Presença de Yukito



Por Astasia


Capítulo 1

 
 

Dez anos depois...
 

É bom estar tão longe, de lugares onde coisas terríveis aconteceram. Hoje é meu aniversário, não recebi presentes de ninguém, nem telefonemas e nem sorrisos condescendentes. Aqui, eu sou prazerosamente ignorado, apenas mais um na multidão, sem passado e sem futuro. Na frente deste espelho eu volto a ser o que sou, apenas para mim, para ninguém mais, e eu sou o que sou. Estou afinal com trinta anos, não creio ter mudado tanto de meus dezessete ou mesmo dos vinte anos. Ganhei mais corpo, ganhei alguns cabelos brancos, poucos ainda, ganhei um ar respeitável que sempre achei que cabia mais a meu pai. Ganhei um cargo de pesquisa na Universidade há quatro anos, depois de meu mestrado. Mas a única coisa que nunca voltei a ter foi paz.

Eu suspiro, sozinho neste hall de prédio de luxo. Mais uma festa, mais sorrisos distribuídos a granel e nem por isso verdadeiros. Estou tão longe de meu país que nem pressinto o medo distante de ver um rosto conhecido. A Inglaterra é uma anfitriã que não faz perguntas a seus convidados. Estou feliz com isto, mas não sei se estou feliz com o que me tornei, uma casca vazia e sem alma. Minha alma morreu sem que o corpo a acompanhasse, morreu aos pedaços, e cada vez, mais dolorosamente que a outra, e a última, morre a cada dia em que levanto sem ter o que esperar de cada dia além do trivial. Não espero mais por nenhum sorriso de ninguém especial, e nem espero que aconteça algo. Não quero conhecer ninguém, nem ver. Os mortos não voltam, se assim o fosse, eu esperaria quanto tempo pudesse para ter...

“Toya! Está um pouco longe de casa, não?”

Evito olhar de pronto, mas apesar de conter-me, estou surpreso. Falam comigo numa língua que há muito não escuto. Quem poderá ser? Olhar pelo reflexo do espelho não ajuda muito. Vejo apenas pernas de um desconhecido. Na verdade há dois desconhecidos parados atrás de minha costa, e então olham para mim, discretamente sorrindo, parados ao meu lado, pelo reflexo igualmente.

“Vocês... que estranho... Mas?...” – Não consigo, ou não quero, reconhece-los de pronto. Olho-os no rosto, viro-me para olha-los melhor. Eles se aproximam, discretamente seus braços se prendendo, eles são íntimos até demais, e essa intimidade me incomoda, com inveja e lembranças ardentes.

O rapaz de óculos me estende a mão. Ele é quase tão alto quanto eu, e seus cabelos negros caem sobre os óculos, que não são suficientes para esconder o azul de seus olhos, tão inteiriço e estranho que não pode ser humano.

“Eriol?...” – Pergunto muito baixo, quase sem conseguir lembrar se o nome é este mesmo.

“Estou um pouco diferente, não acha?” – Ele ri, detrás de seus óculos de lentes finas – “Eu escrevi cartas a você, mas nunca as respondeu. Eu soube que...”

“Ah, sim... Eu saí do Japão depois disso.”

“Sim. Eu soube disto também. Mas não sabia que estava aqui. Creio que foi... o destino que nos fêz nos encontrarmos aqui...”

Ele olhou ao redor, como a mostrar todo o hall de mármore bege ao nosso redor. Impressionante como ele mudou nestes anos, eu me lembro dele como um garotinho...

“... agora...”- Ele estreita mais seu braço em torno daquela... daquele.... Da pessoa ao seu lado, cujo sexo parece ser impossível definir. Mas não me é de todo estranho. – “...hoje.”

“Você deve imaginar que eu não acredito nessas coisas.”

Ele riu de novo, contagiante. A pessoa que o acompanhava também riu.

“Ah, Toya, você não a reconhece, não é mesmo?” – Ele trocou um olhar com a pessoa. Parece muito familiar... - “Você já foi mais cortês com as damas, Toya, e não só com as damas.”

