Título:
O verão glorioso
Tipo: Slash
Censura: MA (ou NC-17)
Gênero: Angst, Dark, Romance
Spoilers: Todos os 5 livros, todos os 3 filmes
Resumo: Harry passa o verão com Snape. Continuação de A prisão de Harry
Potter. Mas pode ser lido separadamente.
Beta: A grande Lilibeth, ou será Lili-beta?
Notas: Peço desculpas se alguns dos nomes estiverem no original e não na
tradução brasileira. Eu não acredito em traduzir nomes, embora eu
conscientemente acredite em alienígenas como um exercício de estatística.
Nota 2: Essa fic é uma continuação da fic de Magalud chamada A
Prisão de Harry Potter. Você não precisa ler para entender, mas eu vou
te amar se você fizer isso.
Disclaimer: Todos esses personagens são de J.K. Rowling. Por favor, não me
processe, porque eu não estou ganhando nenhum dinheiro com isso.
"O
inverno do nosso descontentamento foi convertido agora em glorioso verão por
este sol de York, e todas as nuvens que ameaçavam a nossa casa estão
enterradas no mais interno fundo do oceano. Agora as nossas frontes estão
coroadas de palmas gloriosas".
W. Shakespeare, Ricardo III, Ato
Um, Cena Um.
– Chegamos.
Harry Potter olhou em volta, e não pôde deixar de experimentar alguma surpresa. Era uma cabana inglesa confortável, não muito grande, rústica, com móveis de madeira escura e esparsos objetos decorativos. Nada do que ele esperava, levando-se em conta que seu dono era Severus Snape, Mestre de Poções de Hogwarts.
Harry tinha passado por um de seus piores dias na vida: tinha sido preso pela polícia Muggle, acusado de tráfico de drogas. A droga em questão tinha sido um inocente pó de Floo, mas para os policiais Muggle aquilo parecera ser uma misteriosa substância tóxica. Tudo tinha sido uma armação de seus tios, ansiosos por se verem livres de Harry. A coisa se tornara ainda mais surreal quando Snape aparecera vestido de advogado rico, bem-vestido e loquaz, e em três tempos o tirara da prisão. Agora, ele estava num lugar que nunca estivera antes: o local onde Snape passava os verões. E Harry passaria o verão com seu professor de Poções.
– Como pode ver – Snape interrompeu seus pensamentos –, não é muito grande, e não há muito aqui para manter um jovem longe do tédio. Você terá que improvisar suas próprias distrações.
– Tudo bem. – Ele sempre fazia isso com os Dursley, mesmo. – Sem problema.
– Por questões de segurança, você está proibido de se afastar da casa sozinho. Isso significa sair do terreno. Há proteções mágicas por todo o perímetro, e feitiços para desencorajar visitantes. Mas você deve ter reparado que o terreno não é exatamente pequeno.
Harry anotou mentalmente que deveria checar o jardim assim que fosse possível. Pena que eles tinham chegado à cabana à noite, e ele não pudera ver tudo. Snape – Severus, corrigiu-se mentalmente – mostrou:
– Ali é a cozinha, ali o banheiro, essa porta é meu quarto. Eu jamais pensei em ter companhia, portanto não há quarto de hóspedes. Mas posso arrumar um lugar para você dormir na sala onde estoco ingredientes. Venha comigo – Harry obedeceu e viu um quartinho do lado da cozinha, que não era tão pequeno quanto parecia – Se isso não for aceitável, você pode ocupar o sofá da sala.
– Não, aqui está bom. Tem uma cama extra?
Severus tirou sua varinha e transfigurou uma cama no quartinho.
– Obrigado – Harry agradeceu.
– Aqui estão suas coisas. – Severus tirou um cubo de madeira e tocou a ponta da varinha nele: o cubo se transformou no malão, completo com uma gaiola de pássaro – Pode arrumá-las enquanto eu abro a lareira.
Harry obedeceu, mas logo ouviu vozes na sala. Estava claro que Severus estava conversando com alguém na lareira. Harry ficou tentando prestar atenção no diálogo, mas não conseguiu captar mais do que algumas palavras esparsas até que Severus o chamou:
– Harry, o diretor quer falar com você.
A cabeça de Dumbledore pairava entre as chamas da pequena lareira da cabana. Harry prontamente se apresentou:
– Boa noite, senhor.
– Olá, Harry – saudou Dumbledore alegremente – Como está?
– Agora estou bem. Obrigado por ter me ajudado com a polícia.
– Não, você deve agradecer ao Prof. Snape. Foi ele que o tirou da cadeia, não foi?
– Sim, senhor.
– Harry, o Prof. Snape me disse que você prefere passar o verão com ele. Isso é verdade?
– Sim, senhor.
– Eu pensei que gostaria de rever Remus Lupin e passar sua folga com seus amigos.
– Oh, bem, eu... Na verdade, senhor, o que eu não quero é voltar para Grimmauld Place.
– A casa passou o ano em reformas. – anunciou Dumbledore, animadamente – O retrato da mãe de Sirius foi retirado, depois de meses de tentativas.
– Parece ótimo, Prof. Dumbledore, mas... Sirius não estará lá.
– Harry – O velho professor suavizou a voz – Já faz mais de um ano. Você se recuperou tão bem depois da morte do jovem Diggory.
– Sirius era bem mais próximo do que Cedric. Mas tem mais uma coisa: Lupin iria me tratar como um amigo, eu acho. No momento, eu preciso de um adulto do meu lado.
– Está bem, Harry. Mas se vai passar o verão com Prof. Snape, lembre-se que está aí por sua própria escolha. De qualquer modo, você pode mudar de idéia a qualquer momento. Até lá, deve obedecê-lo em tudo que ele disser. Lembre-se de que ele estará zelando por sua segurança sozinho. Em Grimmauld Place, seria mais fácil fazer isso, mas mesmo assim confio plenamente nas habilidades de Severus em protegê-lo, Harry.
– Obrigado, senhor.
– Não há de quê, meu rapaz. Lembre-se de que minha porta está sempre aberta. Tenha um bom verão.
Dumbledore encerrou a ligação e Harry ficou imaginando que tipo de verão ele teria, com Snape por perto. E ele ainda não entendia muito bem como ele tinha escolhido isso. Mas de alguma forma, ele sentia que tudo iria terminar bem.
Eles tomaram sopa no jantar, e foi uma refeição razoavelmente tensa. O fato é que Snape e Harry tinham pouco em comum, e por um instante Harry começou a achar que talvez aquela idéia de passar o verão com Snape não fosse tão boa, afinal.
Harry quebrou o silêncio desconfortável:
– Er... Eu queria agradecer.
– Não há o que agradecer. Eu estava sob ordens de Dumbledore.
– Não, digo, por me receber em sua casa – Severus grunhiu algo como "Nenhum problema" e voltou a se ocupar de sua sopa. – É uma casa bonita – Assim que Harry pronunciou as palavras, viu como eram desajeitadas.
Novo grunhido.
Ele voltara a ser Snape, pensou Harry, e Snape definitivamente não era de jogar conversa fora ou de falar de assuntos amenos. Mas isso não iria impedir Harry de tentar estabelecer algum tipo de diálogo.
– Ela é de sua família?
Snape pareceu empalidecer um pouco mais.
– Não, ela é minha. Tome sua sopa, Potter.
– Harry – Snape o olhou – Se vou chamá-lo de Severus, então pode me chamar de Harry.
Snape deu um sorriso sarcástico.
– Muito bem, Harry. Diga-me então, Harry, por que preferiu passar o verão longe de seus amigos?
A pergunta pegou Harry de surpresa.
– Bom, eu... Eu já falei: aquela casa me faz lembrar Sirius.
– Você poderia ter ido para um outro lugar – lembrou Snape – O Diretor ficaria feliz de deixá-lo com os Weasley.
– Eu sei, mas prefiro não ficar com eles. Não vai me mandar para lá, vai?
– Ainda estou pensando sobre isso, já que você não respondeu minha pergunta: por quê?
– Porque prefiro passar o verão aqui, só isso. – Harry se surpreendeu ao perceber que aquilo era verdade.
– Pot – Harry, nós mal nos tratamos de maneira civilizada, para não mencionar o fato de que passamos anos nos odiando mutuamente. Por que essa súbita predileção por minha companhia?
– Justamente por isso – confessou Harry, vermelho – Você não gosta de mim, não se importa comigo, mas sei que não vai me maltratar. O ano inteiro meus amigos viviam pisando em ovos perto de mim, sempre me perguntando se eu estava bem, como eu estava me sentindo, e evitando falar no nome de Sirius. Eles me tratam diferente. Você, não.
Snape pareceu considerar aquilo.
– Este não é um lugar de diversão. E você terá que ajudar na casa.
– É, ela está mesmo precisando de uma limpeza. Posso ajudar sem problemas.
– Não tenho muita coisa para distrair um adolescente aqui.
– Já disse que isso não é problema.
– Como queira. Eu tenho trabalho a fazer no laboratório – Harry franziu o cenho e olhou em volta, intrigado. A casa não era grande, e ele não vira lugar para um laboratório de Poções. – No porão, Potter – Snape apontou para uma porta discreta na cozinha – É lá que ficarei boa parte do tempo.
– Posso ajudar?
Foi a vez de Snape franzir o cenho:
– E por que ajudaria? Você é um fracasso em Poções.
– Posso preparar os ingredientes, ser seu ajudante. Assim você trabalha mais rápido.
– Você precisa completar todos os seus trabalhos escolares de verão. Depois veremos – Ele se ergueu e levou o prato vazio até a pia – Agora vá dormir. Você teve um dia cheio.
– Não quer ajuda com a louça?
– Pode deixar comigo.
Harry pensou em resistir, mas desistiu. Ele mal chegara, não queria irritar Snape logo de cara. Além do mais, como pôde perceber assim que sua cabeça pousou no travesseiro, ele estava mesmo cansado.
Na manhã seguinte, Harry acordou e viu-se sozinho em casa. Tomou um banho e assim que saiu do banheiro, encontrou Snape entrando na cozinha, carregado de compras.
– Precisa de ajuda?
– Bom-dia para você também, Potter. Não será necessário, eu posso guardar tudo.
– Então enquanto isso, posso fazer o café. Que tal ovos mexidos?
– Para sua sorte, eu acabo de comprar ovos. Há panelas no armário embaixo da pia.
Um pouco constrangidos, os dois se movimentavam na pequena cozinha, para preparar o café da manhã. Depois da refeição, Harry se ofereceu para lavar os pratos, e Snape se recolheu ao laboratório, lembrando ao jovem que ele deveria estudar.
Quando Harry terminou na cozinha, ele se dirigiu a seu quarto, disposto a pegar seus livros, mas interrompeu-se no meio do caminho. À luz do dia, ele notou que a casa tinha um ar sujo e abandonado. Ele se lembrou de que o local provavelmente ficava fechado o ano inteiro, por isso juntava tanta poeira. Também se lembrou que Snape pedira que ele ajudasse nas tarefas de casa, então achou natural procurar material de limpeza e começar a faxina.
Com baldes, escovões e sabão, Harry escolheu a cozinha para começar. A tarefa de limpar armários, lavar a louça e os copos guardados consumiu-lhe boa parte da manhã. Ele lavaria o chão mais tarde, mas achou que estava na hora de começar a preparar o almoço. Ainda bem que a dispensa estava cheia.
Quando o cozido de carne com batatas estava pronto, ele se perguntou se deveria chamar Snape. Logo desistiu da idéia: provavelmente o Mestre de Poções gritaria com ele por interromper-lhe o trabalho. Ele decidiu comer sozinho, terminar a faxina na cozinha e começar a fazer seus deveres.
Quando emergiu do laboratório no meio da tarde, Severus encontrou o garoto debruçado sobre os livros, na sala. Franziu o cenho:
– Não está com fome?
– Não, eu almocei. Não o chamei porque achei que não queria ser incomodado. Mas deixei comida no forno, se estiver com fome. Deveria tê-lo chamado?
– Se tivesse me chamado, eu não teria interrompido meu trabalho.
– Mas teria me expulsado do laboratório?
– Não teria corrido com você de lá, se é o que sugeriu. E seus deveres?
– Ainda há muito que fazer. Mas eu posso esquentar seu prato primeiro.
– Não interrompa seus estudos – Severus olhou em volta – Você saiu de casa hoje?
– Não. Ninguém pode saber que eu estou aqui.
– Potter, eu lhe disse que a casa é protegida. Pode andar pelo terreno.
– Bom, na verdade, eu me distraí aqui dentro mesmo.
– Você deve sair de casa. Precisa tomar sol.
Harry reprimiu um sorriso:
– Você também podia pegar um solzinho.
Snape olhou para ele e estreitou os olhos, azedo:
– Sol é para crianças e plantas. Eu tenho mais de 35 anos e não tenho o pé enfiado num vaso com terra.
Harry precisou piscar, mas percebeu que a resposta era um tipo de piada ácida, típica de Snape.
– Ainda digo que não faria mal.
Snape grunhiu e se dirigiu à cozinha, onde fez sua refeição antes de voltar novamente ao laboratório.
