resultado: o quadrado permanecia intacto e a criança sempre escolhia o bloco que não fazia parte do quadrado.Mesmo as nossas tentativas para medir os impulsos que inclinavam a criança no sentido do bloco extra (removendo os prêmios ligados a eles) só alteraram o curso dos acontecimentos por um curto espaço de tempo. Assim, parecia que, para esse grupo de idade, o quadrado era uma estrutura unificada, difícil de ser quebrada, e que toda a atenção da criança concentrava-se no bloco extra colocado lateralmente. Esta conclusão foi ainda mais reforçada em nossos experimentos pelo fato de que mesmo se pegássemos um dos blocos que faziam parte do quadrado e colocássemos de forma a deixar a face que continha a marca identificadora para cima (fig.3), a criança não levaria em consideração e imediatamente apanharia o bloco que permanecia isolado, não obstante o fato de que poderia obter sua recompensa de modo rápido e fácil, apanhando o bloco que ali estava com sua marca aparente.

Nós observamos uma diferença profunda e fundamental entre o comportamento de crianças de um ano e meio a dois anos e de três a quatro anos. O comportamento das crianças mais jovens era mal definido e desorganizado, e parecia ser governado inteiramente pelas percepções difusas e caóticas da criança. Para a criança o mundo só deixa de parecer desestruturado e desordenado em algum momento, entre as idades de um ano e meio a dois anos. Os primeiros fundamentos de uma percepção organizada do mundo, que subseqüentemente transformarão de forma tão completa o comportamento da criança, são lançados durante esse período. Os psicólogos sabiam que nessa idade os processos de comportamento da criança começavam a se organizar, os primeiros sinais da atenção organizada apareciam, e a criança começava a escolher objetos particulares no mundo exterior e neles fixar seu olhar.Este processo é agora muito mais inteligível para nós. Na verdade, é por volta dessa época que o mundo exterior começa a ser percebido pela criança como algo que possui uma estrutura definida; e é bastante claro que a percepção da criança começa a discriminar no mundo exterior certas estruturas mais destacadas, enquanto outras, menos estruturadas, que emergem de um segundo plano geral e que coordenam em torno de si o comportamento da criança, destacam-se como um "campo de consciência clara".Só quando certos estímulos de uma situação são escolhidos dessa forma é que se torna possível, pela primeira vez, a acomodação a eles, de forma organizada.

O que acabamos de expor aqui nada mais é que uma descrição dos traços característicos da atenção. É característico da atenção que ela escolha certos elementos em um pano de fundo geral e permitam que os outros retrocedam; a atenção é marcada , acima de tudo, pela substituição do comportamento desorganizado e difuso por respostas organizadas e concentradas em estímulos específicos. De fato, alguns psicólogos corretamente observaram que nossa atenção é apenas a expressão subjetiva da organização de nossas percepções em estruturas particulares. Por exemplo, tomemos um conjunto de linhas paralelas umas às outras, como na figura 4 A(anexo), e comparemo-lo com a configuração da figura 4 B(anexo); nos dois casos, A e B, o número de linhas é o mesmo, mas em A elas estão distribuídas de maneira uniforme, enquanto em B foi dada a elas uma certa estrutura. Como resultado, ocorre uma mudança peculiar na percepção: enquanto em A nosso olhar desliza uniformemente sobre o arranjo, nada discriminando contra o pano de fundo dessas monótonas linhas, em B nosso olhar concentra-se nas duas linhas do meio, que aparecem como uma espécie de trilha no centro de um campo estruturado, e podemos dizer que nossa atenção está favoravelmente concentrada nelas. Estamos lidando com um processo semelhante na criança, exceto que, objetivamente, uma mesma figura é, de início, percebida pela criança como uma coleção indiferenciada de elementos, e só mais tarde ela começa a percebê-la como uma estrutura integral. É claro que tanto a figura em si mesma como o que quer que esteja inferindo nela (dependendo das condições do experimento) começam a atrair a atenção da criança; em nosso experimento, especificamente, o bloco extra, separado, serve como um foco contra o pano de fundo da estrutura como um todo e atrai para ele a atenção elementar da criança.

Depois de tais testes, podemos distinguir dois estágios fundamentais fundamentalmente diferentes no desenvolvimento da percepção da criança: um estágio caótico de percepções estruturadas, no qual o mundo exterior começa, pela primeira vez, a assumir contornos distintos para a criança. No primeiro estágio, os quadros apresentavam às crianças como simples combinações caóticas de manchas coloridas; evidentemente, não notava as figuras neles existentes (nesse estágio, uma criança destruí um quadro como qualquer outro pedaço de papel). No segundo estágio, a criança começa a discriminar as figuras nos quadros, mas, ao que tudo indica, não diferencia entre o quadro de um objeto em si mesmo: a criança tenta apanhar uma maçã em um quadro, tenta brigar com um gato de papel etc.Só mais tarde ela começa a distinguir entre um objeto e sua imagem. Essa ingênua relação com as formas permanece um traço típico da percepção infantil durante algum tempo. Notamos na evolução da percepção os mesmos traços observados no desenvolvimento do comportamento ativo da criança. Os experimentos que fizemos com crianças de diferentes grupos de idade ilustraram os dois estágios pelos quais uma criança passa em sua relação com as coisas do mundo exterior: em primeiro lugar, um estágio difuso, desorganizado, e, em segundo lugar, um estágio no qual predomina a percepção ingênua das formas.