Ele não me diz quem é que o acompanha e deliberadamente me dá as costas para beija-la. Eles são amantes, evidente. É um beijo de desejo e não de amor, selvagem e violento. Como ele cresceu, Sakura desmaiaria se visse seu amiguinho Eriol fazendo essas coisas.

Depois, com lábios avermelhados e úmidos, trocamos um longo olhar, no qual eu tento não demonstrar minha surpresa e tampouco minha inveja. Eu jamais imaginei beijar Yukito desta forma, mas isso também me incomoda.

“Eu não fico muito tempo em Londres, nós vivemos em outra cidade e vamos ficar somente até amanhã. Você gostaria de nos acompanhar ao chá?” – Ele diz, finalmente, tirando os óculos e tocando meu ombro, sua mão fina de moço bem-nascido passa inclusive por meu braço.

“Agora?”

“Por que não? Se quisesse mesmo subir à festa que começou há mais de uma hora atrás, não estaria ainda aqui, perdendo seu tempo comigo... o amigo de infância de sua irmã.”
 
 

 

Ele continua tendo toda aquela classe inglesa que já mostrava quando o conheci. Por mais que ele não seja o que aparenta, pelo menos Eriol tem estilo para mentir, por mais descaradamente que seja. Sou praticamente arrastado a um táxi, e poucos quarteirões depois, paramos à frente de um hotel antigo e discreto, um tanto escuro, mas sem dúvida bem freqüentado.Uma nuvem de fumo e cheiro de tabaco e café paira no ar e quando Eriol entra, antes de mim e de seu estranho acompanhante, ele diz que lamente que Li tenha abandonado seus votos de mago. Sabendo quem ele é, não duvido de que seu acompanhante seja mais uma daquelas malditas cartas sob forma humana, assim como o fora....

“Se não existe destino, então eu não sei se foi alguém lá de cima ou lá de baixo quem providenciou o nosso encontro justamente hoje...” – Ele diz antes de apertar o botão do elevador, todo feito de grades. Ainda no elevador ele tira seu casaco. Atualmente ele está aparentando vinte e cinco anos, muito bem pensado...

“Coincidência.”

“Obra dos deuses?” – Ele vira o rosto para a minha direção. È difícil sustentar seu olhar ou o da pessoa ao seu lado. Agradeço a qualquer coisa quando chegamos logo ao andar em que está seu quarto.

Antes de virar a chave, ele faz mais um desconcertante comentário, não por falta de educação ou polidez, mas por continuar a ser uma pessoa muito direta.

“Você continua sozinho?”

“Sim.” – Ele pode saber essa resposta apenas olhando para mim.

“Ele morreu há muito tempo, Toya.”

“Eu sei. Isso não é novidade para mim.”

“Ah... tudo o que amamos morre. A maioria dos que tem algum dom... o sonho, a visão, a Magia... está destinado à solidão.” – Ele diz, quando entra e acende as luzes. Me aponta um sofá, e eu me sento, jogando o paletó para cima de uma cadeira. – “Os que não tem esta sina, como eu... Como nós... devem aproveitar ao máximo as chances que o destino nos dá.”

“Você sabe que eu abri mão da parte que me cabia.”

“Mesmo?” – Ele pára um instante de falar comigo e telefona para a recepção, pedindo chá, vinho, biscoitos, queijo. Olha por um instante para uma porta fechada, atrás de nós e pede também leite com chocolate. Estou mais tranqüilo por que a pessoa afastou-se de nós, indo sumir detrás de outra porta fechada. A cama de Eriol está desfeita, como se alguém acabasse de se levantar, ou estivesse indo dormir. – “Mas isso que você diz que não tem mais, é uma coisa que não pode ser tirada. Não impunemente. E fazer isso inclui uma coisa que com certeza aquele demônio não ousou lhe dizer.”

“Você sabe muito mais do que aparenta, Eriol.”

“É claro que eu sei!” – Ele ri, chutando os sapatos.- “Ora, meu senhor, para alguém da minha idade, não saber de certas coisas poderia ter custado a minha alma.”