Mais uma vez sozinho, Harry deixou os livros de Transfiguração e, movido pela curiosidade, abriu a porta da cozinha. Ele se espantou ao ver um pequeno quintal, que precisava de um jardineiro com urgência. Havia árvores mais atrás, e um local onde ele poderia descansar, cheio de sombra. Interessado em ver mais, ele deu a volta na casa e percebeu que o jardim na parte da frente não estava em melhores condições. A casa definitivamente ficava muito abandonada, concluiu. Ele se decidiu a encampar a tarefa – mas só a partir do dia seguinte.
O pouco que restava do dia foi gasto com suas lições. A noite já descia sobre a cabana quando Snape voltou do laboratório. Harry indagou:
– Está com fome? Posso preparar uns sanduíches para nós com o que sobrou do cozido.
– Sanduíches de cozido? – A sobrancelha de Snape estava alta – De onde você tirou essa idéia, Potter?
– Meu nome é Harry. E saiba que minha tia faz isso sempre. Ela usa pão de hambúrguer e molho chili.
– Eu faço o jantar – decidiu Snape – Poupe-me das demonstrações da culinária Muggle.
– Você sabe cozinhar?
– Potter – O olhar de Snape se estreitou – O que eu faço para viver?
Harry sabia que estava sendo tratado como um estudante particularmente estúpido.
– Poções – respondeu timidamente.
– Em outras palavras, eu preparo ingredientes e os cozinho em grandes panelas ferventes, não concorda?
O garoto enrubesceu.
– Oh. É claro.
– Mas se quiser ajudar, posso lhe ensinar a preparar...
Harry nunca soube o que Snape ia ensinar a preparar, porque ele se interrompeu naquele exato momento, segurando com força o braço direito. Demorou alguns segundos até Harry entender o que acontecia: a Marca Negra. Ele sentiu a cicatriz em sua testa latejar.
– Bem, Potter, parece que você vai ter que consumir seus sanduíches de cozido, afinal de contas. – Harry não sabia o que dizer, mas Snape continuou – Pratique seus exercícios de Oclumência.
– Sim, senhor.
Ele também queria dizer algo como "Boa sorte" ou "Tome cuidado", mas Snape saiu rapidamente pela porta, e Harry logo ouviu o estalido indicando que ele Disaparatara. Engraçado, junto com Snape sua fome também se foi.
Harry não comeu os sanduíches com o resto do cozido. Era tarde da noite quando ele tomou uma xícara de chá. Depois foi para o seu quarto, mesmo sabendo que não conseguiria dormir. Não que ele tivesse planos de esperar acordado por Snape, mas sua cicatriz incomodava e não o deixaria dormir de qualquer jeito. Depois, ele tinha que admitir estar curioso. Com a Oclumência, ele não estava mais tão vulnerável em relação a Voldemort. Mas mesmo sua mente estando fechada, Harry podia sentir a ira do Lord das Trevas naquela noite.
Durante toda aquela noite, ele cochilou levemente, mas a cicatriz latejando lhe deu a certeza de que Voldemort usava a Cruciatus e estava particularmente irritado. Ele imaginou se Snape tinha recebido alguma punição.
Entre um cochilo e outro, Harry procurava perceber se Snape tinha voltado. O dia amanheceu e Harry simplesmente desistiu de dormir, arriscando-se a olhar no quarto principal da casa e confirmar que o dono ainda não chegara. A cicatriz de Harry agora tinha uma dor meio nula, mas permanente, como uma enxaqueca mal-curada. Ele fez outro chá, tentando não pensar naquilo que não saía de sua cabeça. Procurou se ocupar faxinando outro cômodo da casa – desta vez, o quartinho onde dormia.
O sol brilhava alto quando ele ouviu um barulho na sala. Harry parou com a limpeza e foi ver o que era.
Snape estava dobrado na cintura, cambaleando. Harry correu a ampará-lo:
– Severus...!
Ele começou a levá-lo para o quarto, dizendo:
– Está ferido! Eu vou chamar o Prof. Dumbledore!
– Não!... – A voz de Snape era entrecortada, e ele deveria estar com muita dor – Não, eu posso... posso cuidar disso!
Harry o ajudou a sentar-se na cama, e ele pediu:
– Preciso... daquelas poções...
Havia três frascos num móvel perto da cama, e Harry trouxe os três para ele. Um ele tomou imediatamente, o outro ele colocou na cama e o terceiro ele levou aos lábios, mas antes de conseguir tomar, ele tombou para o lado. Havia desmaiado. Harry se apavorou:
– Prof. Snape! Prof. Snape!
Sem saber o que fazer, ele pegou o vidro de poção e o forçou pela garganta de Snape abaixo. Ele resmungou e se mexeu, mas não voltou à consciência.
Harry estava quase sem poder respirar. O que ele iria fazer?
Ele correu para a lareira, jogou um pouco de pó e inclinou-se nas chamas, chamando:
– Prof. Dumbledore! Prof. Dumbledore!
A voz dele deveria ter transparecido todo o desespero, porque o diretor de Hogwarts imediatamente atendeu:
– Harry! O que aconteceu?
– É o Prof. Snape! Ele foi a uma reunião com Voldemort, e voltou muito mal! Ele desmaiou, e a roupa dele está toda molhada – eu acho que é sangue! Madame Pomfrey não pode vir para cá?
– Lamento, Harry, mas isso não é possível. Esse local onde você está é Imapeável. Não temos como chegar até vocês.
– Mas ele está muito mal! – A voz de Harry se elevou algumas oitavas – Ele pode até morrer! Está sangrando muito, pálido, e acabou de desmaiar!
– Harry, preste atenção. Você vai ter que cuidar dele.
– Cuidar dele? Mas como? Eu não sei o que fazer!
– Espere aí. Vou trazer Madame Pomfrey para lhe dizer o que você vai ter que fazer.
Não foi exatamente uma operação fácil, a de ser instruído pela lareira sobre como cuidar de um Snape ferido e inconsciente. Harry se sentia como um passageiro de avião que tinha de pousar sozinho a aeronave, sendo instruído pelo rádio. Ele ia anotando tudo que precisava fazer, as poções que teria que administrar, de quanto em quanto tempo. Mas ele arregalou os olhos quando a enfermeira começou a dizer que ele teria que fazer feitiços.
– Mas... eu não posso usar mágica! – lembrou o garoto – É contra as regras da escola. Posso ser expulso por causa disso!
Madame Pomfrey garantiu:
– É o modo mais rápido e eficiente de cuidar dos ferimentos dele. Para evitar encrencas, use a varinha dele. Precisa fechar as feridas primeiro, depois usar o outro feitiço que eu lhe disse para ver se ele tem alguma coisa quebrada, e o outro para emendar o osso. Procure mantê-lo aquecido para ele não entrar em choque. Você vai precisar preparar a Poção de Reposição de Sangue. Não é difícil, é matéria para o 5° ano.
– Ele vai ficar uma fera se eu mexer no laboratório dele. Ou se souber que chamei vocês.
– Depois eu falo com Severus – disse o Prof. Dumbledore – Chame novamente se precisar de ajuda, Harry.
Harry se despediu e foi correndo cuidar de seu professor. Ele estava apavorado com a responsabilidade, mas estava ainda mais apavorado que o homem morresse diante de seus olhos.
A primeira coisa que Harry fez foi localizar a varinha de Severus no meio de suas roupas encharcadas de sangue. A visão do sangue o fez se apressar ainda mais. Com dificuldade, ele tirou as roupas de Severus para ver os ferimentos. Ele tinha cortes generalizados nos braços e um machucado feio na testa. Mas o pior estava no abdômen: um corte muito profundo, como se ele tivesse levado uma facada. A primeira coisa que Harry fez foi usar a varinha para fechar todas aquelas feridas.
Depois, usando o feitiço que Madame Pomfrey indicara, verificou rachaduras em três costelas. Devia ser por isso que ele estava respirando de modo rápido. Harry emendou os ossos e observou o que tinha feito até o momento.
Severus estava pálido, mortalmente pálido, e sua pele parecia ter adquirido um aspecto parecido com cera. Estava fria ao toque. Harry observou o corpo de seu professor: tinha muitos ferimentos e marcas roxas, estava imundo por causa de sangue e terra. Ele obviamente rolara pelo chão. Alguns músculos espasmavam de vez em quando – efeitos colaterais da Maldição Cruciatus, ele sabia. Aparentemente, ele estava estável, e bem melhor.
Mas Harry reparou uma coisa que jamais tinha passado por sua cabeça antes: aquele corpo era bem-feito. Não era atlético, certamente, nem jovem, mas simplesmente bem-feito e bem-cuidado. As pernas eram bem torneadas e fortes, os braços firmes sem serem demasiadamente musculosos, o abdômen firme, o peito amplo que tinha poucos pêlos e dois mamilos escuros. Não havia depósitos de gordura visíveis, mas não era um corpo duro e cheio de ângulos. Em certos locais havia até algumas curvas convidativas. Com todas aquelas roupas que Severus costumava usar, poucos poderiam adivinhar que um corpo desses estava escondido embaixo delas.
Por outro lado, Harry ficou chocado em notar que estava reparando essas coisas em seu professor. Ele tinha finalmente admitido para si mesmo, durante o seu sexto ano, a atração por membros de seu próprio sexo, mas ainda não tinha agido em cima dessa atração, e sequer tinha tido arranjado coragem de contar a seus melhores amigos. Ron e Hermione iriam entender, Harry dizia para si mesmo. Por enquanto, ele se contentava em admirar alguns garotos bonitos e fantasiava ficar com algum deles.
Apesar das circunstâncias, Harry tinha de reconhecer que estava diante de um belo exemplar de um corpo masculino, um bem atraente. A maior surpresa era que ele estava achando Severus atraente, e não estava enojado por ter aqueles pensamentos a respeito de seu professor. Ele era um homem, um homem adulto – não era como seus colegas. Deveria saber tudo a respeito de sexo. Como seria Snape na cama?
Droga, aquilo não era hora de pensar nisso, censurou-se Harry, voltando ao trabalho. Cuidadosamente, usando uma esponja, uma toalha e uma bacia de água aquecida, Harry limpou o corpo de Snape e envolveu-o em cobertores, apesar de ser verão. Madame Pomfrey dissera que ele precisava estar aquecido. Harry deu-lhe uma poção contra dor e foi ao laboratório preparar a Poção de Reposição de Sangue. Ele se sentiu como se estivesse violando algum tipo de terreno sagrado. Enquanto fazia a poção, ele constantemente ia checar para ver se Snape tinha acordado.
Era metade da tarde quando Harry sentiu que Severus poderia estar dormindo, e não meramente desmaiado. Ele achou melhor deixar alguma comida pronta. Madame Pomfrey também dissera que alimentação era importante, e Harry já observara que Severus não era cuidadoso com isso, comendo em horários irregulares, isso quando comia. Por isso, ele fez outra sopa, dessa vez reforçada, uma de galinha.
Enquanto a Poção de Reposição de Sangue esfriava, Harry observou seu professor, ainda adormecido. Ainda estava com uma palidez marmórea, mas as linhas de seu rosto pareciam um pouco mais suavizadas. Naquele momento, jamais Harry o viu tão humano, tão distante daquele homem odioso que fazia sua raiva emergir cada vez que o tratava injustamente na escola. Ele sentiu naquele momento traços do homem que o libertara da cadeia há poucos dias – um homem que era duro, mas que o protegia e não o machucaria. Um adulto em quem confiar. Ou mais do que isso.
Com paciência e cuidado, Harry conseguiu fazer Severus tomar, mesmo desacordado, a poção que ele precisava. E já que estava enfiando líquidos goela abaixo de seu paciente, ele arriscou dar um copo da sopa de galinha. E ficou do lado dele, esperando alguma reação.
Harry pegou uma cadeira na sala e colocou ao lado da cama. Ficou lá a noite toda.
Pelo menos dessa vez sua cicatriz estava quieta.
Severus Snape era uma daquelas pessoas que antes mesmo de abrir os olhos já sabia onde estava. Portanto, quando despertou, tinha certeza de que não estava nas masmorras de Hogwarts, mas sim na sua cabana, aquela que usava durante o verão.
Outra coisa que ele sabia é que estava com dores. Mas não tão grandes quanto supunha. Isso o intrigou.
Olhando para o lado, ficou surpreso. Harry estava sentado perto de sua cabeceira, dormindo desajeitado com a cabeça inclinada para trás, pousada no encosto da cadeira. Com dificuldade e tomando cuidado para não acordar o rapaz, ele se levantou para ir ao banheiro, surpreendendo-se ao se ver apenas com a roupa de baixo. Atravessou o quarto cambaleando, com tudo girando a seu redor até chegar ao banheiro. Quando voltou, notou que Harry não acordara. Também notou que em sua cabeceira estavam diversos vidros de poções.
Por um instante, ele teve forças para se irritar com a perspectiva de o garoto ter revirado suas coisas e bagunçado seus estoques. Logo em seguida, um cansaço tão grande tomou conta de seu corpo que ele afundou no travesseiro, a irritação dissipando-se rapidamente. Ocorreu-lhe, enquanto sentia os músculos doloridos relaxando, que o garoto devia estar ali há muito tempo. De novo, ele ficou intrigado. Por que Harry Potter faria isso?
