O Berço Literário da Série Harry Potter


Alguém de vocês já pensou no que significa para um escritor que vive numa sociedade como a nossa, atualmente, escrever um livro como Harry Potter e continuar a série após tanto sucesso e com a responsabilidade de levar esta história a bom termo? Imaginem só escrever sete, além de Quadribol através dos séculos e Animais Fantásticos e Onde Habitam. Com certeza, o trabalho de Rowling não é nada fácil.
É claro que o dinheiro que ela tem deve ajudar com o fato de não ter de se preocupar com o que vai comer ou com o que vai comprar roupa para os filhos, e também com pesquisas para uma informação aqui e outra ali para complementar o que quer escrever. Porque, ao contrário do que muitos podem pensar, o trabalho de um escritor não depende somente da inspiração e da sua genialidade, mas de muito trabalho duro, e isso envolve dedicação e, em muitos casos, pesquisas sobre fatos históricos, geografia, mitos e uma infinidade de outras informações que ele pode aproveitar tanto literalmente quanto reinventá-las de acordo com seus propósitos.
No caso de Rowling, sabemos que ela demorou uns bons anos planejando com muito cuidado todo o enredo da série para depois se lançar à tarefa de criá-la. Nesse processo, há coisas tão óbvias que não precisam ser mencionadas, como o fato de o universo escolhido ser um mágico, onde feitiços são possíveis, fantasmas podem dar festas e convidar seres vivos para dela participarem, e criaturas como hipogrifos e testrálios voarem transportando pessoas em suas costas.
No entanto, parece haver, nesse processo de criação, elementos envolvidos que parecem tão “naturais” aos olhos do leitor que este jamais questiona sua veracidade. A questão é: como um escritor consegue combinar os elementos e fazer dele uma história de sucesso como essa? E quais são esses elementos? Eles são os mesmos que vemos nos filmes da série?
A proposta desta seção é discutir esses assuntos: literatura e cinema em Harry Potter e os efeitos que causam nos leitores e nos críticos de arte. Obviamente, a intenção não é encher nossas cabeças com teorias complicadas a todo momento para explicar as coisas, mas tentar simplificá-las o máximo possível para que possamos conversar sobre o tema.
A primeira questão que trago a vocês é a da verossimilhança. Palavrinha um tanto quanto difícil, não é mesmo? Eu mesma não sabia de sua existência até estudar literatura mas, como leitora e telespectadora, sabia que as histórias tinham de parecer “verdade” dentro do seu próprio mundo e que um livro ou um filme não era lá tão bom assim quando sua “verdade” era quebrada dentro da sua própria história.
Pensemos, então, nessa coisa de “verdade”. Vamos considerar que a verdade é relativa e depende do contexto, isto é, de quando e onde ela é vista. Se a gente fala do nosso país, a verdade é que o atual Presidente da República é o Lula, e ninguém pode contestar isso. Mas se eu pergunto a vocês se é verdade que existe magia, ninguém pode afirmar isso categoricamente porque não é reconhecida cientificamente, embora muitos acreditem nela e a pratiquem de diferentes formas. Para uns, ela é falsa, mas para outros significa a própria vida. Aí está a relatividade da questão.
Da mesma forma ocorre com os livros. Podemos afirmar que o personagem Harry Potter é um menino que aos 11 anos descobre que é bruxo. Isso é verdade dentro da história, e ninguém pode contestar essa informação porque esta é a base de toda a série.
Tudo bem, vocês podem dizer, mas e aonde isso leva? Disso já sabemos. Essa questão de verdade leva à verossimilhança: de um modo bastante simples, vocês podem entender que verossimilhança é a verdade dentro de uma história, ou seja, aquilo que é possível acontecer porque não vai criar um tumulto e não vai “quebrar” a lógica interna da história. Pensem só se Harry fosse perdidamente apaixonado pela Pansy Parkinson ou pela Milicent Bulstrode! Eu pergunto: de acordo com a história contada até então pelo narrador, isso é possível? Obviamente, não. Por outro lado, se eu disser a vocês que de acordo com a situação das coisas na série, é possível que Hermione e Ron acabem namorando, ninguém vai contestar, ainda que isso desagrade a alguns de vocês. Do mesmo modo, ainda é possível, antes que a narrativa caminhe para outros caminhos, que Hermione acabe ficando com Victor Krum, porque o narrador não nos informou que ela o descartou. Pelo contrário, a última informação que temos é a de que Ron está com ciúmes porque ela está escrevendo uma carta para ele. Vai lá saber o que está escrito ali... A questão não está fechada e tampouco a coisa avançou entre ela e Ron e, por isso, é possível que um desfecho como o dela com Krum aconteça. Não me cabe aqui dizer o que eu acho, mas explicar o que é e o que não é possível dentro de uma história, e esses são exemplos básicos para explicar a questão de hoje.
Pois bem, troquem a palavra “possível” por verossimilhante e terão entendido a questão. No nível de relacionamento das personagens, a gente já entendeu isso. Agora pensem na verossimilhança da série como um todo. Como é que acreditamos sem questionarmos em momento algum que um carro voa, que alguém desaparata e que as pessoas lançam feitiços umas nas outras, além, é claro, de acreditar no brilhantismo de um trio de crianças que conseguem vencer o Mal? Muito simples: não é possível comparar essa narrativa à realidade que vivemos porque elas não são iguais.
O enredo de Harry Potter é verossimilhante dentro de um universo literário especial, o da fantasia. Um cara chamado Northrop Frye publicou, em 1957, um livro que trata dessas questões de literatura. Ele explica como funciona esse tipo de literatura no qual o trabalho de J. K. Rowling se insere:

2. Se superior em grau aos outros homens e seu meio, o herói é um típico heroi da estória romanesca, cujas ações são maravilhosas, mas que em si mesmo é identificado como um ser humano. O herói da estória romanesca move-se num mundo em que as leis comuns da natureza se suspendem ligeiramente: prodígios de coragem e persistência, inaturais para nós, são naturais para ele, e armas encantadas, animais que falam, gigantes e feiticeiras pavorosos, bem como talismãs de miraculoso poder, não violam regra alguma de probabilidade, uma vez que os pressupostos da estória romanesca foram fixados. Aqui passamos do mito propriamente dito para a lenda, o conto popular, o märchen e suas filiações e derivados literários. (FRYE, 1973, pp. 39-40).

Assustador? Nem tanto. A questão é simples de se entender: de modo bastante resumido, o que ele nos diz é que aquilo que normalmente não é normal no nosso mundo passa a ser aceitável como verdade nas histórias romanescas, como os dragões ou toda a magia que conhecemos em vários livros de fantasia, e que todas as ações são realizadas por um herói que é diferente do ser humano comum, porque ele tem poderes diferentes, ou seja, porque ele é especial. Soa familiar pra vocês? Pois é, gente. Entram aí História Sem Fim, Desventuras em Série, Artemis Fowl, as histórias de ninar que ouvíamos quando éramos crianças, como Bela Adormecida e Chapeuzinho Vermelho, e por aí vai a lista mais longa do que o tempo que temos em nossa vida para enumerá-la. Isso porque o velho Frye já dizia que “A estória romanesca é mais velha do que o romance” (p. 300).
O que é importante para nós é ter em mente que esse mundo de fantasia, onde a realidade como a conhecemos se suspende e dá lugar aos acontecimentos “diferentes”, forma o chamado “romanesco”, isto é, essa literatura de heróis, heroínas, batalhas, épicos, e principalmente da luta do bem contra o mal. Mais do que isso, o romanesco só pode ser escrito porque tem uma série de regras que todo bom escritor deve saber para poder escrever uma história que seja verossimilhante. E podem apostar, Rowling sabe todas elas muitíssimo bem.
Quais são essas regras? Como elas funcionam? Elas dizem respeito a quê? Bom, a gente começa pelo tema. O tema... OPS! Nem pensar, pessoal. Essa já é uma outra conversa, que fica para o nosso próximo encontro. Por enquanto, podem ir pensando nas partes mais legais e que vocês julgam ser as mais difíceis de escrever, porque elas certamente, em algum momento, se encaixarão nesse quebra-cabeça maravilhoso que a Rowling criou dentro do mundo do romanesco da literatura britânica. Até lá!

Fabi Mellingott