Ele me chama de senhor, me faz pensar na minha idade, nos anos que perdi e estou perdendo.

“Você tem tido contato com Li? Depois que Sakura...”

“Tive, para falar a verdade, muito rapidamente, eu recebi uma caixa, com o nome dele e de Tomoyo como remetentes e...”

“Tomoyo...”

“Eu sei, foi terrível.” – Ele fica por um momento sério, olhando para o chão, e logo recobra sua placidez de menino. – “ Li estava me enviando as cartas que Sakura recebeu de mim pelos anos que trocamos correspondências, me mandou o que sobrou do livro...”

“O livro?”

“Sim, as cartas foram destruídas, e o livro queimou-se, mas ainda restavam os selos, e como a dona do livro não poderia ficar com eles e Li abandonou a Magia, achou mais seguro que eu ficasse com eles.” – Ele vem se sentar ao meu lado, e sem nenhuma cerimônia seus dedos vem afrouxar o nó de minha gravata. – “E o selo que libertara Cerberus não estava entre eles. Deve ter desaparecido junto com ele mesmo...”

“Cerberus desapareceu na noite em que Yukito foi assassinado.”

"Spinel Sun ainda está comigo, mas não aqui. Apenas Nakuru veio comigo a Londres desta vez e..."

Eriol parece se interessar, mas antes que sua curiosidade comece a trabalhar em meu favor, o serviço de quarto bate à porta. O empregado entra e deixa a bandeja sobre a mesa de centro, e sai sem dizer nada.

“Este assunto muito me interessa, Toya. Você sabe que Yukito não era...”

“Humano.”

“Você diz isso como se fosse algo que eu não devesse citar.”

“...”

“Yukito não era humano, ele era somente uma casca servindo a Yue.”- Eriol serve o chá. – “Uma bela casca eu devo admitir. Rubymoon também sabe escolher, a vaidade é um dos grandes pecados destas criaturas. Sabe, eu não acho que eles devessem se misturar a nós, eles adquirem aspectos que não condizem com suas naturezas. E isso pode nos destruir, a todos nós, algum dia.”

“Não mude de assunto.” – Eu digo quando a xícara chega em minhas mãos, e ela treme por um instante quando ele abre os lábios e nada diz.

“Li disse na carta que lhe entregou sua espada. Disse que se um dia eu o encontrasse, eu nada deveria dizer sobre o que houve. A não ser que o inevitável acontecesse. E há de acontecer. O destino fez com que nos encontrássemos ainda há pouco, ele fará outras coisas acontecerem, e se acontecer o que eu imagino, Toya, então você deverá usar a espada dos antepassados de Li.”

“Eu não creio em Magia.” – Digo, compassadamente, contando até mil antes de perder a paciência com ele e com todos os segredos que estão ainda, tanto tempo depois, escondendo de mim. – “Eu não creio em destino, e se algum dia eu acreditei em qualquer das loucuras em que minha irmã e vocês estiveram metidos, hoje não mais.”

“Você acreditava em Yue. Falou com ele.”

“O que eu acredito é que há algo de muito podre, que começou muito antes da noite em que Sakura morreu.”

“Se quer saber o que é, eu lhe direi...” – Ele tira a xícara da minha mão com um tapa, ela voa longe e se espatifa no chão, espalhando cacos no tapete, e Eriol me beija como se estivesse em desespero. Não sei o que fazer, e fico no mesmo lugar, sentindo o gosto de vinho em seus lábios, a força de seus braços me contendo no mesmo lugar e sua língua... Ele se demora o quanto quer, não sei por que não consigo corresponder a este beijo, seu corpo é esguio e minhas mãos adivinham suas belas formas sob o tecido das roupas, eu lhe teria desejo, talvez lhe tenha desejo, sim, mas algo me impede de aceitar o dele.

Eriol e eu ofegamos quando ele se afasta de mim, seus olhos estão inquietos, olhando para meu rosto. Seus dedos estão entre meus cabelos, e seu corpo todo treme junto ao meu. Eu não consigo entender isso.