A última pessoa que cuidara dele quando estivera doente tinha sido Madame Pomfrey, e isso no seu primeiro ano. Ele ficara admirado: fora sua mãe, ninguém jamais fizera isso por ele antes. Que Potter – corrigiu-se, Harry – estivesse fazendo isso agora era uma surpresa pela qual ele jamais esperaria.
Severus fechou os olhos, exausto. No último ano, seu conceito a respeito de Harry Potter mudara consideravelmente. As aulas de Oclumência tinham aberto uma porta que ele jamais suspeitara: a infância do Menino de Ouro não tinha sido nem rosa nem dourada. A convivência do sexto ano de Harry em Hogwarts confirmara aquela visão. Era surpreendente que o filho de James Potter tivesse uma vida infeliz. Severus descobrira que Potter não tinha mágoas a esse respeito, e sim, marcas.
Essa era uma circunstância que Severus podia entender bem, tendo vivido literalmente a mesma coisa. Além do mais, a morte do padrinho deixara Pot – Harry, corrigiu-se – mais circunspecto, menos sorridente. Era evidente o impacto daquela perda.
Pena, pensou Severus, porque o rosto de Harry era capaz de iluminar uma sala se estivesse sorrindo. O garoto conseguia irradiar exuberância nos gestos mais simples, com uma sinceridade e uma inocência infecciosa. Ele podia ser cativante, mas ainda assim era algo discreto e charmoso. Não que ele fosse atraente no sentido físico, mas havia um certo charme que Severus começara a perceber aos poucos no último ano.
Aos poucos, ele já não era tão irritante.
Aos poucos, ele começou a ser atraente.
Aos poucos, ele podia ser Harry.
Infelizmente, tudo isso era proibido para Severus. Se Harry descobrisse o que Severus era, o que ele carregava, o menino provavelmente voltaria a tratá-lo como seu professor odioso. Mas Severus não podia esperar ser tratado diferente. Todos o usavam. Era assim que as coisas eram. Sua vida era isso.
Uma onda de desconforto perpassou-lhe o corpo, e ele afundou mais ainda rumo à inconsciência, gemendo levemente. A imagem de Harry, sorridente, embaralhou-se em sua mente numa névoa cinza. Severus afundou mais e mais, rumo à perda total de sentidos.
Uma mão distante tocou-lhe a testa em brasa.
– Está tudo bem, Severus.
O gesto não o devolveu à consciência, mas era um toque gentil e terno, confortador, que o fez relaxar completamente e abraçar a escuridão com alívio.
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Foi o mesmo toque gentil que o acordou. Olhos verdes brilhavam para ele tanto quanto o sorriso que o saudou.
– Boa-tarde, Severus. Como se sente?
Como se tivesse engolido um fardo de algodão e caído de uma vassoura no campo de Quidditch.
Severus viu o frasco de poção na mão de Harry e sentou-se na cama, com um careta por causa dos ossos doídos.
– O que é isso?
– Poção de Reposição Sangüínea. – Ele parecia orgulhoso. – Já é minha segunda remessa.
– Eu não tenho essa poção em estoque. Como a conseguiu?
– Eu fiz.
– Impossível.
– Não, eu fiz.
– Eu digo que é impossível. Primeiro porque você não saberia fazer uma poção nem para salvar sua vida. Segundo porque isso implicaria que você usou meu laboratório, e nem você seria imprudente o suficiente para usar o meu laboratório sem minha permissão.
Harry não se intimidou:
– Tudo bem, pode me colocar em detenção mais tarde, se quiser. Está com fome?
– Não.
– Eu fiz uma sopa e podia tentar tomar um pouco. Está há muito tempo sem comer.
– Eu disse que não estou com fome.
– Olhe, eu vi como ficou. Passou bem mal. Acreditei que não sobrevivesse.
– E aí resolveu bancar a enfermeira? O que o fez pensar que podia cuidar de uma pessoa doente?
– Eu consultei Madame Pomfrey. Ela me disse o que fazer. Agora pare de ser rabugento e tome sua poção.
– Tomar uma poção que você fez? Isso pode me envenenar!
Harry perdeu a paciência:
– Pois para seu governo, a poção funciona! Sua febre abaixou, e os ferimentos não infeccionaram.
– Febres? Ferimentos?
– Você teve febre muito alta, não sei como não delirou. E havia ferimentos bem profundos em todo seu corpo. Perdeu muito sangue, então tive que fazer a poção. Está muito fraco, e precisa tomar isso. Vamos lá.
Severus o encarou, tentando esconder sua surpresa. Harry tinha se esforçado demais para mantê-lo vivo. Na verdade, ele ainda se sentia fraco demais para discutir.
– Então me dê logo essa maldita poção e a sopa.
Harry imediatamente lhe entregou dois vidros:
– Uma é para o sangue, a outra para febre. Espere que vou esquentar a sopa.
O rapaz deixou Severus, que tomou suas poções com um milhão de pensamentos sobrevoando sua cabeça ainda pesada de febre. Um arrepio de frio percorreu-lhe o corpo e ele fechou os olhos, suspirando alto.
A voz de Harry o devolveu à realidade.
– Severus, tudo bem?
– Sim, eu estou ótimo – mentiu, ajeitando-se na cama e recebendo uma bandeja com o prato de sopa no colo – Eu não tenho uma bandeja.
– Eu transfigurei uma chaleira. Coma logo antes que esfrie.
– Você está mesmo decidido a bancar a enfermeira, não está?
– Você precisa de cuidados e eu sou o único por perto. – Houve uma pausa. – Eu senti que Vold – Você-Sabe-Quem estava muito irritado.
Severus demorou a responder.
– E sua Oclumência?
– Estava sob controle, mas era raiva demais. Por que ele tinha tanta raiva?
– Bem, ele queria saber a seu respeito.
– Eu? Como assim?
– Ele soube que você tinha sido preso e não estava mais na casa de seus tios. Pensa que está desprotegido e vulnerável a um ataque. Quer localizá-lo de qualquer maneira.
– E descontou essa raiva toda em você?
– Minha saída de Hogwarts foi considerada... inoportuna. O Lord das Trevas ficou deveras desgostoso.
– Para dizer o mínimo – Harry se sentiu culpado – Desculpe.
– Por quê?
– Pelo que passou por minha causa. É culpa minha.
– Bobagem. Você não aplicou nenhuma maldição. Além do mais, fui punido por não ter informações valiosas e úteis. Isso sempre acontece nas férias, quando fico longe de Hogwarts.
– Não podia dar nem uma meia informação?
– Isso não só seria arriscado como não aplacaria a ira do Lord, se é o que está pensando – ele colocou a bandeja de lado – Já comi o bastante.
Harry olhou o prato quase cheio e protestou:
– Não comeu quase nada! Precisa se alimentar.
Severo o encarou com um olhar aborrecido:
– Você tem feito seus deveres?
A mudança de assunto pegou o rapaz de surpresa:
– É... Quer dizer... Um pouco...
Severus suspirou, exausto.
– Nem preciso usar Legilimência para ver que não se dedicou aos estudos.
– Ora, eu estava cuidando de você.
– Agradeço seus esforços, mas não eram necessários. Agora vá estudar.
Harry recolheu o prato e continuou protestando:
– Devia descansar mais.
Ele mal conseguia manter os olhos abertos, os músculos todos relaxando depois daquela sopa quentinha.
– Não se preocupe comigo.
Fraco, deitou a cabeça, com um suspiro. Ainda tinha um fiapo de consciência quando sentiu ser coberto, suavemente.
– Descanse bem.
Severus acordou no meio da manhã no dia seguinte, sentindo-se bem melhor e sem qualquer sinal de febre. Sentou-se na cama e o quarto não girou, o que era um bom sinal. Harry não estava lá, só a cadeira.
Tomou um banho demorado, procedendo a um inventário completo e detalhado de seus ferimentos. Ele ainda sentia alguns músculos doloridos e imaginou que isso fosse persistir por mais algum tempo.
Refrescado, foi para a cozinha, imaginando onde o menino teria se metido enquanto preparava um chá. Foi justamente ao olhar a janela da cozinha que o viu no quintal: o rapaz estava sem camisa, agachado no sol, cuidando das plantas. Sem pensar no que fazia, Severus observou os músculos definidos, a compleição certamente franzina demais, o suor espalhando-se pela pele alva, as gotas tornadas douradas ao serem beijadas pelos raios do sol da manhã...
De repente, uma fome totalmente diferente o invadiu, e ele se viu desejoso de algo mais substancioso do que chá. Talvez fosse ainda reflexo de sua saúde debilitada, esses sentimentos inadequados. Talvez fosse a expressão franca e aberta no rosto do menino – não, um rapaz, quase um homem. Mas Severus não podia ceder a esses sentimentos. Primeiro simplesmente porque ele não merecia. Segundo porque o rapaz jamais iria pensar nele dessa maneira. Ninguém pensaria nele dessa maneira. Severus Snape só merecia ser usado e manipulado, era o que todos faziam com ele. Esse era um padrão em sua vida que nunca havia mudado e ele não via motivo para acreditar que as coisas seriam diferentes agora.
Não importa o quando ele gostaria de uma mudança.
– Mas já de pé?
A entrada abrupta de Harry interrompeu-lhe os pensamentos sombrios. De perto, o rapaz produzia uma impressão ainda mais forte: as bochechas rosadas realçavam o verde profundo dos olhos e o preto dos cabelos.
– Não quer voltar a se deitar? – insistiu.
– Eu estou bem – mentiu.
De repente, o garoto invadiu seu espaço pessoal e colocou-lhe a mão na testa. Severus arregalou os olhos e recuou.
– O que está fazendo?
Olhos inocentes o encararam.
– Verificando se sua febre baixou. Ela esteve bem alta.
– Como disse anteriormente, estou bem. Não há mais necessidade de bancar a enfermeira.
– Nesse caso, seria bom dizer isso pessoalmente ao Prof. Dumbledore. Ele ficou preocupado com sua saúde.
– Tem falado com Dumbledore?
– Ele está na lareira todos os dias.
– Ambos enlouqueceram – A expressão de Severus ficou séria – A rede de Floo não é completamente segura. A segurança pode estar comprometida.
Harry virou-se para ele como se fosse protestar, mas por algum motivo, desistiu, assumindo uma postura mansa. Severus franziu o cenho.
– Então não faço mais – prometeu – Vou tomar um banho e começar o almoço. Está com fome?
– Eu poderia comer, sim.
– Ótimo. Não vou demorar.
Harry tomou seu banho rapidamente, mentalmente organizando as coisas que iria precisar para fazer o almoço. Quando foi à cozinha, porém, foi surpreendido ao ver Severus ocupado em preparar a refeição.
– Ei! Pensei que o almoço era meu.
– Outro dia. Pode ajudar, se quiser.
Os dois dividiram a cozinha de maneira amigável, e Harry prestou atenção em seu professor. Ele ainda estava muito pálido, mas não demonstrava sinais de fraqueza. Durante a refeição, Severus perguntou:
– Já planejou o que vai fazer de tarde?
– Terminar o trabalho de Transfiguração e a faxina no meu quarto. Amanhã vou dar um jeito no quintal. Sabe que tem poucos gnomos ali? É de se espantar, porque a casa fica fechada o ano inteiro.
– Algumas plantas mágicas não encorajam os gnomos a se aproximarem – explicou Severus – É o caso das mandrágoras.
– Oh – fez Harry – interessante. Seu quarto também precisa de uma faxina. É o próximo na minha lista.
Severus ergueu uma sobrancelha:
– Você tem feito faxina pela casa toda?
– Isso mesmo.
– Mas por quê?
– Ora, a casa está precisando. Depois, você disse que eu teria que ajudar nas tarefas de casa.
– Harry – Severus muniu-se de paciência –, eu quis dizer que você teria que arrumar seu quarto, lavar uma louça ocasionalmente e cuidar de suas roupas. Não imaginei que você fosse virar um elfo doméstico!
– Mas está tudo bem. Assim eu tenho chance de fazer algo útil com meu tempo.
– Harry, você não é obrigado a fazer nada disso. São suas férias. Deve procurar se divertir também.
– Eu sei – ele sorriu, atacando as batatas – Você cozinha bem.
– Obrigado. – Ele deixou passar uma pequena pausa antes de tocar noutro assunto – Já que mencionou maneiras de ocupar seu tempo, quero lembrá-lo de suas aulas de Legilimência. Gostaria de começar o quanto antes. Será melhor que complete todos os seus trabalhos escolares.
– Está bem. Acho que nunca me dediquei aos estudos no verão como agora.
– E isso o incomoda?
– Não, pelo contrário. Sabe, não é que não quisesse antes. É que não me deixavam.
– Fala de seus tios?
– É. Eles diziam que eu não iria me dedicar às minhas "esquisitices" na casa deles. Eu tinha que fazer tudo escondido, no meio da noite.
– Harry, por que você nunca mencionou isso?
Ele deu de ombros:
– Eu sempre soube que não viveria para sempre com eles. Uma vez até tentei fugir de lá. Eu gostaria de ter ido morar com Sirius, mas... – interrompeu-se, de cabeça baixa – O Prof. Dumbledore depois me explicou o feitiço do sangue de minha mãe que me protegia. Era para minha própria segurança que eu morava com aquela gente.