Fizemos uma cruz com os blocos (fig.5 - anexo) e pedimos a nossos sujeitos que contassem todos os blocos. Não estávamos particularmente preocupados na contagem efetiva, mas na ordem que a criança movia seu dedo de um bloco para outro. O grau e a natureza da ordem nesse processo mostrar-nos-iam, assim pensávamos, como uma criança, em diferentes estágios de desenvolvimento, acomodava-se a uma estrutura regular mas relativamente complexa, isto é, como essa estrutura determinava as ações da criança. Apresentamos essa tarefa a crianças de dois a três anos. Percebemos imediatamente que uma estrutura regular ainda não produzia, nessa idade, um comportamento metódico, ordenado:quando ela contava os blocos, apontava um deles e, em seguida, outro, sem ordem, pulando de uma fila para outra, deixando alguns de fora e contando outros duas vezes. Sua adaptação à estrutura era claramente assistemática. Pudemos observar o mesmo tipo de comportamento em muitas crianças retardadas de mais idade, mas em níveis mais baixos de desenvolvimento.Esta acomodação desordenada, assistemática mais tarde cede lugar a formas organizadas e sistemáticas de comportamento, embora não todas de uma só vez; pode-se dizer que no início, apenas as estruturas mais simples começam a produzir formas organizadas de comportamento. Uma criança de três a quatro anos é capaz de contar, correta e sistematicamente, uma série de blocos dispostos em linha reta (fig.6 A - anexo), mas ainda não é capaz de responder de forma organizada à estrutura de uma linha irregular (fig.6 B - anexo); a habilidade para responder corretamente à estrutura de uma cruz, que requer uma passagem sistemática de uma linha de intersecção para a outra, aparece mais tarde.

O que achamos especialmente interessante, todavia, é que uma criança não adquire diretamente essa habilidade para enfrentar uma estrutura complexa, mas a alcança através de um estágio intermediário. Enquanto para uma criança de dois a três anos a estrutura da figura percebida não exerce qualquer influência sensível na forma pela qual ela organiza seu comportamento, no estágio seguinte, a estrutura determina totalmente o comportamento da criança. O exemplo da cruz mostra isso com especial clareza. Uma criança de cinco a seis anos age de acordo com a ordem na qual ela os percebe no arranjo em cruz.Mas uma vez que a cruz é constituída por duas linhas que se cruzam, a criança conta cada linha separadamente, de forma que o bloco do meio é contado duas vezes. Enquanto no primeiro estágio cada bloco constituía um item separado, independente para a criança, nesse segundo estágio sua orientação é determinada por sua percepção da forma total, e o contar torna-se uma função da forma. Só muito mais tarde, este papel determinante simples da forma será superado,e então, ao mesmo tempo em que a criança percebe uma estrutura integral, ela começará a discriminar também os elementos individuais.

Assim chegamos ao terceiro estágio, no qual a habilidade para se acomodar a uma estrutura organizada caminha lado a lado, com o uso crítico de um processo comparativamente complexo como a contagem elementar. Nesse terceiro estágio, os elementos individuais são diferenciados do todo, e o comportamento começa a assumir a natureza complexa e mediadora; uma reação direta à forma cede lugar à percepção direta e aculturada, ligada à abstração dos elementos individuais.Esta diferenciação dos elementos individuais em uma forma obedece a limites de idade bastante definidos, os quais embora dependam, em uma considerável extensão, da complexidade da própria estrutura, são ainda bastante constantes. Assim descobrimos que 62% dos pré-escolares de quatro a cinco anos cometem erros, ao contar uma cruz, por causa da percepção totalizante da estrutura; em outro grupo de oito a nove anos, os erros desse tipo eram cometidos apenas em 6,2% dos casos.Quando uma figura mais complexa (fig.7: os blocos estão dispostos em dois quadrados que se cruzam) foi dada às crianças, o numero de erros cometidos (contar duas vezes os blocos no ponto de intersecção, ou contar de forma assistemática, sem ordem) aumentou 100% para os pré-escolares (cinco a seis anos) e permaneceu em nível elevado mesmo para o grupo de crianças mais velhas (87,5%). A habilidade para discriminar um elemento individual dentro de uma forma percebida é tarefa bastante complexa para a criança; é claro, todavia, que só após o desenvolvimento de tal habilidade será a criança capaz de utilizar formas complexas de pensamento que requerem a habilidade de isolar, à vontade, os elementos individuais, abstraí-los e operar com eles com relativa facilidade.

Assim, vemos que o caminho percorrido pela percepção infantil vai da percepção caótica, difusa, para uma relação simples, totalizando com as formas, para uma complexa acomodação a elas; acomodação que se faz por mediação, combinando traços totalizantes com relativa facilidade de discriminação dos elementos individuais.



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