“O tempo lhe fêz muito bem... pena que não o fêz ao seu coração. Você ainda pensa nele... seu amor e seu desejo ainda pertencem a ele.”

Também não consigo afasta-lo, mesmo não o desejando, por que o calor de seu corpo me faz recordar o de Yukito, e ter um corpo junto ao meu é algo que não me atrevo a querer há muito tempo... Sempre penso na promessa que ele havia me feito.

“A mesma coisa que matou Yukito, também matou a sua irmã. Ela me disse em uma carta que havia descoberto isso, e que vingaria a morte dele. Seja o que for, quando ela o invocou, ele a matou também. Posso imaginar este como sendo o motivo da morte de Sakura, mas não vejo um motivo para a morte de Yukito.” – Ele sussurra estas palavras com ar inquieto, como se temesse ser ouvido, em alguma parte, como pudéssemos estar sendo vigiados.

“E Yue, o que houve com ele?...”

“Eu creio que ele morreu junto com o corpo de Yukito. Não adianta investigar dentro dos círculos porque certas coisas acontecem. É melhor que isso fique enterrado junto com os mortos... e volte com eles, se é que os mortos podem voltar.” – Ele pára, e fica somente respirando, sua boca ainda muito perto da minha. Ele continua tremendo, e desliza uma coxa longa e atrevida sobre a minha. Se isto é algum tipo de brincadeira, eu não consigo ver graça nenhuma nela. – “Se você tanto o desejava, por que não consumaram este amor? Por mais que eu tente, você me é indiferente. Mas eu não consigo ignorar você deste modo. É bem provável que ele também não consiga.”

“Ele?”

Eriol se levanta e passa a língua demoradamente pelos lábios. Volta para a bandeja e bebe mais um pouco de vinho, antes de se sentar, em outra cadeira, desta vez.

“Hmmm, que maldade a minha. Quer um biscoito?”

“Não mude de assunto.”

“Não? Está bem, Evol deve estar com fome mesmo.”

“Quem?” – É um nome estranho, quase de duplo sentido, e o segundo é mais estranho ainda, e tudo está estranho demais aqui desde o instante que Eriol me beijou.

“Evol Frost.” – Com toda esta estranheza, ainda há um vago deja vu quando ele diz este nome. – “É preciso ter discípulos para as artes da Magia, meu caro, nunca se sabe quem há de quebrar o meu pescoço também, ou quem sabe, arrancar o meu coração, ou me fazer desaparecer da face da terra, ou enlouquecer... São coisas terríveis as que acontecem com os que estão ligados aos mistérios das cartas Clow.”

“Está mudando de assunto de novo. Se não há nada de valor a me dizer, eu irei embora. Não estou aqui para ser seduzido por você.” – Levanto e pego meu paletó, sem no entanto vesti-lo, é outono, mas está estranhamente quente aqui. Não sei quem me faz sentir calor, o chá que bebi ou o beijo excitado que ele me presenteou, ou simplesmente é este olhar que me despe. – “E muito menos para ouvir o que você acha que eu devo fazer da minha vida.”

“Eu não disse nada, e se eu tentei seduzi-lo, não foi nada que eu já não quisesse fazer há muito tempo. Destino. Como eu poderia adivinhar que você estava vivendo aqui, em Londres, quase ao meu lado, há tanto tempo? Chame do que quiser.”

Ele bebe mais um pouco, até esvaziar sua taça. Uma gota de vinho escorre por seu lábio rosado e fica quase a escorrer em seu queixo. Tenho vontade de beija-lo mais uma vez, só para tentar recordar como é ter alguém em meus braços. Eriol sabe provocar, e sabe o tamanho do desejo que está adormecido em mim.

“Boa noite, Toya. Me agradeça por eu ter feito a sua noite mais divertida. Tem certeza de que não quer um biscoito?”

“Não.”

Vou diretamente para a porta e ele diz, enquanto eu viro a maçaneta:

“E não fale com estranhos. E muito menos com... Ah, eu havia me esquecido! Enfim, estes biscoitos são deliciosos. Eu não me privaria de coisas tão boas por tanto tempo, meu caro. A vida é breve, e o amor, mais breve ainda.”