– Agora você não mora mais lá. Perdeu, portanto, a proteção do sangue de sua mãe e é por isso que o Lord das Trevas está atrás de você. Ele acha que essa é a melhor chance de pegá-lo.
– E cumprir a profecia.
– Precisamente.
Harry se espantou:
– Você sabe sobre a profecia? Dumbledore lhe disse?
– Não, o Professor Dumbledore – corrigiu severamente – não me contou.
– Já sei: foi você quem ouviu a profecia no Hog's Head! Você era o Death Eater que ouviu a Profª Trelawney dizer a profecia ao Prof. Dumbledore!
– Lamento destruir suas ilusões, mas não é esse o caso. O Lord das Trevas em pessoa mencionou a profecia a todos os seus Death Eaters. A partir dela, ele decretou a caçada aos Potter.
– E a mim – Harry parecia triste.
– Mas ele não sabe a profecia toda, Harry. Ele não sabe que você tem um poder que ele não tem.
– Nem sabe que um terá que matar o outro – A voz do rapaz era baixa – Mas até isso acontecer, quantos mais terão que morrer?
Severus reprimiu a expressão de choque ao ouvir essas palavras. A dor do menino era bem maior do que ele supunha até então. Mas ele não era chefe de Slytherin há anos sem saber lidar com a dor de um adolescente angustiado.
– Harry, estamos em guerra, e pessoas morrem em guerras. Nada disso é sua culpa.
– Mas se eu matar Vold – ele se corrigiu – Você-Sabe-Quem, isso não vai mais acontecer!
– Se você enfrentá-lo sem estar preparado, você não terá chance. É isso que quer? Suicídio?
– Não – A resposta era sincera.
– Então o melhor que tem a fazer é se manter seguro e se preparar para quando tiver que enfrentá-lo. Acima de tudo, Harry, é imprescindível manter a cabeça no lugar.
Harry olhou para Severus, o rosto diferente – como se estivesse se esforçando para acreditar em suas palavras. Era palpável a vontade do garoto em achar confiança em si mesmo. Finalmente, ele assentiu, sem muita convicção.
– Está bem.
– Muito bem, então, vamos lavar essa louça para que você possa estudar. E deixe que eu mesmo faço a faxina no quarto onde você dorme. Meus estoques estão lá e eles são muito sensíveis.
– Eu posso ajudar.
Severus viu a expectativa no rosto e aquiesceu.
– Está bem. Faremos juntos.
Harry obedeceu às instruções, dedicando-se aos estudos enquanto Severus ficou no laboratório verificando que poções tinham sofrido por terem ficado abandonadas enquanto ele estivera doente. Quando terminou, voltou à sala e viu que o tempo tinha virado: uma chuva forte ameaçava desabar a qualquer momento, típica de verão.
E Harry não estava em casa.
Severus olhou nos cômodos, mas mais uma vez foi lá fora que localizou o rapaz: no quintal, recolhendo apressadamente roupas – a maioria pretas – num varal improvisado. Harry entrou de volta na casa carregado quando os primeiros pingos de chuva caíram.
– Ufa! Bem na hora!
– Com efeito. Diga-me: por que essa roupa estava lá fora?
– Estava sol, então coloquei para secar.
– Por quê?
– Ora, porque eu lavei. Aliás, foram várias lavadas. Sangue é difícil de sair na primeira vez.
– Esqueceu-se de que é um bruxo? Há feitiços para isso.
– Eu estou acostumado com o jeito Muggle. Além disso, eu não posso usar mágica fora da escola. Já fui até processado por causa disso.
– Mas você usou mágica para tratar de mim.
Harry pareceu envergonhado e receoso em admitir:
– Usei sua varinha. Desculpe. Não tive outro jeito. Mas foi sugestão do Prof. Dumbledore!
Mais uma vez Severus muniu-se de paciência:
– Harry, eu não vou puni-lo por ter feito o que precisa ser feito. Agora deixe a roupa aí que eu passo.
– Com mágica?
– Certamente.
– Depois você me ensina?
– Sem problemas. Agora vá.
Só quando Harry terminou todos os seus deveres de verão – menos Poções – é que Severus começou as aulas de Legilimência. Eles escolheram a sala de estar para as aulas, pois era o cômodo mais espaçoso da casa.
– Seu objetivo é penetrar nas camadas da mente alheia de modo a identificar uma informação escondida ou falsidade. Contato visual é imprescindível para a correta aplicação dessa técnica.
– Entendi.
– Muito bem, vamos fazer uma primeira tentativa. Eu não vou resistir. Procure identificar as camadas da mente. Pronto? Pode começar.
– Legilimens!
Harry não tinha muita certeza de ter conseguido até ver um pensamento que não era seu: uma receita de poção usada no dia anterior. Ele viu a receita inteira, toda organizada e o livro onde ela se encontrava, e o laboratório pequeno onde ele estava trabalhando...
E de repente, ele sentiu os seus joelhos batendo em alguma coisa, as mãos também, e ele se viu ajoelhado na sala da cabana, em frente a Snape.
Pelo menos a cicatriz não estava doendo.
– Oh... – ofegou, tonto – Eu pensei que essa parte já tinha passado...
– Nada mau para uma primeira tentativa, Harry. Você conseguiu penetrar na camada mais superficial de minha mente.
– Eu vi o laboratório no porão – ele se ergueu – E a poção.
– Muito bem. Agora tente novamente. Procure identificar as diferentes camadas da mente.
Harry tentou novamente, animado pelo fato de essas lições não serem tão doloridas quanto Oclumência. Ele viu a cena do café da manhã, e viu-se com os olhos de Severus, cortando suas panquecas. Depois, sentiu uma sensação líquida no ambiente, e viu-se na aula de Poções, com Hermione e Ron, levando bronca por não ter seguido as instruções corretamente. Nova sensação líquida, e dessa vez ele estava patrulhando os corredores de Hogwarts à noite, movendo-se em silêncio pela escuridão, movimentando as capas, procurando alunos fora de seus dormitórios...
E o chão voltou a bater contra os seus joelhos. A voz de Severus o trouxe à realidade:
– Você está indo muito fundo na minha mente, Harry. Está observando tudo da minha perspectiva. Assim é muito desgastante. Procure ver a cena de fora, como um observador. Assim será mais fácil acessar as diversas camadas da minha mente.
Harry se sentiu meio envergonhado, mas assentiu. Severus sentiu uma pontada de dor de cabeça, mas preparou-se para não resistir à nova invasão.
Dessa vez, Harry localizou Severus na sala de professores, um exemplar do Profeta Diário na mão e uma xícara de chá em frente a ele. Harry se sentia mais como se estivesse num Pensieve, mas com imagens mais vívidas – cheiros, cores, texturas, tudo mais real. Ele desejou sair daquele pensamento e a sensação líquida o invadiu. Então ele viu a cena se dissolver e desta vez viu uma sala grande, mal-iluminada, figuras de capuz e vestes negras dispostas em semicírculo, todas de frente a uma outra figura, sentada numa cadeira alta.
Voldemort.
O susto de Harry foi tão grande que os contornos da cena estremeceram, e ele achou que fosse perder o controle, mas persistiu e viu Voldemort se erguer da cadeira.
– Harry Potter saiu da casa de seus tios e foi preso pela polícia Muggle. Mas alguém o soltou, provavelmente enviado por Dumbledore. Agora o garoto está sem a proteção da sua mãe de sangue ruim e será presa fácil se o pegarmos – ele se virou – Meu espião, venha até aqui.
Harry viu uma das figuras deixar o círculo e se ajoelhar diante de seu Lord.
– Você é meu espião junto a Dumbledore. Como não me avisou disso?
A voz de Severus soou firme, mas grave:
– Eu não estou em Hogwarts, milord. É época de férias.
– Ah, então achou que poderia tirar férias, Severus?
– Não, milord, mas a escola está...
– Isso não me interessa – interrompeu Voldemort – Você falhou. Eu poderia ter agarrado o menino quando ele estava preso, longe de Dumbledore e seus protetores.
– Lamento tê-lo desapontado, milord.
– Pode se redimir dando-me a localização do garoto. Ele não está com os tios.
– Sim, milord.
– Obviamente, não pense que isso o exime de sua punição. Reducto!
Severus curvou-se quando um corte profundo apareceu no seu ombro, sangue empapando-lhe as vestes, mas ele não emitiu um som além de um gemido curto e baixo. Não satisfeito, Voldemort voltou à carga:
– Crucio!
Agora sim, Severus gritou. E se contorceu. Desgostoso, Harry procurou sair dali, mas novamente o chão veio de encontro aos seus joelhos. Ele estava de quatro no chão da sala, ofegando. Ergueu os olhos e viu Severus o encarando, o rosto cheio de preocupação.
– Queria poder evitar que isso acontecesse de novo.
E Harry não sabia se estava falando sobre si mesmo ou sobre o que acabara de ver.
Severus ergueu uma sobrancelha e deu a lição por encerrada.
– Vou lhe pedir que faça o jantar. Preciso preparar algumas poções imediatamente. Pode me chamar se quiser companhia para o jantar.
– Está bem – Harry suspirou, pois se sentia estranhamente cansado.
– Você foi muito bem, Harry.
Uma estranha onda de orgulho percorreu o corpo do rapaz. Tinha sido apenas sua primeira aula e ele tinha ganhado um elogio!... De Snape, ainda por cima!
Aliás, Harry notou que estava estranhamente nervoso. Ficou preocupado que a torta de frango não crescesse o suficiente, ou o que Severus diria sobre os brócolis gratinados. Estava agitado, e sentiu-se muito estranho, sem saber se deveria consultar Severus sobre isso. Quem sabe ele estivesse passando por algum grande influxo hormonal da adolescência?
Fosse o que fosse, piorou quando ele foi chamar Severus. Seu corpo tremia quando bateu à porta do laboratório.
– Entre!
Timidamente, Harry obedeceu:
– Uh, o jantar está pronto.
– Certo, eu vou apenas colocar as poções em seus frascos.
– Posso ajudar?
– Não será necessário, obrigado.
Os dois subiram juntos, e ao chegar à cozinha, Severus elogiou:
– O cheiro está delicioso.
De novo, a onda de orgulho varreu o rapaz. Harry apressou-se a retirar a caçarola do forno, e os dois puseram-se a comer em silêncio.
– Está muito bom – comentou Severus – Você cozinha surpreendentemente bem para quem só usa o jeito Muggle, como você diz.
– Obrigado. Er, eu posso fazer uma pergunta?
– Certamente.
– Legilimência vai me dar acesso a seus pensamentos, não é?
– Pensei que isso estivesse claro.
– Sim, mas... é uma invasão. Ainda mais se você tentar resistir, aí é violência!
– Agora você entende porque esse campo de conhecimento geralmente é deixado de lado.
– Sei.
– Mas não se engane: o Lord das Trevas é muito bom nisso e não hesitará em usar contra você. Por isso as aulas de Oclumência.
– Mas eu... – Harry parecia constrangido – eu acho que isso é violar segredos...
– Não pense por um instante que o Lord das Trevas terá esses pruridos.
– São coisas íntimas. E você está me deixando ter acesso a todas elas... Confia tanto em mim assim?
Severus quase mordeu o lábio. Nada poderia estar mais longe da verdade. Confiança era algo que ele absolutamente não tinha em Harry Potter. Ele sabia o uso que suas memórias podiam ter nas mãos de um adolescente. Harry o odiava, ele sabia. Então era óbvio presumir que Harry iria usar suas memórias como fonte de muitas horas de riso com os amigos. Severus esperava por isso, e mais: sabia que não podia fazer nada quanto a isso, só agüentar as conseqüências. Mas o estrago não seria tão grande quanto podia ser. Ele tinha escondido, nas masmorras em Hogwarts, um Pensieve inteiro com as piores memórias, aquelas que ele gostaria de esquecer se pudesse.
Se apenas ele tivesse sorte para esquecer.
Mas Harry agora o observava atentamente, os olhos verdes brilhando, o rosto inteiro em expectativa. Severus procurou se mostrar o mais neutro possível.
– Harry, se você conseguir dominar a arte da Legilimência, você terá acesso a várias particularidades sobre minha vida, e certamente algumas informações que eu não gostaria de ver divulgadas. Deixarei que sua consciência decida como pretende utilizar esse conhecimento.
A resposta certamente não era o que Harry esperava. O menino empalideceu, arregalando os olhos.
– Eu... eu... eu nunca contei para ninguém o que vi naquele Pensieve, naquela vez.
– Eu sei – Para Severus, o único motivo pelo qual Harry tinha mantido sigilo a respeito das humilhações sofridas nas mãos de James e sua gangue tinha sido a necessidade de preservar a imagem de seu pai, não por consideração a seu professor de Poções.
Com uma dor no coração maior do que gostaria de admitir, Severus optou por inclinar a cabeça:
– Agradecido – cruzou os talheres, tendo perdido totalmente a fome – Aconselho-o a recolher-se cedo. Legilimência pode ser muito exigente, e não é incomum algum descontrole emocional. Gostaria de uma poção para isso?
– Não, obrigado.
Severus ergueu uma sobrancelha.
– Muito bem, então. Deixe a louça comigo. Já que você fez o jantar, nada mais justo que eu lave a louça.
Cansado, Harry não discutiu e resolver seguir a recomendação de dormir cedo, dando-se conta de que realmente estava muito mais emocional do que de costume. Custou-lhe pegar no sono, subitamente saudoso de Hogwarts e de seus amigos.
Uma sensação líquida fez seu coração se apertar. Ele sentiu medo, muito medo, e de repente um clarão de luz verde explodiu diante dele, um suor frio brotou-lhe na testa e uma voz de mulher gritou seu nome alto, gritando a plenos pulmões, do fundo da alma, como soubesse que aquela seria a última vez que falaria seu nome.
Lily Potter.
– Harry!!!
Um novo clarão de luz o levou a um lugar que de repente ficou escuro, muito pouco iluminado. Um cemitério. O suor frio só aumentou quando ele reconheceu onde estava: o cemitério onde Voldemort voltara a ter um corpo sólido. Harry olhou para o lado e viu Cedric Diggory, a pele branca como se todo o sangue tivesse sido drenado, os olhos arregalados, as mãos cadavéricas se estendendo para Harry em súplica:
– Me ajude...
Harry recuou, apavorado, tropeçou e quase foi ao chão. Cedric deu um passo em sua direção cada vez parecendo mais fantasmagórico:
– Socorro, Harry... Não deixe que ele me mate...
Harry se virou e pôs-se a correr, correr, correr, até que tropeçou e caiu...
E de novo estava escuro, numa espécie de anfiteatro circular não muito grande, um onde havia um grande arco do qual pendia uma cortina velha, com a barra em farrapos, que balouçava suavemente a uma brisa sobrenatural. Uma figura saiu de trás da cortina, e Harry sentiu o suor escorrer-lhe pelas costas ao ver quem tinha vindo de detrás do véu.
– Você não me salvou, Harry – acusou Sirius Black, em voz grave – Você deixou aquela mulher louca me matar, você me deixou morrer, Harry.
– Não!... Não!... Sirius, não!
Ele continuou gritando, mesmo quando a cena diante de si mudou radicalmente, e ele se viu girando, caindo, o ambiente a seu redor voltando-se contra si, e ele não conseguiu segurar suas emoções, desabando em choro copioso, lágrimas abundantes, soluços profundos, o corpo todo trêmulo.
– Harry! Harry!
Ele reconheceu a voz, sabia que Severus o chamava, mas tudo estava tão confuso e ele só conseguia se enroscar, curvar-se sobre si mesmo, e então ele notou que estava no chão do quarto, num cantinho, as cobertas todas espalhadas à sua volta, quase em posição fetal.
Severus continuou a chamá-lo, mas Harry não conseguia parar de chorar, mesmo já sabendo que tudo tinha sido só um pesadelo, muito, muito vívido, mas que já terminara. Foi então que aconteceu uma coisa que Harry jamais previra: dois braços o envolveram, e ele sentiu como se estivesse dentro de um corpo sólido, firme e aconchegante. Era uma sensação nova, extática.
Nunca ninguém o tinha abraçado quando ele tivera um pesadelo, nunca ninguém o fizera se sentir tão seguro e confortado em toda a sua vida. Bom, ele se lembrou de um abraço de Mrs. Weasley, mas não, dessa vez parecia ser diferente. Ele se sentia seguro, aceito. Demorou para Harry conseguir parar de chorar, sempre agarrado a Severus, sequioso do contato, sedento pelo toque.
Sem notar, aos poucos, foi parando de chorar e deixou-se ser levado para a cama, onde (ainda agarrado a Severus) ainda soluçou um pouco, até conseguir se compor o suficiente para tentar dizer, meio choramingando:
– Desculpe... Eu...
Foi interrompido:
– Abra a boca.
Sem hesitar, Harry obedeceu e sentiu a poção escorregar garganta abaixo, de gosto amargo e consistência grossa. Ele tentou de novo, enxugando as lágrimas no pijama:
– Eu... Não queria... Pesadelo...
– Deite-se – Severus trazia um tom menos áspero na voz – A poção não vai demorar a agir.
Harry obedeceu, mas protestou quando Severus ameaçou se levantar:
– Não! – ele enrubesceu quando seu professor o olhou, intrigado – Por favor... não vá.
Os olhos de Severus praticamente emitiram um brilho totalmente diferente quando ele encarou Harry e garantiu:
– Não se preocupe. Não vou a lugar nenhum.
– Promete? – ele não pôde evitar se sentir como se tivesse cinco anos.
– É uma promessa.
Harry virou-se de lado, colocou a cabeça no travesseiro e procurou não se preocupar. O quarto voltou a ter silêncio, quebrado ocasionalmente por um soluço esparso varrendo o corpo do garoto.
Severus se viu olhando para a figura na cama, um sentimento parecido com identidade a invadir-lhe o corpo. Sim, ele sabia o que eram pesadelos desse tipo. Também sabia exatamente como era ter sua infância arrancada de si do modo mais cruel possível, sem ter ninguém que o consolasse, que o guiasse. Severus sabia exatamente o que Harry Potter estava passando, e sentia que seu coração sangrava um pouco pelo menino.
Examinou seus sentimentos e teve que admitir que essa poderia ser a origem dos sentimentos "impróprios" que tinha em relação ao rapaz. Ainda assim, não podia quebrar a confiança de Harry dessa maneira. O garoto estava desesperado por uma figura adulta, por orientação e atenção, e Severus não podia trair essa confiança com seus sentimentos inadequados. Inadequados e fantasiosos, completou. Porque Harry só se aproximaria dele por pura carência, pela necessidade de afeição, a sede de carinho que ele tão flagrantemente exibira num simples episódio emocional. Isso seria se aproveitar do rapaz, e Severus sabia que ceder a essa tentação era um convite ao desastre.
Não, Severus sabia hoje que todos estiveram certos a seu respeito: seu pai, James Potter, Sirius Black, o Lord das Trevas... Ele não valia grande coisa e ninguém o iria querer por perto, porque ele não merecia. Sujo, estragado. Como ele ousava pensar em manchar e corromper um garoto que parecia ser inocente, mesmo que já trouxesse sua própria escuridão?
A respiração de Harry tornou-se mais profunda, e ele teve certeza de que o jovem tinha conseguido adormecer. A poção garantiria que ele estaria livre de pesadelos. Não havia necessidade alguma de velar o sono de Harry.
Severus só retornou a seu quarto quando o sol já estava alto.
Harry acordou tarde no dia seguinte, profundamente envergonhado. Tinha agido como um bebê chorão, e não havia nada que justificasse isso.
Tomou banho e saiu do banheiro disposto a pedir milhões de desculpas a Severus. Só que ele estava sozinho em casa.
Severus não estava nem laboratório e Harry ficou apreensivo. Teria acontecido algo? Será que ele tinha sido chamado? Por quem – Voldemort ou Dumbledore?
Suas perguntas foram respondidas pouco depois, quando ele ouviu um estalido na cozinha e correu para ver. Enfiado em trajes leves de verão, Severus trazia vários pacotes de compras encolhidos e ergueu uma sobrancelha ao ver Harry:
– Bom-dia.
– Bom-dia. Vejo que foi às compras.
Severus começou a guardar os itens pela cozinha:
– Calculei que você fosse descansar até mais tarde, e aproveitei para re-estocar as prateleiras, que estavam ficando um pouco baixas. Já comeu?
– Não estou com fome.
– Aqui – pegou uma maçã de uma sacola e passou-a a Harry – Coma pelo menos isso.
Ele pegou a fruta e de repente se sentiu embaraçado, olhando para o chão:
– Olhe, eu... queria pedir desculpas. Você sabe, por ontem à noite.
Severus parou de guardar mantimentos e olhou para ele, com uma expressão séria:
– Harry, sua reação não é incomum entre praticantes de Legilimência. No seu caso, a reação apenas foi mais intensa, só isso. Para evitar repetição de cenas como a da noite passada, eu mantenho a recomendação de tomar uma poção para equilibrar suas emoções.
– Eu vou tomar – prometeu Harry – Aprendi minha lição.
– Preste atenção, Harry – Severus abandonou totalmente as compras e o encarou – Você pode se sentir vulnerável e abrir sua mente para uma invasão externa. Especialmente vinda do Lord das Trevas. Se isso acontecer, eu quero que me avise imediatamente. Imediatamente mesmo. Isso é de extrema importância. Se precisar me acordar ou me interromper no laboratório, não hesite em fazê-lo. E procure praticar seus exercícios de Oclumência antes de dormir só para prevenir.
– Está bem.
– Então vamos fazer diferente. Desta vez nós dois vamos preparar as poções de que você precisa para restabelecer o equilíbrio emocional.
– Vai me deixar fazer minhas próprias poções?
– Você vai tomar cuidado com o laboratório e meus estoques. Pense nisso como crédito extra.
Fazer poções com Severus podia ser uma atividade bem silenciosa. Os únicos ruídos do pequeno laboratório eram o borbulhar do caldeirão e o suave farfalhar das vestes bruxas que Severus usava. Era relaxante.
Harry ficou aliviado ao perceber que Severus aparentemente não tinha mudado de opinião a seu respeito apesar do lamentável incidente da noite passado. A última coisa que Harry queria era despertar pena nas pessoas, e ele não vira um pingo disso no rosto do Mestre de Poções. Mas também não vira o que ele geralmente esperava encontrar em Severus Snape: ódio, ressentimento e desprezo. Não, desta vez, ele só vira genuína preocupação.
A verdade é que essas semanas tinham feito Harry pensar a respeito de seu professor sob uma luz totalmente diferente. Há muito sabia que Severus era da Ordem da Fênix e que salvara sua vida muitas vezes. Mas ele nunca tinha se dado conta do que isso realmente significara: Severus tinha se arriscado por Harry, tinha bancado o advogado para soltá-lo da cadeira, tinha lhe dado permissão para chamá-lo pelo primeiro nome, tinha aceitado passar o verão com Harry, ensinando-o, cuidando dele, protegendo-o. Isso era completamente novo e inesperado para o rapaz.
A convivência o tinha feito reparar em algumas coisas a respeito de Severus. Harry tinha se surpreendido com a atitude dele na noite anterior, mas era mais que isso. Harry jamais imaginou que, de todas as pessoas, Severus pudesse fazê-lo sentir-se tão protegido e seguro. A sensação toda ia além disso: Harry tinha se sentindo como se pertencesse àqueles braços – era como se ele, que nunca conhecera um lar de verdade, estivesse voltando para sua verdadeira casa, que era Severus.
E tinha mais: Harry também notou as mudanças que ocorreram em Severus agora que ele estava mais relaxado. Ele continuava ácido, claro, mas agora suas tiradas ferinas eram mais divertidas e requintadas. Ele estava tão relaxado que as linhas do rosto pareciam menos profundas, a pele menos amarelada. Tentando disfarçar para não ser inconveniente, Harry olhava o Mestre trabalhando quando achava que ele não estava reparando. Foi assim que também reparou em outros traços dele: os dedos longos e elegantes que se movimentavam com precisão entre os ingredientes, manipulando-os com graça e maestria. Os olhos também eram profundos e muito espertos, típicos de quem guarda profundos segredos.
Foi nesse momento, ao observar Severus profundamente, que Harry lamentou ter deixado uma impressão precipitada de sua parte quando tinha apenas 11 de idade anos ter obscurecido seu julgamento sobre esse homem fascinante. Sua curiosidade havia sido atiçada e ele queria descobrir mais sobre Severus.
E o que era melhor para isso do que as aulas de Legilimência?
– Muito bem, Harry – disse Severus depois que tinham almoçado e guardado as poções recém-cozidas – Vamos começar com uma pequena resistência. Quero que procure penetrar na minha mente. Descubra se estou escondendo alguma coisa.
Harry apontou sua varinha e se concentrou:
– Legilimens!
Ele se viu junto a um homem muito parecido com Severus, embora mais baixo e um pouco mais atarracado. Ele gritava com uma mulher:
– Sua vagabunda! Eu sei que você foi dar por aí! Espero que tenha pelo menos conseguido um bom dinheiro!
Uma criança chorava, agarrada às pernas na mãe. Era óbvio que a mulher tentava protegê-la do homem, mas ela também estava apavorada:
– Sevinus, não! Eu só fui pedir um pouco de leite para Severus!
– Agora está me acusando de não conseguir manter a família?
– Não, não, eu...
O homem se enfureceu:
– Faça-o parar de chorar!
Harry olhou a criança. Não deveria ter mais do que três anos, mas era muito menor do que qualquer criança dessa idade. Os cabelos eram bem pretos, o nariz pontudo, as roupinhas surradas. A mãe agachou-se e o enlaçou nos braços:
– Por favor, Severus, não chore. Mamãe está aqui.
– Não pense que ela vai te proteger, garoto! Pare com a berraria!
O homem arrancou o pequeno Severus dos braços da mãe, e ambos gritaram:
– Não!!
– Vem cá, moleque! Pare de ser manhoso!
A pequena criatura foi sacudida violentamente como um saquinho de batatas, a mãe tentando deter:
– Pare, Sevinus! Pare!
– Seja um homem! – O pai gritava, sua voz trovejando – Pare com essa berraria!