“Isso é o que você diz.”

“Eu não. Um poeta disse isso.”
 

 

Não é sem estar bufando de raiva que aperto o botão do elevador. Estou falando só, dizendo coisas pouco educadas sobre Eriol e sobre a situação que ele criou, e pelo menos estávamos sozinhos. Procuro o maço de cigarros no colete do paletó, mas não encontro. Somente o isqueiro. O beijo de Eriol ainda arde em meus lábios, como ele pôde fazer isso? Quanto atrevimento...

O elevador chega com um estalo súbito que me tira dos meus pensamentos de raiva, das chances que eu teria tido de saber finalmente a verdade ou uma parte dela. Mas não foi de todo inútil. Agora eu conheço uma pequena parcela dela.

Entro e ele desce, com o seu estremecimento centenário, os níveis que me separam deste andar.

E quando eu saio e já estou indo direto para o hall de entrada, no fim do corredor vazio (como parece ser tudo neste hotel), alguma coisa se move, na penumbra que invade todos os lugares, até os que tenham as luzes acesas.

Fixo meu olhar naquela direção e não defino o que seja. Move-se então rapidamente, como se a temer ser visto. E então passa, atravessando o corredor, de um ponto a outro, desaparecendo nas trevas. Não sei o que é, mas não é parecido com nenhuma das assombrações que me habituei a ver desde criança. Ando rapidamente em seu rumo, mas nada vejo. Somente o seu rastro no chão atapetado. Uma pena branca e muito leve, muito mais branca e leve do que a de um pombo. Engulo em seco e quando visto o paletó, afinal reencontro meus cigarros.
 

 

Por sorte o hotel onde Eriol está hospedado não se encontra tão longe do prédio onde moro. Uma, duas, três quadras, uma praça, mais uma, duas quadras, e em breve eu sei que vou poder me jogar na cama e esquecer tudo isso com muito, muito prazer. E começo a pensar em me mudar para um lugar mais distante. Edimburgo, no Norte, parece acolhedora depois de ter reencontrado Eriol.

Afinal concluo que aquela estranha figura que o acompanhava de fato era mais um aspecto de Nakuru. Nada mau.

Caminhar na noite me faz bem, principalmente as de luar. A raiva que sinto desaparece até ser apenas uma lembrança. É outono, mas o céu está claro e o luar, enorme e cheio. Yukito gostava de noites assim. Ele sempre ficava mais melancólico em noites assim, mais pálido e principalmente, mais ardente, mesmo que se recusasse a passar a noite comigo. Ele morreu sem que houvéssemos feito amor uma única vez. Seja lá onde ele estiver, quero que ele saiba que isso eu lhe devo, minha dívida para com Yukito é o prazer que não lhe dei.

Estou no começo do meu último cigarro. É meu aniversário e é meu último cigarro, que ironia.

Tomara que eu tenha direito a um último pedido.

Mas... O que é isso? Num dos bancos do parque frio e vazio que tenho de atravessar, um menino bem vestido demais para ser um indigente e sem nenhuma vocação aparente para ser um garoto de programa está sentado, olhando os próprios sapatos. Está triste. Mas isso não é de minha conta. Seu cabelo castanho cinzento está caído sobre o rosto sombreado. Passo direto por ele, sem diminuir o passo. Mas depois disso, não consigo ir mais além. Ele deve estar perdido.

Dou meia - volta e, tentando não parecer ríspido, pergunto-lhe isso. Ele não levanta o rosto.

Torno a fazer a pergunta, e me sento no outro extremo do banco. Ele olha um pouco para a minha direção, mas acaba olhando para o chão mais uma vez. Digo que não vou fazer-lhe mal algum, mas que ridículo... É exatamente isso o que dizem os maníacos que aparecem diariamente nos jornais. Seguro seu queixo e faço com que ele olhe para mim. Se a polícia ver isso eu posso dar adeus a tudo o que tenho, a começar por meu emprego, minha casa e minha cidadania inglesa e comemorar o início de uma promissora carreira de tarado.