O tapa que ele aplicou no menino fez a criança voar e seu corpinho frágil bateu com toda força na parede, bem de frente. Apavorado, Harry viu o pequeno cair no chão e lá ficar, imóvel. A mãe soltou um grito e correu a agachar-se ao lado do corpinho, virando-o com cuidado. Sangue saía do narizinho, agora quebrado.
– Não! – A mulher urrava, desesperada – Você o matou!
De repente, a cena se desfez e Harry simplesmente cambaleou, cercado pelo ambiente líquido que o levou a uma outra cena. Ele reconheceu Sevinus, agora mais velho, de pé, confrontando um Severus adolescente. Ambos pareciam prestes a se engalfinhar de tanto ódio.
– O que você fez, seu inútil?! Deixou-me mal junto a meu cliente!
– Eu completei a maioridade, pai. Estou indo embora.
– Como ousa?
Severus puxou a varinha, ameaçando:
– Não ouse tentar me impedir. Estou livre de seus negócios.
– Você me pertence – rosnou Sevinus – É o que diz a lei.
– Não, eu agora já tenho idade. Não tem mais poder algum sobre mim.
– Você sabe que isso não é verdade. É só as circunstâncias certas acontecerem, e elas vão acontecer, e aí você...
– Isso jamais vai acontecer – A voz de Severus era mais fria do que Harry se lembrava. – Adeus, pai. Tenha uma vida curta.
E virou as costas. Sevinus ainda vociferou:
– Você é igual à vagabunda de sua mãe! Nunca servirá para coisa alguma! Ouviu, Severus? Nunca vai ser nada na vida!
Harry sentiu que era hora da cena mudar, pois ela desaparecia, mas outra não vinha substituí-la. Parecia haver uma barreira impedindo-o de acessar o próximo pensamento. Ele precisou se concentrar, e depois de alguns segundos de impasse, ele viu.
Era um dormitório de Hogwarts, um que ele não conhecia. Ele reconheceu as cores prata e verde de Slytherin, mesmo que o quarto estivesse escuro e fosse de noite. Mas a penumbra não impediu que ele notasse um movimento numa das camas.
Harry se aproximou cuidadosamente, e arregalou os olhos com o que viu. Dois corpos jovens, nus, estavam entrelaçados na cama, os ruídos suaves ecoando pelo quarto silencioso. Havia os sons delicados de pele nua roçando em pele nua, gemidos abafados, e Harry chegou mais perto para ver se reconhecia os ocupantes do quarto.
Um deles era Severus, claro. O rosto mais jovem, aliás, parecendo muito jovem, mas mesmo assim o corpo tinha cicatrizes e marcas. Ele estava de bruços, uma expressão de arrebatamento que era o retrato da sedução. Deitado por cima dele, estava seu amante, engajado num movimento de vai-vem cheio de vigor, puxando o corpo de Severus para junto de si. Ele não tinha o rosto voltado para Harry, mas não havia dúvida quanto à sua identidade: o cabelo longo e louro quase branco era a marca registrada de um Malfoy. No caso, Malfoy Sênior, claro.
Por um instante, Harry ficou tão espantado com o que via que apenas ficou ali, parado, sem ação. Claro que ele sabia o que acontecia numa relação homossexual, mas ele nunca tinha visto, de verdade, como era com dois homens juntos. Ele sequer tinha idéia de que Severus preferisse a companhia de seu próprio sexo. Era muita informação para se processar ao mesmo tempo.
Nunca Harry tinha tido a sensação tão forte de voyeurismo. Ele viu Lucius agarrar os quadris de Severus e aumentar a velocidade das estocadas, grunhindo com selvageria. A cópula se tornou frenética, e Harry não podia evitar as reações em seu próprio corpo adolescente. De repente, ele se imaginou ali naquela cama, o corpo coberto de suor, os músculos se movimentando, a pele toda formigando, seus nervos em alerta máximo...
Ele viu Lucius jogar a cabeça para trás, o cabelo voando, e uivar desarticuladamente, antes de desabar, exausto, nas costas de Severus. Fascinado, Harry esperou o momento em que veria o rosto de Severus naquela expressão de êxtase, mas Lucius simplesmente virou de lado, separando-se do parceiro ainda insatisfeito. Foi então que Harry sentiu um puxão mental forte, uma espécie de empurrão que de repente o transportou para longe da cena.
O novo ambiente se tornou novamente nítido quando Harry se viu em meio a um grupo de figuras com vestes negras, e todas pareciam agitadas e cheias de animação. Harry localizou o jovem Severus, o cabelo bem penteado, uma expressão de expectativa no rosto. A seu lado, Lucius, com o cabelo solto penteado para trás, inclinou-se para ele:
– Não tem com o que se preocupar. Ele vai aceitá-lo, tenho certeza. Eu falei de você para ele e ele ficou impressionado.
Severus assentiu, e Harry pôde notar que ele estava mesmo nervoso. Alguns minutos mais tarde, a agitação cresceu: alguém novo chegava ao grupo.
Harry viu o homem alto, de cabelos pretos e olhos amendoados castanhos extremamente penetrantes. Seu rosto era agradável, franco, e era cumprimentado efusivamente.
Lord Voldemort.
Aquela era a primeira encarnação de Voldemort, seu corpo original, não aquele restaurado por um feitiço no cemitério durante o quarto ano de Harry. Para surpresa do menino Gryffindor, Voldemort inspirava vitalidade e confiança. Ele tinha carisma, e sua juventude dava ânimo a seus seguidores ali reunidos.
Lucius se adiantou:
– Lord Voldemort, gostaria de lhe apresentar Severus Snape.
Voldemort virou-se para Severus e olhou-o longamente. Polidamente, Severus inclinou a cabeça, tentando esconder seu nervosismo.
– Então esse é o jovem do qual me falou, Lucius?
– Sim, milord. Creio que será uma excelente aquisição para a causa.
– Isso é verdade, Mr. Snape? Lucius mencionou que está prestes a tornar-se um Mestre em Poções.
– Exato, senhor – disse Severus.
– O mais jovem e o mais brilhante de toda Grã-Bretanha – ajudou Lucius – Ele vai apresentar à banca uma criação sua capaz de aprimorar os efeitos do Veritaserum.
Voldemort ergueu uma sobrancelha:
– Ora, ora. Parece que vai valer a pena manter um olho no senhor, Mr. Snape. Sua família... tem o sangue puro, não é?
– Certamente, senhor – ele empalideceu.
– A causa pode usar um jovem valoroso e de fina estirpe como o senhor, Mr. Snape. Teremos em breve uma cerimônia de iniciação para novos membros, e sua associação será muito bem-vinda.
Severus abriu um sorriso como Harry jamais vira: aberto, transparente, franco e genuíno. Era palpável o orgulho que ele sentia diante dos elogios e da aceitação de Voldemort. Naquele instante, Harry entendeu o fascínio e a atração de Voldemort no jovem Severus. Era uma sensação poderosa, a aceitação, e Harry estava quase contagiado por ela. Quis trocar de pensamento e novamente sentiu alguma resistência, desta vez bem maior. Ele teve que se concentrar, e muito, e literalmente perfurar uma barreira semi-sólida para de repente se ver diante de outra cena.
Lucius estava diante de Severus. Os dois estavam sentados à mesa de um restaurante elegante, provavelmente Muggle. O ambiente era requintado e exclusivo. Lucius parecia estar em casa. Severus, porém, estava com uma de suas características carrancas, reconheceu Harry.
– Eu vi o anúncio – A voz dele era baixa e dura.
– Como assim?
Com os dentes cerrados, Severus respondeu:
– O anúncio de seu casamento com Narcissa Black. Achou que ia conseguir esconder isso de mim?
Lucius empalideceu e manteve a voz baixa:
– O que quer dizer? Você sabe que estou fazendo a corte a ela. Esse casamento está arranjado há décadas, literalmente.
– Mas você vai se casar com ela – A voz de Severus abaixou ainda mais, e ele estava com o rosto branco de fúria.
– É claro que vou, seu idiota! – Lucius também sibilava entre os dentes, agitado – Não pode ter sequer passado por sua cabeça a hipótese de que eu algum dia reconheceria em público ter alguma coisa com você. Não tem cabimento, Severus, e você sabe disso.
– Pode me dizer por quê?
– Eu realmente preciso? Eu sou um Malfoy, pelo amor de Merlin, e você é um... Ora, não preciso relacionar o seu passado em público – Malfoy Sênior olhou para Severus com uma expressão de profundo desgosto, depois tentou se emendar – Mas não posso negar que você tem qualidades pessoais e habilidades úteis à nossa causa, por isso eu mantenho a nossa... associação.
Ninguém diria que isso era possível, mas Severus ficou ainda mais branco. O rosto jovem simplesmente perdeu toda a cor, ele cerrou os punhos com força por baixo da mesa, e Harry achou que ele fosse desmaiar ali mesmo.
Sempre mantendo a voz baixa e arrastada, os olhos cinza adquirindo tons cruéis, Lucius continuou:
– Você sabe o que é, e você sempre será encarado dessa forma perante a sociedade bruxa de alto nível. Um Malfoy não pode se dar ao luxo de se ver intimamente associado a um... indivíduo como você. Não me venha com essa agora, Severus. Desde Hogwarts eu o acolhi, eu o introduzi em nosso círculo devido a seus vastos conhecimentos nas artes das trevas. Então não dê uma de ingrato agora porque...
Interrompeu-se ao som de uma risadinha. Lucius arregalou os olhos, espantado. Harry também se espantou ao ver Severus rindo, agora mais alto.
– De que porra você está rindo? – Lucius parecia furioso.
Tentando conter o riso, Severus respondeu:
– A sua cara, meu caro Lucius. Você deveria ver: é simplesmente impagável. O olhar de genuíno pavor que eu fosse fazer um escândalo... Ah, fazia tempo que eu não me divertia tanto.
Lucius o encarou, os olhos agora se apertando e adquirindo um ar frio:
– Oh. Então está tentando desenvolver um senso de humor, Severus?
– É claro. Não achou que eu falava sério, achou? Não depois de todos esses anos que nos conhecemos, meu caro.
– Devo admitir que foi muito fora de seu caráter agir repentinamente como um amante indignado e traído.
– Ainda mais por causa de uma vadia como uma das irmãs Black. Ora, faça-me o favor.
Harry olhou com atenção o jovem Severus e percebeu nitidamente pela primeira vez as vantagens da Legilimência. Por mais que os atos, gestos e palavras e Severus indicassem que ele se divertia com a situação, Harry percebeu com clareza o esforço do homem para esconder seus verdadeiros sentimentos de humilhação e mágoa. Pequenos detalhes como o riso forçado, a dor incomensurável nos olhos, a agonia nas mãos ainda cerradas...
E foi aí que mais uma vez Harry se sentiu empurrado para longe daquele pensamento. Ele resistiu e se segurou naquele lugar, ouvindo Lucius dizer:
– Um conselho de um velho companheiro, Severus: senso de humor não se adquire de uma hora para outra. Você nunca teve um antes e não sei se essa é a melhor hora para começar a desenvolver um.
Voltando a seu sorrisinho irônico, Severus assentiu:
– Talvez fosse tenha razão. Por que não fazemos o pedido? – pegou o menu – Para celebrar seu excelente casamento com a nobre família Black!
Lucius ergueu uma sobrancelha e abriu a boca para responder. Mas Harry jamais conseguiu saber qual foi a resposta porque nesse instante ele sentiu o empurrão com ainda mais força, e de repente ele foi jogado para fora da cena. E tudo pareceu ficar preto.
Quando Harry se deu conta de si novamente, estava no chão da sala da cabana de Severus, deitado de bruços, a bochecha contra o chão frio e duro. Ergueu a cabeça voltada para o lado da janela e notou que era noite lá fora. Virou a cabeça e viu Severus, na sua versão atual, encarando-o com expectativa.
– Harry?
Ofegante, Harry procurou se erguer. As pernas estavam cambaleantes, mal o sustentavam. Sentiu o estômago embrulhar, a cabeça doer.
– Não me sinto bem.
– Coma um chocolate – passou uma barrinha a ele – Você se excedeu. Eu tentei parar, mas você resistiu.
– Eu não consegui... resistir na última vez. Não queria sair.
– Tive que expulsá-lo da minha mente – Severus explicou – Estava começando a prejudicar nós dois.
Só então Harry notou que o rosto de Severus denunciava sinais de seu abatimento: algumas linhas do rosto estavam profundas, os olhos perderam um pouco do brilho costumeiro, a pele estava mais pálida do que lhe era normal.
– Desculpe. Eu... fiquei distraído com o que vi.
– Bom, é compreensível, mas o exercício era que você procurasse descobrir se eu estava tentando ocultar pensamentos de você. Conseguiu?
– Acho que sim. Eu consegui ver barreiras, ou algo parecido com isso.
– Muito bem, Harry. Acho que por hoje já chega. Coma o resto desse chocolate. Gostaria de descansar um pouco antes do jantar?
– Não, eu... – ele hesitou – Posso fazer uma pergunta?
– Se isso não prejudicar suas lições. Se você quiser saber algum segredo meu, terá que descobrir em minha mente.
– Não, eu só queria saber sobre bruxos gays.
Severus apertou os lábios e começou a dizer:
– Certamente você já freqüentou o módulo de Madame Pomfrey sobre educação sexual no sexto ano. De qualquer forma, peço perdão se minhas... preferências o chocaram.
– Não é isso, eu tenho dúvidas sobre...
Desconfortável, Severus o interrompeu:
– Acho que você vai se sentir mais à vontade se conversar com seus amigos ou quem sabe...
Harry o interrompeu, dizendo de repente:
– Eu também sou – Severus o encarou, olhos arregalados – Gay, quero dizer.
Houve uma pausa. Severus ficou desconfiado.
– Isso não apareceu nos seus exercícios de Oclumência. Na verdade, eu o vi com garotas.
– Eu não sabia naquela época.
– Então é um desenvolvimento recente.
– Pois é. Eu não contei para ninguém.
– Harry, eu não sei se sou a pessoa mais indicada para lhe falar sobre isso.
– Você é o único que eu conheço. Eu não sei a quem recorrer. Tenho receio de que... bem, de que...
– Você acha que seus amigos não vão aceitar?
– É – Harry pareceu aliviado por ser entendido – Eu não sei como os bruxos encaram isso.
Severus suspirou mentalmente. Aquilo não era exatamente uma situação nova para ele. Todos os anos, um ou dois Slytherins o vinham procurar com dúvidas semelhantes. Mas era uma situação diferente para os membros de sua casa: esperava-se que todo bruxo de sangue puro se casasse com uma bruxa (também de sangue puro, claro) e logo tivessem herdeiros. Gays eram mais relegados ao ostracismo entre Slytherins do que nas outras casas. E nenhum de seus alunos jamais descobriu sua opção sexual, claro. Ele explicou tudo isso a Harry, acrescentando:
– Até onde eu sei, a discriminação contra gays não é menor do que no mundo Muggle, mas eu posso estar enganado. Você já sabe, claro, que ao contrário dos Muggles, bruxos gays podem se casar e ter filhos.
Harry sentiu seu coração se acelerar de surpresa:
– Não! Não eu não sabia. Isso é verdade?
– Não fazia muito sentido proibir o casamento quando os elos mágicos podem ser sacramentados entre os interessados.
– Ter filhos também? Um bruxo pode engravidar?
Severus franziu o cenho:
– Madame Pomfrey não explicou sobre isso?
– Ela não falou muito sobre práticas entre pessoas do mesmo sexo porque ninguém perguntou.
Severus deu um sorrisinho:
– É difícil acreditar que Miss Granger tenha mantido a boca fechada para variar – Harry também sorriu – Mas não deve pensar que a gravidez de um bruxo é igual à de uma bruxa.
– Por que não?
– Em primeiro lugar, porque o corpo masculino não tem os órgãos necessários para gerar e manter vida. Isso tem que ser feito com mágica. Há vários caminhos: mudar o sexo do parceiro, transformá-lo num hermafrodita, ou simplesmente criar um útero mágico. Tudo isso é temporário, claro.
– Parece complicado.
– Não só complicado como também arriscado. Uma gravidez mágica nunca pode ser interrompida e ela exige muito do corpo do hospedeiro. Pode ocorrer prejuízo da magia, mas também pode acontecer do bruxo ver seus poderes aumentados. Não é raro que a gravidez mate a criança e o hospedeiro.
– Por isso é tão raro? Por causa do risco?
– Precisamente.
– Eu ouvi falar da restrição à gravidez entre menores de idade. Também se aplica a bruxos?
Severus corrigiu:
– Não, Harry, você está errado. A gravidez é restrita a pessoas casadas, não importa a sua idade.
– Mas tem uma coisa de os pais serem os responsáveis e poderem fazer com a filha o que quiserem. Isso é folclore não é?
– Isso não é usado há muito tempo. Hoje em dia dificilmente alguém engravida fora do casamento.
– Mas e se eu engravidar, por exemplo?
– Você pretende engravidar num futuro próximo?
– Não tão cedo, mas um dia...
– Case-se primeiro e não haverá problema.
– Mas e se eu quiser ser pai solteiro?
– Harry, isso não existe na sociedade bruxa. Você pode ver pais viúvos, mas nunca solteiros.
– O que acontece com uma grávida solteira?
– Hoje em dia? No máximo, ela é entregue aos pais. Nos dias antigos, era geralmente deserdada ou vendida para a prostituição, depois de abortar o filho bastardo.
– Que horror! Isso é bárbaro!
– Como eu disse, não é usado há muito tempo. A sociedade bruxa evoluiu na área dos costumes.
Eles ficaram em silêncio. Harry disse, com sinceridade:
– Obrigado, Severus. Ninguém nunca me explicou essas coisas.
– Coma outro chocolate antes de me ajudar no jantar. Estou com vontade de preparar uma Shepard's Pie para nós. Você gosta?
– Adoro.
– Então não demore.
o 0 o
Nos dias seguintes, as aulas de Legilimência avançaram exponencialmente. Harry viu muitas cenas de Severus com o Mestre de Poções que o treinou, um velho homenzinho amargo e mal-humorado que humilhava terrivelmente seu aprendiz em toda ocasião possível. Contudo, a persistência e as habilidades de Severus o fizeram obter a mais alta pontuação entre todos os que fizeram o teste. Foi uma das raras ocasiões em que Harry viu Severus orgulhoso de si mesmo.
Outra ocasião, infelizmente, foi quanto ele foi aceito como Death Eater. A cerimônia de iniciação teve um total de 15 novos membros. Harry assistiu a toda a solenidade, em que os iniciantes permaneciam encapuzados, como era de praxe entre os membros da ordem, que não sabiam quem era quem no círculo. Todos receberam a Marca Negra e se ajoelharam aos pés de Voldemort.
– Vocês não se ajoelharão diante de mais ninguém, não beijarão outra barra que não a de minha veste. Eu não deixarei que sejam humilhados, que inferiores estejam acima de vocês. Todos os que forem leais a mim conhecerão apenas respeito e aceitação.
De repente, Harry encontrou uma barreira mental. Ele resistiu, lutou contra ela e ela enfraqueceu. Então ele se viu dentro de um laboratório de Poções, um bem maior do que o da cabana.
Severus trabalhava sozinho, absorto em seus ingredientes e caldeirões. Ele não reparou na entrada de Voldemort.
– Interrompo-o, Severus?
– Milord! – ele se pôs de joelhos – Não, meu senhor. Este estágio da poção requer fogo baixo e constante.
– Pode se erguer, meu servo. Falta muito?
– É uma poção delicada e experimental. Ainda precisa ser testada. É arriscado.
– Deixe que eu me preocupe com os riscos. Se você realmente conseguir evitar minha morte, Severus, eu o recompensarei além de sua imaginação.
– Servir é minha obrigação, milord.
– Modesto e talentoso. Aliás, pelo que pude ver, é um homem de vários talentos – Severus sentiu seus músculos se enrijecerem de tensão, instantaneamente sabendo a que ele se referia – Não se preocupe, ninguém me contou, se é isso que está pensando. Já deveria saber que não pode esconder nada de Lord Voldemort.
Severus baixou a cabeça, mortificado.
– Eu nem tentei, milord.
– Claro que não, Severus. Mas eu quero que me mostre esses talentos. Eles podem ser úteis, se forem realmente tão bons quanto eu ouvi falar.
A cabeça de Severus se ergueu, os olhos arregalados, o rosto branco de pavor.
– E então? – Voldemort se impacientou – Está pensando em me desobedecer?
Trêmulo, Severus respondeu apenas:
– Não, milord. Temo apenas não corresponder a suas expectativas.
– Tire isso de sua mente. Não haverá punição por causa de sua performance.
– Obrigado, milord.
– Não se acanhe. Pode começar.
Severus aproximou-se ainda mais de seu lord. Lentamente, ele se deixou cair de joelhos em frente a Voldemort e esticou as mãos...
De repente uma força irresistível jogou Harry para fora da cena com uma violência que ele jamais experimentara antes. Ele logo se viu de quatro na sala, a cabeça explodindo de dor – parecia que as aulas de Oclumência (as aulas ruins, claro) estavam de volta.
Quando Harry conseguiu se localizar no tempo e espaço, viu que Severus não estava em melhor estado. Ajoelhado no chão, agarrando os braços, encolhido, tremendo, olhos fechados. Harry chegou perto dele com cuidado:
– Severus?
Não houve resposta. Num impulso, Harry simplesmente o abraçou, apertando-o forte, aquecendo-o e confortando-o.
– Shh. Tudo bem agora.
Os dois ficaram assim abraçados durante muito tempo, até eventualmente os tremores de Severus diminuírem e os músculos relaxarem. Harry notou que ele não derramou uma única lágrima. Finalmente, ele se mexeu, e Harry indagou, encarando-o:
– Melhor agora?
Severus finalmente ergueu o olhar para ele e Harry não pôde evitar um choque. Os olhos traziam uma dor tão profunda que o coração de Harry imediatamente se enterneceu. Era quase como se ele pudesse sentir toda a dor dentro daquele homem, e Harry irracionalmente desejou ter um modo de transferir essa dor para si próprio, só para que Severus não mais a sentisse.
– Sim... – foi a resposta.
Uma mentira, e Harry sabia.
– Você me expulsou de sua mente.
– Eu quis... evitar que você visse – A voz parecia ir ficando mais firme – Quis proteger o pensamento.
– Eu não consegui resistir. Você venceu.
– Quer tentar de novo? Dessa vez talvez você consiga quebrar a barreira.
Harry protestou:
– Mas isso é violar sua mente!
Amargo, Severus se ergueu, dizendo:
– Isso é Legilimência. Para isso estamos aqui.
– Não quero que sofra desse jeito.
– O importante é você aprender, Harry. Muito depende disso, você sabe.
Mais uma vez Harry se deu conta do sacrifício que continuamente Severus fazia pelo lado do Bem. Para não mencionar os riscos de se expor a Voldemort toda vez que ele era convocado.
Ele não queria mais ver Severus sofrendo. De repente ele era uma pessoa importante na sua vida.
– Não tem um jeito diferente de fazer isso? Eu realmente falei sério. Não quero que você sofra desse jeito.
Severus arregalou os olhos, surpreso. Estava surpreso porque ele acreditava na sinceridade de Harry. Como o menino que era o flagelo de sua existência poderia ter esse tipo de sentimentos a seu respeito?
Logo se refez, dizendo num rasgo de raiva:
– Não preciso de sua pena, Potter.
– Não é pena – defendeu-se Harry – Estou querendo preservar sua dignidade, só isso.
Severus quase se riu. E desde quando alguém como ele tinha dignidade?
– Seu gesto é nobre, como o de um Gryffindor típico. Pense em ser um pouco mais Slytherin. Afinal, o Chapéu quase o colocou lá. – As palavras despertaram em Harry algum tipo de plano e ele não respondeu – Vamos continuar.
Houve mais duas horas de Legilimência, mas Harry ainda não conseguia ultrapassar as barreiras mentais de Severus. Invariavelmente, ele ia ao chão, a cabeça doendo tanto que parecia se partir em duas.
– Você precisa ter vontade, Potter! Tem que querer quebrar minha barreira!
– Eu sou Harry. – disse ele – Por favor, me chame de Harry.
Severus suspirou.
– Está bem – Harry. Mas por favor, tente com mais vontade. Não se preocupe com minha dignidade, meu ego ou meus frágeis sentimentos. Imagine que você está diante do Lord das Trevas e que ele está ameaçando seus amigos. Isso não está muito longe da verdade, dado o que aconteceu com Black.
Harry inspirou profundamente, procurando concentrar energia e assentiu. Quando Severus assentiu de volta, ele ergueu a varinha:
– Legilimens!
Imediatamente a barreira apareceu, e Harry a combateu por pouco tempo para entrar numa cena que ele já sabia que acontecera: o episódio do Shrieking Shack. Sirius – jovem, bonito, antes de Azkaban – atraíra Severus para seguir Lupin e James Potter o interceptara, salvando sua vida da morte certa nas garras de um lobisomem.
Harry acompanhou toda a frustração de Severus ao ver que seus agressores tinham escapado apenas com uma advertência e detenções, depois de terem ameaçado sua vida. Sentiu-se injustiçado e deu o troco em seguida.
Nova barreira mental se ergueu diante de Harry, uma semi-sólida. Harry ficou intrigado: não era segredo que seu pai e os amigos judiavam de Severus, então por que a barreira? Ele se concentrou e logo a barreira se desfez.
Severus andava apressadamente num dos corredores de Hogwarts, o vento frio balançando suas vestes. De repente, ao dobrar o corredor, foi agarrado, arrastado e jogado dentro de uma sala de aula vazia antes que pudesse reagir. Uma vez no chão, cercado por três dos Marauders, ele puxou sua varinha, mas Sirius o impediu:
– Expelliarmus!
A varinha voou para o lado. Ainda no chão, ele olhou seus captores.
– Longe de seus amigos Slytherins, não é, Snivellus? – James o rodeou, varinha a postos – Ninguém pode salvá-lo agora. Nem Evans vai ajudá-lo agora.
Os olhos de Severus viajavam rapidamente entre a varinha e os três Gryffindors que o rodeavam. Num pulo, ele quase agarrou a varinha, errando por milímetros. Sirius não perdeu tempo:
– Immobulus!