Não deve ter nem catorze anos. Menino é o melhor termo para ele. E não deve estar acostumado em lugares como Londres.

“Está perdido?”

“Sim.” – Na consigo ver seu rosto, as sombras das árvores desfolhadas são densas sobre ele. – “Não consegui achar nenhum guarda...”

“Me desculpe, moço...” – Ele levanta e vai embora, perdido dentro de um sobretudo preto, de adulto, que lhe fica grande e não condiz com sua idade. Seus dedos pálidos quase não aparecem sob as barras das mangas. Está com medo de mim... Isso me incomoda, eu estou tentando ajuda-lo.

“Você fugiu de casa?” – Pergunto, apressando o passo para estar ao seu lado.

“Não. Eu não moro aqui. Só não sei o nome do hotel onde a minha família está.”

“E o que está fazendo na rua uma hora dessas? Já passa e muito de meia noite.”

“Ah... eu...”

Ele treme. O que estou fazendo? Sem me dar conta eu seguro o garoto pelos ombros, e com firmeza. Eu nem o conheço. Seguro seu rosto e o levanto para mim. Tem olhos claros e límpidos, cílios escuros e lábios de aparência macia e rosada, e seu rosto tem um formato quase oval.

“Quantos anos você tem?” – Solto seus braços e não consigo tirar os olhos dos dele.

“Treze.” – Ele pisca algumas vezes, olhando para cima. É alto para a idade, mas não vai muito além da altura do meu peito.

“E o que estava fazendo na rua?” – Afasto seu cabelo de cima de seus olhos. São azuis. Se a polícia estiver vendo isso... Meu último cigarro finalmente acaba.

Não sei exatamente qual o tom que uso para perguntar isso, mas não falo alto, no entanto, consigo fazer o menino ficar muito vermelho. Isso me incomoda muito mais.

“A sua família sabe que você saiu?”

“Não.”

Esse menino de olhos azuis é uma bela chave de cadeia...

Seguro seu ombro como desse a impressão de ser algo para ele, isso vai me evitar problemas.

“Vamos sair daqui. Eu vou chamar a polícia para ajudar você.”

Ele parece plantado no mesmo lugar. Pergunto se ele tem medo de mim e ele sacode a cabeça. Sim. Ele então sorri, quando começamos a andar, na direção do prédio em que moro.

Sinto já conhecer essa expressão.

Ele não diz mais nada, continua com medo de mim, mas talvez lhe inspire alguma confiança. De onde ele é? Eu pergunto e não chega a responder. Um carro passa em uma rua transversal, buzinando tão alto que o faz calar e se encolher junto a mim.

“Me diga seu nome então.”

Já estamos a três casas da frente de meu prédio, e um cachorro avança por detrás da grade de um jardim. O menino de olhos azuis se espreme contra mim, subitamente, e tão subitamente quanto, é como se um choque elétrico corresse por meu corpo, quando sua mão esbarra a minha. Eu o afasto para a beirada da calçada, e debaixo da lâmpada turva do poste, trocamos um olhar perplexo e indefinido.

Ele está com as faces coradas como se estivesse com febre, e eu, estou arquejando como se houvesse corrido quilômetros em minutos. Que absurdo, um homem da minha idade... E este menino assustado, está com medo, está perdido, apenas isso... Por que eu me sinto assim? Sua mão fria afrouxa na minha e vai ficar ao lado da outra, sobre meu peito, a ponta de seu polegar roçando a beirada da minha gravata afrouxada. Destino... A palavra que Eriol usou parece caber aqui também, tão perfeitamente quanto o corpo deste menino cabe entre meus braços.

A rua está vazia, e ele cerra os olhos úmidos, como se soubesse que eu quero beija-lo.

Eu o aperto com força, como se aquele corpo já fosse conhecido por mim, como se este gesto não fosse entre desconhecidos.