Imediatamente Severus ficou imóvel no chão. Os olhos destilavam ódio contra os seus atormentadores.
– Você é uma coisinha teimosa, não é, Snivellus? Sempre querendo nos prejudicar.
– Acho que ele nunca vai aprender, Prongs. Ele tem idéias muito más. Acho que precisamos levantar o nível de suas idéias.
Com um toque da varinha de Sirius, Severus foi erguido no ar a quase um metro e meio, suspenso como uma marionete por cordas invisíveis, ainda imóvel, sempre tentando combater o feitiço. Peter Pettigrew riu-se, encolhendo-se todo como um roedor.
– Para mim, ele não tem jeito, Padfoot. Ainda mais agora que ficou claro que ele é uma bicha nojenta.
– É, seu viadinho, você achou que ninguém iria descobrir? Imagino que os membros de sua casa adoraram saber disso. Agora você virou a favorita de Slytherin. Aposto como você deixa qualquer um enfiar em você e adora, né, sua vadia?
– Não sei se ele é a alegria do batalhão, Sirius – disse James, com um sorrisinho – Tá na cara que ele é a puta do Malfoy. E olha que o cretino se formou no ano passado.
– É, Malfoy não deixaria ninguém pegar o que é dele. E você, Sniviadinho, é propriedade dele. Por acaso ele colocou uma marca em você, tipo uma tatuagem escrito "Propriedade de Lucius Malfoy"? Hum, eu digo que sim. – Risos generalizados – Quem sabe a gente procura? Tem que estar aqui em algum lugar.
James apontou a varinha desta vez:
– Desvestium!
As roupas de Severus saíram de seu corpo, e ele ficou nu em pêlo em pleno ar, a pele muito branca, quase amarelada, como se fosse uma planta que não pegasse sol. Os três se riram demoradamente, circundando-o.
– O quê? Malfoy trepa com isso? Sério, pensei que estes adeptos da supremacia racial tivessem gosto mais apurado.
– Parece uma garota feia – disse Peter, torcendo o nariz.
– Não tão depressa, gente – Sirius apontou para o meio das pernas de Severus – Olha só o tamanho daquele pinto. Snivellus! Quem diria, você é bem-dotado!
– Ah, agora deu para entender o que o Malfoy viu nele.
– Mas de que adianta ter um pau desses se só o que o Malfoy usa é a bunda? – Novas risadas – Porque Malfoy nenhum vai ser putinha de um Snape qualquer.
– Vai ver que ele é bom de boquete.
– Está curioso, é, Peter? – Sirius ria maliciosamente.
– Dizem que os viados são os melhores do boquete. Aquela Lucy Stevenson era horrível! Me machucou todo!
– Você quer experimentar e ver se Snivellus é melhor do que ela?
Peter parecia tentado a seguir a sugestão de Sirius. Harry sentiu o estômago embrulhar.
– Você também vai, Sirius?
– Eu? Nem pensar. Não quero nem ouvir falar de homem perto de mim. Especialmente esse aí – não encosto nele nem com uma vara de três metros!
– Solta ele.
– Enervate!
Severus foi ao chão, seu corpo fazendo um baque oco ao se chocar contra o solo de pedra de Hogwarts. Ele tentou se esticar para pegar a varinha no chão, mas seus músculos ainda não estavam totalmente recuperados, dando tempo a Sirius de posicionar-se entre Severus e sua varinha, ameaçando:
– Nem pense, Snivellus!
Severus olhou em volta, tentando esconder sua apreensão:
– O que vocês vão fazer?
Harry estava imaginando a mesma coisa. Eles não podiam fazer o que ele estava pensando que fariam. Não, não, era impensável!
– Peter está interessado em experimentar um pouco, Snivellus – disse Sirius – Você é bom no boquete?
Severus xingou pesadamente, mas Sirius só se riu:
– Você não me xingaria de metade dessas coisas se conhecesse minha mãe. – Os outros riram também – Agora fique de joelhos! Vamos!
– Sirius – chamou James, que não estava mais sorrindo – Não.
– Ora, James, o que tem de mais? Peter só vai se divertir um pouco e acho que a bichinha vai até gostar.
– Não, Sirius – insistiu James – Peter, não faça isso.
Houve uma pausa e os três trocaram olhares significativos. Pettigrew deu de ombros:
– Eu não ia fazer de qualquer jeito. Era capaz de essa bicha me morder.
Sirius parecia frustrado:
– Estraga-prazeres! Foi por isso que não trouxemos o Remus. Ele ia falar a mesma coisa.
– Vamos embora, está quase na hora do jantar. – insistiu James.
– Mas pelo menos vamos levar as roupas dele, não vamos? – negociou Sirius.
James sorriu:
– Mas é claro que vamos levar as roupas dele!
Severus voltou a xingar os três enquanto a cena se desfazia e Harry rapidamente sentiu a sala onde ele aprendia Legilimência se refazer ao redor dele. Severus estava de pé, adiante, a cabeça baixa.
– Eu sinto muito – Harry conseguiu dizer.
– Não se iluda, Harry – alertou Severus – Esse tipo de incidente ocorre até nos dias de hoje. E em qualquer idade.
– Nunca imaginei que meu pai fosse homofóbico. O que ele diria de mim? Eles... fizeram isso outras vezes?
– Se eu responder a isso, estarei prejudicando suas lições de Legilimência. Se quiser saber, terá que procurar isso na minha mente – suspirou – Mas não agora. O dia foi longo.
Harry concordou com o sentimento, pois estava exausto. Ambos terminaram indo para cama cedo. Contudo, algo perturbava Harry terrivelmente. Ele rapidamente descobriu a fonte de sua perturbação, e foi uma descoberta que o deixou muito impressionado.
Por conta disso, demorou a dormir. E estava quase pegando no sono quando sentiu uma euforia grande, e começou a ver – dentro de sua mente – o quarto onde estava. Observou tudo como se estivesse vendo aquilo pela primeira vez, e então se deu conta de que estava vendo aquilo pela primeira vez, porque aquele pensamento não era seu.
Havia outro alguém dentro de sua mente. E só poderia ser uma pessoa.
A reação foi instantânea:
– SAI DE MINHA CABEÇA, VOLDEMORT!
Num esforço mental movido a uma grande dose de adrenalina, ele conseguiu expulsar a presença intrusa de sua mente e sentiu que caía da cama. O impacto o retornou completamente à consciência e ele abriu os olhos para ver Severus de pé, em seu camisolão preto, de varinha em riste. Tudo estava embaçado porque Harry estava sem óculos, suando, ofegante.
– Voldemort! – explicou, vendo o outro reagir ao nome – Ele tentou entrar na minha mente...! Eu... consegui expulsá-lo...
Severus ajudou-o a se levantar:
– Você está bem?
– Sim, tudo bem.
– Quer uma poção?
– Não, prefiro não – Harry mordeu o lábio – Posso... pedir uma coisa? Vai ficar bravo comigo?
– Do que se trata?
– Posso dormir com você?
Severus ia responder imediatamente que não, é claro, mas algo apareceu nos olhos verdes, um misto de carência, medo e exaustão, e naquele momento Harry pareceu-lhe ter cinco anos de idade. O menino realmente devia estar se sentindo péssimo para admitir tal fraqueza a ele, de todas as pessoas. Por algum motivo que ele preferiu não reconhecer no momento, ele não teve coração de negar o pedido.
– Traga seu travesseiro.
Os olhos verdes brilharam, e Severus acrescentou:
– Mas só se tomar a poção. Nós dois precisamos dormir um pouco.
Harry obedeceu alegremente, e Severus deixou que o rapaz se enfiasse debaixo do lençol primeiro. Após murmurar "Nox", ele se deitou, evitando olhar para o lado e para o companheiro de cama. Era muito tentação, ainda que ele fosse perfeitamente capaz de resistir. Droga, ele estava se deixando levar de novo por aqueles sentimentos.
Foi uma noite turbulenta.
Sem surpresas, Severus descobriu que Harry dormia de maneira agitada, virando-se muito, chegando perto dele. E quanto mais perto Harry chegava de Severus, menos agitado ficava. Por sua vez, Severus, claro, não conseguia dormir, devido à incomoda ereção que começava a se formar.
Mal amanheceu, Severus decidiu sair da cama e ir ao banheiro cuidar de seu problema. Sentiu-se culpado por usar a imagem do garoto desse jeito, mas isso não o impediu de chegar ao clímax imaginando os lábios rosados de Harry em volta de seu pênis.
Quando retornou ao quarto, o rapaz estava sentado na cama.
– Acordou cedo.
Ele se dirigiu ao armário, disposto a mudar de roupa.
– Tenho poções para fazer – uma meia mentira.
– Quer ajuda?
– Você tem que terminar o jardim.
– Depois posso ajudar nas poções?
– Se terminar o seu trabalho a tempo e a contento.
Pausa.
– Eu... queria falar com você.
– Aconteceu alguma coisa?
Harry se levantou da cama e se aproximou dele:
– Eu acho que estou me apaixonando por você.
Severus sentiu o impacto dessas palavras quase como se fossem físicas. Por um lado, ele estava exultante e maravilhado: jamais imaginou que isso pudesse ser possível, mas Harry estava interessado nele!... Contudo, ele logo se deu conta de que o mais provável era que isso fosse mera curiosidade de adolescente, ou influência da proximidade forçada que eles usufruíam nas últimas semanas. Por mais que ele quisesse acreditar no garoto, aquilo não era real.
Portanto, só o que ele podia dizer era um amargo:
– Você não sabe o que está dizendo.
Harry procurou seus olhos:
– É a verdade.
Severus tinha que esmagar seus sentimentos e agir com responsabilidade e sensibilidade. Afinal, era um adolescente diante dele, um com sentimentos frágeis.
– Harry – ele começou – Isso provavelmente é uma atração passageira. Acontece muito com figuras de autoridade, mas dura pouco e não leva a nada.
– Você não me quer?
– Não é nada disso, é...
O rapaz abaixou a cabeça.
– É por que eu sou feio?
Severus arregalou. Como Harry poderia pensar que era feio?
– Por que está dizendo isso?
Ele continuou de cabeça baixa, a voz miúda:
– Meus tios sempre me disseram isso, que eu era feio e ninguém nunca iria me querer por perto. Eu uso óculos, sou muito magro, e tenho uma cicatriz horrível. É por isso?
– Harry, você é um rapaz jovem, inteligente e atraente. E os óculos só dão charme a você.
– Então é porque eu sou um aluno de Hogwarts?
– Você há de convir que isso me coloca numa posição muito delicada. Muitos podem presumir que eu estou forçando você a fazer o que não quer.
– Mas eu nem sou seu aluno! Estou fora da turma de Poções.
– Ainda assim, Harry, um romance entre um professor e um aluno abala a confiança dos pais dos outros alunos em achar que a escola é um ambiente seguro para seus filhos.
– Ninguém precisa saber. Podemos namorar escondido.
– Harry, isso simplesmente está fora de questão. Tudo isso é muito impróprio. Eu sou uma pessoa... inadequada para ser companheiro de alguém como você. Outras pessoas...
– Eu não ligo para o que os outros pensam.
– Nem para os seus amigos? – O rapaz arregalou os olhos – O que você acha que eles diriam?
Harry não deu o braço a torcer:
– Eles vão entender. Vão ter que entender. Severus, eu não estou brincando.
– Não, eu sei que não está. Mas tudo isso é altamente impróprio. Você só está influenciado por nossa intimidade forçada e está vendo coisas onde na verdade elas não existem.
– Não é nada disso.
– Acredite, Harry, você deve reservar esses sentimentos para alguém de sua própria idade. Não acha que alguém assim seria companhia muito mais adequada para você do que um velho professor com ligações mais do que duvidosas?
Harry amargamente acusou:
– Você está me tratando como uma criança, e você jamais faz isso. Gente da minha idade não faz idéia do que se passa comigo. Eles não podem me entender, Severus. Você, sim, tem condições de entender. Você sabe sobre Vold – quero dizer, Você-Sabe-Quem. Você entende dor.
Severus teve que admitir que nesse ponto o rapaz estava certo. Eles efetivamente tinham coisas em comum.
– Pode até ser, Harry. Mas ainda digo que isso é apenas passageiro. De acordo com minha experiência, esse tipo de afetuosidade não dura mais do que duas semanas.
– E se eu provar que você está errado? E se depois de duas semanas eu ainda estiver apaixonado por você?
Severus o encarou. Inadvertidamente, ele tinha mencionado um prazo, e Harry tinha se aproveitado disso. Mas havia outros fatores em risco...
– Nesse caso, voltaremos a conversar. Não prometo que isso vá me fazer mudar de idéia. E até lá não quero mencionar esse assunto novamente.
– Tudo bem – Harry se virou para sair, mas mudou de idéia e voltou – Por um acaso esse prazo de duas semanas tem alguma coisa a ver com o fato de meu aniversário ser na semana que vem?
– Indiretamente.
– Como assim?
– Na semana que vem, você completa sua maioridade – Severus ergueu uma sobrancelha. – E este é o meu ponto.
Harry sorriu, maroto, e deixou o quarto com o coração acelerado. Ainda havia esperança!