Eu o beijo da forma que não se deve nunca beijar uma criança. Mas ele não é uma criança. Quando o ergo do chão, ele busca seu apoiar em meus ombros, tão mais largos que os seus, e corresponde de pronto ao toque dos meus lábios sobre os seus. Tenho quase certeza de que não sou o primeiro a provar de seu beijo, mas talvez seja o primeiro a lhe dar o beijo de um adulto, como todo o desejo que apenas um adulto poderia demonstrar. Eu o sufoco, com meu abraço e meu ardor.

Solto-o e ele desliza para o chão de novo, e vamos para dentro do prédio, passando por um porteiro indiferente, um elevador que não estremece, e ele evita meu olhar, mas esconde os lábios sob a beirada do casaco, como se também pudesse estar escondendo um sorriso, enquanto me olha mal disfarçadamente com olhos muito brilhantes. Onde eu estava com a cabeça quando o beijei? Isso não se faz...

Entro em meu apartamento, tentando não olhar muito para ele. Nem sei seu nome, só sei que ele é pouco mais que uma criança, e os pensamentos que ele me despertou não combinam com isso. Enquanto eu tiro os sapatos e calço os chinelos, ele escorrega – o termo é esse – para fora de seu casaco de adulto. Ele está vestido como os garotos de antigamente, seja lá quem for sua família, deve estar educando-o nos mais tradicionais moldes ingleses. O costume, a bermuda e os sapatos pretos, as meias, tão brancas em torno de seus tornozelos pálidos, pernas longas, e seus olhos... Azuis.

Pego a lista telefônica e antes de terminar de discar o número da polícia, me lembro de perguntar se nome mais uma vez.

“Frost.”

Ponho o telefone no gancho na mesma hora, e sem acreditar no que está havendo, eu pergunto:

“O que?”

“Evol Frost.”

Destino... Ocorre-me que isso tudo seja obra de Eriol. Mas com o tom de minha pergunta, ele apenas volta a demonstrar todo o medo que tem de mim. Ele não sabe o que está acontecendo.

Olho para a lista e começo a procurar por outro número, agora, é o do hotel onde eu estivera momentos atrás. No segundo toque, o recepcionista me atende, e quando pergunto, dando a descrição dos hóspedes, ele me informa que eles acabam de se retirar do hotel... Em um táxi na direção do aeroporto.

“O senhor conhece a minha família?” – O menino pergunta, mas muito baixo. Eu devo estar apavorando-o, estou com tanta raiva que sinto meu rosto esquentar. Diabos, o que está havendo aqui? Eriol quer acabar comigo?

Pergunto se eles haviam deixado algum recado para mim. Toya Kinomoto, isso mesmo.

Ki-no-mo-to. Claro, eu posso esperar.

Evol Frost, o discípulo de Eriol, está quase entrando em pânico no meio da minha sala. O que ele acha que eu vou fazer? Nem eu sei o que fazer.

“Alô, Sr. Kinomoto? Aqui está o recado por escrito que o Sr. Eriol deixou na portaria. Posso mandar um mensageiro entrega-lo agora mesmo, se for de urgência.”

“Pode lê-lo para mim, por favor?” – Parece ter sido tudo muito bem planejado por ele, se é que o foi... começo a voltar a crer numa força chamada Destino mais uma vez...

“A-han...’Caro Toya Kinomoto, Feliz aniversário. Cuide bem de seu presente, pois a vida é breve e há outras mais breves ainda. PS: A maleta de Frost estará a sua espera. Eriol’ .” – Apenas isso, o desgraçado escreveu apenas isso? Como ele tramou isso? Ele sabia que eu estria indo àquela festa? Ele sabia que este hotel é perto da minha casa? Mas como ele poderia saber que eu pararia para ajudar um menino perdido? Como ele poderia saber que... Destino.

“E... esta mala está aí?”

O recepcionista confirma isso, e anota meu endereço. Alguém virá entregá-la pela manhã.

Por que tenho de ficar com esse desconhecido aqui?

Eu poderia ligar para a polícia como era a minha primeira intenção, poderia manda-lo embora.

Mas não faço nada.

Agora eu faço o que o Destino quer, vou até onde ele está e seguro-o pelo braço como se ele fosse completamente meu, e lhe digo em palavra secas que ele ficará comigo.
 
 

 

CONTINUA